Eu existo todos os dias

Um making of conturbado e reflexivo sobre meu livro que alcançou mais pessoas

Rodrigo Goldacker
52 min readOct 2, 2024
À esquerda, o esboço porco que enviei para a Carla (minha capista oficial) em 25 de agosto de 2022, explicando como gostaria que fosse a capa do primeiro livro que publicaria; à direita a capa do audiolivro publicado em 06 de setembro de 2024, já com o selo de finalista do Prêmio Amazon de Literatura Jovem.

Em agosto de 2022, pela primeira vez publiquei um livro pela Amazon. No caso, era meu terceiro (ou quarto, dependendo da perspectiva) livro escrito, Eu Só Existo às Terças-feiras.

Ele conta a história de Viktor, um rapaz com sete personalidades — uma para cada dia da semana. O tímido Terça, o protagonista que narra toda a história, é a contraparte que só existe às terças-feiras. Quando uma guerra interna entre os eus de Viktor começa, a única esperança de resolução pode estar em Terça e nas estranhas habilidades que ele está prestes a desenvolver.

Esse é o único dos meus livros para o qual nunca tive dificuldades no que diz respeito à sinopse, afinal a grande pegada nesse caso não está num plot twist inesperado, como aconteceu com minhas outras histórias. Aqui, a premissa já entrega a que veio e funciona bem para captar o interesse.

Hoje, vou me aprofundar em tudo que envolve este livro, que até hoje segue sendo (e talvez continue sendo por um bom tempo) o mais bem-sucedido entre aqueles que já escrevi.

Se você, por algum acaso, não leu ainda o Terça e tiver interesse, recomendo finalizar a leitura do livro antes de começar a leitura deste texto aqui. Nesse making of, vou falar sobre tudo mesmo, incluindo detalhes narrativos e spoilers.

Esta é uma história um tantinho só menos pessoal do que foi aquela no making of que fiz sobre Verde Verdade, meu livro publicado em 2023. É assim porque minha relação com o Terça é bastante diferente. Aqui, vou falar sobre minha vida, como não poderia deixar de ser quando se trata de um livro inspirado tão diretamente naquilo que vivi, mas também vou falar sobre mercado literário, ambições e frustrações como escritor, e sobre minha relação complexa com o público leitor.

Acho que vai ser uma jornada legal.

1. Uma viagem de juventude a Salvador

Uma das fotos que tirei em Salvador lá em 2016.

Em janeiro de 2016, fui viajar com alguns amigos para Salvador. Faço aniversário em fevereiro, então estava nos meus últimos dias aos vinte anos de idade quando a viagem aconteceu.

Não era uma boa fase para ser meu amigo.

Nas aparências, eu vivia um auge de egocentrismo que me tornava bastante insuportável. Depois de alguns anos em que minhas duas prioridades absolutas vinham sendo estudar e cuidar da minha aparência, aquela bomba de “autoaperfeiçoamento” estava naquela época estourando. Eu saía com facilidade com garotas, coisa que fazia com frequência para me validar, mas era tudo bastante superficial.

As amizades também eram superficiais. Não por culpa dos amigos, inclusive eles provavelmente nem sabiam disso. Mas se nas aparências eu vivia metendo aquela banca toda, a verdade é que por trás da superfície a minha vida estava precária de um jeito desesperador e que eu me negava a confrontar. Os gastos do estilo de vida pouco humilde que eu levava (com festas, com roupas, com livros e inclusive com aquela viagem) vinham todos de uma herança que eu tinha recebido do meu avô materno que falecera dois anos antes, em fevereiro de 2014. O dinheiro estava acabando e eu sabia que minha vida inteira desmoronaria quando isso acontecesse.

Minhas relações familiares eram péssimas. Morava com minha mãe e avó, que desde a morte de meu avô viviam à deriva. Estavam em uma decadência cada vez mais acentuada de suas condições emocionais, psicológicas, psiquiátricas e financeiras. Do lado materno, a figura de estabilidade tinha sido desde sempre meu avô e a morte dele tinha nos lançado a uma situação aflitiva e dramática de “tudo ou nada”: naqueles poucos anos ou aprenderíamos a existir sem ele, ou sucumbiríamos.

Fora elas, tinha contato com meu pai biológico desde meados de 2011. Àquela altura, nossa relação ainda tinha muito a evoluir. Vindo de um universo absolutamente oposto ao meu, meu pai não entendia ainda a gravidade das circunstâncias da minha família materna, com quem ele jamais teve contato (vim ao mundo como consequência de um encontro único entre ele e minha mãe e, até aparecer em 2011, ele não fazia a menor ideia de como era precária nossa situação). Ademais, ele é um homem prático e objetivo e, sendo eu naquele momento ainda visto como um adolescente, qualquer coisa que eu dissesse seria recebida com desconfiança.

Ele pagou adequadamente minha pensão dos oito anos em diante, quando o vi pela primeira vez num teste de DNA (até nos reencontrarmos e estabelecermos um contato contínuo em 2011). Mas eu tinha feito 18 anos em 2013, a obrigação jurídica tinha já acabado e ele seguiu me dando ajudas eventuais do mesmo jeito, apesar de eu nunca ter seguido os caminhos que ele teria preferido para minha vida (caminhos mais pragmáticos onde eu ganharia mais dinheiro mais rápido para ajudar minha família que precisava de mim, vale mencionar). Por tudo isso, sou bastante grato a ele apesar de todas as nossas diferenças.

Minha faculdade, que eu escolhi qual seria sem me preocupar com a opinião de meu pai, era meu avô quem tinha combinado comigo que pagaria. Ele teve tempo de ir comigo fazer a matrícula, em janeiro de 2014, logo antes de ter o AVC que o deixou em coma e fez com que falecesse. Eu estava na sala de aula, num dia do primeiro mês da graduação, quando recebi o aviso de que ele tinha morrido. Dali em diante, meu pai me pagava a faculdade e, envergonhado por isso, eu não tinha coragem de pedir nada além. Sempre tive muito orgulho e resistência a pedir ou aceitar ajudas financeiras, o que é uma pena dado quantas vezes precisei delas. Minha mãe e minha avó, a partir do momento em que meu avô faleceu, mergulharam num caos financeiro desorganizado e me deixaram à minha própria sorte. De herança do meu avô eu tinha recebido mais ou menos uns sessenta mil.

Essa herança foi o que me manteve durante os primeiros três anos de faculdade. Foi o que custeou minha descida a uma vida festeira durante o primeiro ano da graduação, no qual eu frequentemente saía de casa às quartas-feiras e ficava virando a noite em casas de amigos, garotas com quem tinha casinhos, ou em festas, voltando às vezes só na segunda-feira da semana seguinte. Foi o que custeou todas as centenas de livros que li durante aqueles anos porque, se de noite vivia essa vida boêmia, de dia eu me exercitava bem, comia na rua em restaurantes e frequentava livrarias para ler sem parar.

Foi o que custeou a viagem para Salvador em 2016 com meus amigos de faculdade que, reitero, não faziam a menor ideia de onde vinha meu dinheiro, qual era a gravidade da minha situação familiar, ou que eu estava nas últimas daquele estilo de vida absurdo que eles estavam me acompanhando viver desde 2014.

Meu pai queria que eu arranjasse logo um estágio. Dizia: arranje logo um estágio, em qualquer coisa. Tinha medo que eu fosse ser um encostado. Também fazia pressão, imagino, porque essa autoridade era o único jeito que sabia exercer o papel de pai. Isso nunca funcionou bem comigo porque sempre fui um tanto quanto indomável e, dado que não dependia dele financeiramente para além dos boletos da faculdade, não existiam tantos caminhos para ele tentar materialmente me controlar. Se chegasse o momento em que a herança acabasse, meu pai provavelmente tomaria mais controle sobre meu futuro e sobre minhas decisões, algo que me aterrorizava em absoluto.

Não é que eu não quisesse o estágio, aliás. Queria muito e tinha passado 2015 inteiro fazendo entrevistas que não deram certo. Mas queria numa vaga específica: redator. Não queria aceitar nenhuma outra posição. E era difícil pra cassete entrar num estágio de redação nessa época. O mercado não estava pra peixe e eu era excêntrico demais para ser tão facilmente colocado para dentro de qualquer agência. Meu pai dizia: se não arranjar como redator, entre logo em qualquer outro. E eu dizia não. E discutíamos longamente sobre isso toda vez que nos víamos.

Eu me sentia ansioso, pressionado e preocupadíssimo. E quando o dinheiro acabasse? E se eu não tivesse ainda encontrado um estágio do que queria quando esse dia chegasse? Teria que me submeter a qualquer outra coisa? Teria que me enfiar nas rédeas do controle de uma figura paterna que acabara de aparecer depois de eu ter vivido uma vida inteira de autonomia? O que seriam das minhas ambições artísticas a longo prazo, do meu sonho de viver de escrita?

Antes disso, em janeiro de 2016, eu calculei que o dinheiro que eu tinha ainda dava pra mais ou menos um ano da mesma vidinha. Então com todas essas ansiedades no fundo da cabeça, eu continuava indo às festinhas com meus amigos, às livrarias para ler e comprar livros, à academia para correr até não aguentar mais, aos encontros com garotas que arranjava em aplicativos. E foi assim que fui a Salvador.

Sozinho no mundo, sem ter coragem de me abrir aos meus amigos, tentando fugir do caos da minha casa com minha mãe e minha avó, incapaz de explicar minha situação ao meu pai. Mas metendo uma grande banca de que estava tudo bem. De que nada me atingia e de que estava ótimo, muito bem, obrigado. Quem olhasse pra minha carinha de jovem descoladinho certamente acreditaria e eu adorava me entregar a esse papel. Eu queria mesmo que minha vida fosse tão vazia e simples quanto eu fingia que era.

Em Salvador, certo dia eu e meus amigos pegamos uma van para uma praia um pouco distante. Se não me falha tanto a memória (e minha memória falha às vezes), era o caminho para ver as tartarugas do Tamar. Nessa van, um senhorzinho baixinho e simpático sentou ao meu lado. Fomos conversando. Eu disse que gostava de escrever e ele me contou que era escritor também. Contou que era filho de um pintor relativamente famoso e que agora aproveitava da própria aposentadoria para cuidar do legado de seu pai e para escrever seu próprio. Disse que vinha escrevendo suas histórias e publicando online.

Eu contei da minha insatisfação com a falta de lugar na Internet para deixar disponíveis os meus escritos. Que pensava em ter um blog, porque até então o que costumava fazer era enviar arquivos em .doc para meus amigos por mensagem direta. Ele me disse que tinha uma plataforma que estava usando para publicar as coisas dele, um tal de Wattpad.

Existe uma grande ironia no fato de que foi um escritor na terceira idade que me indicou, quando eu tinha só vinte e um anos, uma plataforma online para publicar minhas coisas. Se não fosse ele, não existiria o livro sobre o qual vamos falar aqui, nem existiria também esse meu perfil no Medium no qual estou publicando esse making of agora. Não faço ideia de qual teria sido o caminho da minha vida nesse “e se” em particular. Quem eu seria sem aquela conversa de minutos com aquele senhor numa van em Salvador?

A vida às vezes dá dessas.

Dado o contexto prévio que apresentei, todos os dominós que vão se desenrolar nessa história daqui em diante foram empurrados por aquele momento: precisei ir de São Paulo a Salvador numa viagem com amigos (aliás, foi a primeira e última vez até hoje que fiz uma viagem de avião com amigos) para que um senhor com roupas de turistas (usava um chapéu, óculos de escritor e uma camisa de praia) sentasse do meu lado numa van rumo a uma praia qualquer. Precisei pegar um avião para o outro lado do país para que um desconhecido senhor simpático puxasse papo comigo, ou para que eu puxasse papo com ele, para descobrirmos que ambos éramos escritores e que existia essa tal plataforma, Wattpad.

E sem isso nada teria acontecido.

2. De volta a São Paulo e começando a escrever

A primeira capa que Eu Só Existo às Terças-feiras teve, gerada bem toscamente com a ferramenta de criar capas do próprio Wattpad.

Voltei a São Paulo sem saber que ter encontrado em Salvador um senhor que me indicou o Wattpad mudaria minha vida. Na ocasião, anotei o nome da plataforma, adicionei o senhor no Facebook e à princípio minha vida seguiu de onde estava. Eu ainda era profundamente infeliz na minha casa caótica, ainda era profundamente infeliz no meu relacionamento complicado com meu pai que não parava de me pressionar a arranjar um estágio e piorava minhas já bastante consideráveis ansiedades, ainda vivia em modo escape a tudo isso em meus casinhos superficiais com meninas para quem eu ocultava absolutamente tudo da minha vida, ainda ocultava tudo da minha vida também aos meus amigos, mesmo aqueles de quem era mais íntimo já há anos.

E ainda vivia pressionado pelo caos que o futuro desenhava: um momento em que meu dinheiro acabasse (aconteceu), em que eu tivesse que ir com o rabo entre as pernas aceitar qualquer exigência ou comando do meu pai para não morrer de fome (não aconteceu, mas quase morri de fome mesmo), ou em que a situação familiar com minha mãe e avó, que só vinha deteriorando, finalmente explodisse de tão insustentável (aconteceu também).

Essa é a história de como vamos chegar a tudo isso. Mas antes, é a história de uma boa ideia que virou um textinho que inicialmente seria um conto e que eventualmente virou um livro.

E para explicar a gênese do Eu Só Existo às Terças-feiras, vou novamente ter que voltar mais para trás.

Em 2014, meu avô morreu em fevereiro, como mencionei, durante meu primeiro mês na faculdade. Como um bom rapaz de dezenove anos confrontado com a coisa mais traumática que pode acontecer em sua vida, algo que seria exagerado de ter enfiado nas circunstâncias da minha vida se eu fosse um personagem de romance, fiz o que era mais apropriado de se fazer: não lidei com meu trauma. Minha vida familiar era MUITO complicada, muito mesmo, e eu colecionava centenas de traumas familiares ao longo da minha infância e adolescência. O convívio familiar com minha mãe e avó me fazia MUITO infeliz. Meu avô, nesse cenário, era a única figura de estabilidade que eu tinha, a única fonte de alguma segurança com quem eu podia contar.

Há todo um complicado caso familiar sobre como meu avô teve que ir morar em Brasília por questões de seu trabalho e o resto da família (meu tio, minha avó e minha mãe) não quiseram acompanhá-lo e seguiram vivendo em São Paulo. Há toda uma questão complexa sobre o quanto isso me afetou quando aconteceu (na ocasião eu tinha seis anos e foi este meu primeiro trauma significativo na vida porque meu avô era meu familiar mais amado quando isso aconteceu). Há toda uma questão também sobre como ao longo da minha infância e adolescência me mantive próximo ao meu avô e absolutamente dependente dele (financeiramente, mas também e até mais emocional e psicologicamente) através de telefonemas, de livros e CDs com os quais ele me presenteava, e das viagens que fazíamos juntos em todas as minhas férias escolares.

Mas esse relato é sobre o Terça e ficaria comprido demais se eu fosse me aprofundar nisso tudo. O que você precisa saber é: eu amava muito meu avô, dependia demais dele, e quando ele morreu isso acabou com meu mundo. Foi algo absolutamente disruptivo e traumático, algo que na época eu me neguei a entender totalmente a gravidade envolvida e que hoje, olhando para trás, fico feliz por não ter compreendido totalmente quando aconteceu porque teria me enlouquecido se entendesse.

Minha vida depois da morte dele foi miserável. Como disse, eu não tinha ninguém.

Meu pai existia e que sorte que ele apareceu poucos anos antes do meu avô morrer, porque se não eu teria realmente acabado numa desgraça pior ainda. Mas nossa relação era complicada dadas as nossas diferenças de contextos, minha obsessão incontornável pela escrita (que meu pai absolutamente não entendia) e o nível absoluto de autonomia (ou negligência) com que eu vivia desde os onze anos, num pacto velado, civilizado e esquisito, mas extremamente funcional, com meu avô, minha avó e minha mãe. Fui criado de um jeito nada convencional, cheio de liberdades, e fiz todas as escolhas que quis fazer da minha vida sem ter que dar muitas satisfações a ninguém. Isso é incompreensível à família brasileira média, mesmo a mais moderninha, e meu pai é conservador e para ele essa existência era simplesmente impossível de se computar. Minha mãe e minha avó estavam se rendendo pouco a pouco ao caos, cada uma ao seu modo e à sua medida, e era evidente a qualquer um que prestasse atenção que estavam lentamente rumando a uma catástrofe. Por isso, delas eu tentava me manter distante, porque me entristecia, porque ficar em casa me deixava extremamente infeliz e porque aos dezenove anos eu não tinha estrutura nenhuma para tentar sozinho resolver o problema. E aos meus amigos e às garotas com quem eu saía, a quem eu nunca tinha contado nada disso, eu não sentia que podia contar nada. Não tinha abertura nem costume na relação com nenhum deles para tal.

Então sozinho, totalmente sozinho frente ao momento mais triste da minha vida toda. E aos dezenove anos, evidentemente, dado tudo isso, não quis lidar. Simplesmente me neguei.

Fui levando o ano de 2014 com a barriga e aproveitando para mergulhar em todas as distrações que pudesse. Durante o primeiro semestre, a faculdade é essencialmente uma farra e aproveitei desse contexto para me perder de mim. Fora isso ia às aulas e mergulhei na leitura. Nas férias de meio do ano, fiquei um mês inteiro desaparecido dos meus amigos, enfiado em casa trocando o dia pela noite num estado de melancolia. Mas no que as aulas do segundo semestre voltaram, retomei a gracinha do meu teatro e fui me segurando pelos próximos meses. Cada vez mais infeliz, cada vez mais insustentável. Uma pressão de trauma e desgraça no fundo do meu peito, criando cada vez mais pressão dado o bloqueio que eu fazia na minha recusa a lidar com o problema.

Em outubro de 2014, pela primeira vez me apaixonei. Como de hábito pra meu jeito de adolescência e juventude ao lidar com tudo, fiz o relacionamento inteirinho ser envolto por minhas mentiras, minhas recusas a me abrir. Não contei que me apaixonava, não contei que até então era virgem, não contei que minha vida estava complicada como estava. O relacionamento era mais um casinho na formalidade dos fatos, totalmente independente da minha realidade subjetiva que eu recusava com tamanha rigidez. E em dezembro de 2014, entrou numa crise e acabou rápido quando fiquei maluco, quando toda a pressão se construindo ao longo do ano todo, ao longo da vida toda, estourou de uma vez só.

Até hoje não sei direito explicar o que aconteceu comigo em dezembro de 2014.

Vamos lá:

Uma crise existencial profundíssima, dado que eu não tinha fé alguma que me confortasse e estava entregue a um niilismo corrosivo? Sim. Uma crise dos meus traumas bloqueados e acumulados com os quais eu me recusava a lidar direito desde criança e que tinha atingido um ponto insustentável frente à morte do meu avô, o pior dentre todos os muitos traumas que tinha vivido até ali? Sim também. Uma crise da minha vida árida de vínculos, solitária mesmo quando na companhia de amizades a quem eu não permitia me abrir, a garotas com quem eu não me permitia ser honesto e nem amar? Sim, também. Uma crise familiar, dada a falta do meu avô, o caos da minha casa materna e minha relação complicada com meu pai que vinha de outro universo e outros valores? Sim, também. Uma crise intelectual e espiritual, demandando uma reforma completa do meu sistema de valores, da minha percepção de mim e dos meus comportamentos para que eu parasse de me enfiar nessas situações de mentira e isolamento? Sim, também. Uma crise de desilusão amorosa por um primeiro amor não correspondido num contexto no qual o relacionamento não podia jamais ter dado certo, desde a partida, porque eu menti e interpretei nele desde o começo? Sim, também. Uma crise espiritual mesmo, uma crise de espiritualidade filosófica em que eu interpretava e articulava todas essas minhas questões através de uma linguagem abstrata e metafísica relacionada a questões de dialética, determinismo, filosofia da linguagem e identidade (e que por isso também me fazia, como um subproduto do processo emocional, estar estabelecendo tratados subjetivos de uma metafísica e filosofia)? Sim, também. Uma crise talvez até biológica, visto o quanto eu estava sendo inconsequente e autodestrutivo nos meus hábitos paradoxais de saúde que envolviam correr feito um ensandecido na academia por horas todo dia, estar magro à vista das costelas por isso, passar dias inteiros sem comer e abusar de substâncias? Sim, também. Uma crise psicológica mesmo, no que no futuro vim a perceber como um processo de individuação intenso pelas circunstâncias e acelerado como efeito compensatório frente ao bloqueio anterior que durava anos de todas aquelas questões? Sim, também. Uma crise do ócio, de um jovem boêmio e desocupado, que só estourou finalmente e se viabilizou porque eu entrava de férias da faculdade e não trabalhava, portanto podia passar dias inteiros vagando a esmo por aí enquanto pensava? Sim, também.

Em 17 de dezembro de 2014 (nunca esqueci a data, nunca vou esquecer), tudo isso chegou num estopim de uma vez só, ao mesmo tempo. Foi o fundo do poço para mim por um momento, em que me rendi entregue a um desespero de categoria que não consigo nem explicar. E no momento logo seguinte, sem saber explicar também, foi meu momento de maior deleite, uma epifania profundíssima e intensa (algo difícil de explicar sobretudo dado que partiu de um ateu, foi de natureza secular e me manteve ateu, mas alterado, quando terminou). Foi algo que no momento que aconteceu, como um fenômeno subjetivo, eu já sabia que mudaria minha vida inteira dali em diante — aos poucos, mas somando-se com o passar do tempo numa direção diametralmente oposta àquela que até então eu caminhava. Os efeitos foram dramáticos e instantâneos na minha subjetividade, mesmo que a reforma externa tenha se construído aos poucos ao longo dos anos seguintes.

Até hoje, não sei também como fui capaz de viver algo assim aos 19 anos. Mas sei que mudou minha vida. Quando aconteceu, eu já sabia que tinha mudado minha vida. Eu sabia que ninguém ia acreditar em mim de cara porque, a princípio, minha vida parecia ser exatamente a mesma. Mas não era. No dia seguinte as circunstâncias eram todas as mesmas, mas eu era outro. Nunca fui o mesmo depois daquilo. Existe um antes e um depois de mim em relação a 17 de dezembro de 2014. Se o dia 17 de dezembro de 2014 fosse removido da minha vida, naquele dezembro de 2014 parecia ser pouca a diferença. Mas em outubro de 2024, quando escrevo isso aqui, minha vida seria drasticamente outra, isso se eu não tivesse já morrido (e se seguisse autodestrutivo como era até então, teria morrido).

Em janeiro de 2015, escrevi um livro, meio relato autobiográfico e meio manifesto filosófico, sobre tudo isso. Escrevi porque sabia que era importante. Chamava-se Dezembro, simplesmente, e era uma descrição minuciosa e detalhada de cada dia do mês anterior, do começo ao fim do meu processo de crise, com a epifania como clímax. Até hoje é o maior livro que já fiz, com mais de cento e cinquenta mil palavras. Fiquei enfiado em casa durante janeiro todo para escrevê-lo.

Terminado o livro, imprimi algumas cópias apostiladas que dei a amigos. Sabia que aquele texto gigantesco era a coisa mais maluca e absurda que eu já tinha escrito e, quando precisava me confrontar com o fato de que tudo aquilo tinha acontecido e que eu tinha materializado tudo aquilo num livro de setecentas páginas que não me deixava esquecer, achei que podia mesmo ter ficado doido.

Passei o resto de 2015 estudando psicologia feito o doido que estava em dúvidas se não era enquanto o caos em casa era igual, enquanto a pressão do meu pai para que arranjasse um estágio era igual. Durante 2015 tive uma vida menos desregrada do que em 2014 porque o que fiz foi ler muito e caçar estágios que sempre me recusavam. Em agosto daquele ano, fui atrás de uma consulta com um psicólogo. Levei uma versão impressa apostilada de Dezembro na primeira consulta e contei: isso aqui aconteceu, acho que posso estar meio maluco. Não deixei o livro com ele por vergonha, mas expliquei o que era. E partimos daí. Junto aos meus gastos com livros, academia, encontros com moças e festas, a herança também começou a ir para esse investimento singelo em saúde mental.

Voltando de Salvador, eu já estava há alguns bons meses passando semanalmente em sessões com meu psicólogo. Também estava já há mais de um ano estudando psicologia, fascinado principalmente por Jung. Àquela altura, o que me parecia mais convincente para explicar meu processo de crise era a ideia de que tinha passado por um processo de individuação. Até hoje acho que essa perspectiva é válida, embora hoje a complemente a outras coisas.

O fato de que Dezembro era tão inacessível me incomodava. Queria usar metáforas para apresentá-lo de outras maneiras, maneiras mais lúdicas e criativas, às pessoas.

Em fevereiro de 2016, tive a ideia para um conto. Uma premissa curiosa, inspirada no que eu estudava: um protagonista que começava dividido entre sete personas que passavam por uma série de desafios e intrigas até se integrarem em uma nova identidade única. Uma metáfora ao Self, uma metáfora ao processo de individuação, uma metáfora à crise e à epifania que eu vivi em dezembro de 2014.

É muito engraçado para mim pensar hoje em dia nessa origem do Terça, dado o resto de sua jornada daqui em diante. Os outros livros que tinha escrito até então sempre surgiam com a ambição de serem livros. Às vezes eu admitia derrota e tinha que reduzi-los a contos. No caso do Terça, foi o contrário. Ele surgiu humilde, imaginei que seria um conto. E a história foi crescendo, crescendo, transformando-se num livro.

O fato de que a premissa parece tão inofensiva e tão típica ao que se espera de uma literatura de consumo também me diverte bastante quando considero o quanto esse livro estava vinculado às minhas subjetividades mais profundas.

Eu não fazia ideia de até onde aquela história chegaria. Não era um projeto que eu começava com grandes ambições. Quando tive a ideia da premissa e escrevi os primeiros capítulos, entre 29 de fevereiro de 2016 e as primeiras semanas do mês de março subsequente, eu achei que seria no máximo uma novela, uma coisinha antes de voltar para o próximo livro que queria terminar de escrever (um projeto ambicioso que eu tinha começado em 2015 e que nunca terminei).

Meu anúncio de chegada ao Wattpad, em 29 de fevereiro de 2016, com a história nova em que estava trabalhando.

Porque o senhor de Salvador ainda estava na minha cabeça, fiz uma conta no Wattpad e comecei a colocar lá os primeiros capítulos que tinha. O terceiro (ou o quarto, depende) livro que escreveria começou assim, humilde, testando uma nova plataforma.

E esse era só o começo.

3. O contraste antes e depois do hiato

A pintura de Magritte com que ilustrei o post do primeiro capítulo do Terça aqui no Medium, em 02 de março de 2017.

Falei sobre dezembro de 2014 muito num sentido passivo, a partir das circunstâncias diversas que me foram impostas ou que eu mesmo tinha previamente articulado para que ali, naquele mês específico, eu me visse defrontado por todas elas de uma só vez. Mas vale dizer que foi também um processo muito ativo de minha parte, algo que eu lidei do jeito que resolvi lidar porque era o caminho coerente à minha pessoa.

Outro sujeito menos acostumado com uma vida de autonomia (ou negligência) talvez tivesse procurado suporte. Eu era ateu desde os doze anos por vontade própria, também, e isso já tirava no meu caso a possibilidade de qualquer conforto religioso. Nunca fiquei tão tentado a ter uma religião quanto em dezembro de 2014, aliás, mas não cedi a essa tentação porque estava bem ciente de que no meu caso ir atrás de alguma naquelas circunstâncias seria outra forma de fuga. Até a epifania e meus estudos subsequentes de psicologia, eu nunca tinha nem considerado a hipótese de terapia, então isso também não estava no meu horizonte de possibilidades. Família? Minha mãe e minha avó, com quem eu poderia talvez ter alguma intimidade para me abrir, não tinham estabilidade para lidar com a gravidade do que eu passava. E meu pai, que talvez tivesse essa estabilidade, era alguém com quem não tinha intimidade para me abrir. Amigos? Porque eu brincava de teatrinho, mal me conheciam e ficaram estupefatos quando me viram enlouquecendo às plenas vistas ao longo daquele dezembro.

Eu era muito cínico e desconfiado para a autoajuda, muito descrente pra qualquer fé, muito orgulhoso e teimoso para qualquer grupo de ajuda ou terapia. Eu era também muito, muito determinado (então teimoso) e não tinha problemas a me arriscar (logo inconsequente). Também era muito solto e livre para tentar caçar meu caminho do jeito que fosse a mim apropriado (ou seja, birrento), por mais esquisito, pouco convencional, arriscado ou absurdo que pudesse parecer aos outros, às vezes até a mim (portanto muito, muito esquisito). Minha liberdade é algo que nenhum pai ou sociedade que tivessem controle sobre um sujeito gostariam de permitir que ele fizesse. É um olhar de frente ao abismo com a possibilidade incerteza e possível das consequências mais devastadoras possíveis. Quando eu me desnudei à crueza mais fundamental do meu desespero em dezembro de 2014, o que fiz foi me render a uma incerteza primordial num ato que, quando o fiz, eu não fazia a mais absoluta ideia de qual consequência teria — e no que fiz isso estava ciente do risco envolvido de enlouquecer, de me traumatizar mais ainda para além de qualquer possibilidade de recuperação. Foi uma entrega, verdadeiramente, ao que quer que fosse.

Se eu posso dizer que tive participação ativa no processo até ali, a epifania em si parece pura e simplesmente uma dádiva que me foi dada. É muito esquisito que um confronto tão profundo com a incerteza, uma rendição tão absoluta a ela, tenha me dado em seguida uma leveza e uma convicção tão fortes. Talvez seja isso também uma compensação curiosa.

Mas o fato é que durante 2015 e 2016 eu sabia bem o que estava fazendo. Ainda era muito disfuncional enquanto pessoa e sabia que o processo para me transformar no que eu gostaria de ser demandava esforço e tempo. Tive recaídas aos meus antigos jeitos enraizados mais de uma vez. Mas no primeiro semestre de 2016, quando escrevia os primeiros capítulos de Eu Só Existo às Terças-feiras, sinto que eu vivia ao mesmo tempo duas coisas bastante importantes: de um lado, a colheita dos primeiros frutos dos esforços que vinha fazendo nos últimos anos. De outro, uma despedida daquela vida que levava com as primeiras sementes do que viveria dali em diante. E os frutos do passado e as sementes do futuro eram às vezes a mesma coisa.

Por exemplo: a terapia já tinha me ajudado muito a me despir aos poucos dos comportamentos mais problemáticos que eu tinha no meu jogo de performances. Eram ainda os movimentos embrionários da revolução de mim que eu precisava fazer, mas eu sentia, pela epifania, que o dominó que puxaria todo o resto já tinha sido lançado e que dali em diante todo o resto se desenvolveria no seu ritmo.

A escrita era outra parte da minha vida já consolidada. Eu já tinha a escrita como um chamado de vida desde 2013, quando escrevi Verde Verdade como um presente ao meu avô logo antes dele morrer, mas escrever Dezembro só tinha reforçado e revitalizado essa convicção que tinha sofrido com diversos golpes ao longo daqueles anos. Os golpes tinham sido vários: meu próprio medo do fracasso, minha insegurança e falta de validação depois da morte do meu avô que era o único que me dava suporte nessa empreitada, falta de público, escritos pouco convencionais que me afastavam de sucesso a curto prazo, as dúvidas do meu pai que não tinha intimidade nenhuma com esse universo, as questões práticas e urgentes do caos da minha família materna e da necessidade que eu me tornasse autossuficiente financeiramente o mais rápido possível, a rejeição das chamadas de editoras e dos estágios de redação aos quais me submetia… Mas nada disso me afetava. Desde Dezembro, o livro, eu sabia que era isso aí mesmo. Uma hora ia começar a engrenar. Continuei escrevendo obstinado e irredutível por 2015 e 2016 inteiro apesar de todos esses problemas.

No primeiro semestre de 2016 eu tinha fincado o início verdadeiro da minha viabilidade como escritor através de duas empreitadas: a escrita do Eu Só Existo às Terças-feiras e o lançamento da minha presença digital. O Terça foi bem recebido desde o começo, indo além das minhas expectativas no tanto de leitores (alguns deles desconhecidos) que desde lá já atraiu. E minha presença digital teve sucesso nos posts que joguei no Facebook e tiveram bom retorno, nos leitores que angariei no Wattpad e, finalmente, na minha chegada ao Medium em 06 de junho daquele ano. Só vim ao Medium porque estava insatisfeito com algumas limitações do Wattpad e do Facebook e decidi buscar por alternativas no Google. Devo ter pesquisado algo como “alternativas Wattpad publicar textos online” e acabei aqui.

O primeiro texto que publiquei por aqui, Queria Querer, era um manifesto à minha própria autonomia. Cheguei chegando e mantive a frequência de publicação. No Medium saí do anonimato e estabeleci minha primeira base de amigos escritores e leitores. Cheguei num ótimo momento, quando a comunidade de gente aqui borbulhava com entusiasmo.

Em dezembro eu já tinha entrado para as duas principais publicações brasileiras da época na plataforma, a Trendr que virou eventualmente a New Order e a Fazia Poesia, que segue de pé e da qual sigo participando até hoje. Terminei aquele ano com 159 seguidores aqui, algo que já era além de qualquer sonho meu a respeito de quantas pessoas eu poderia reunir para lerem qualquer coisa minha. Até o fim de dezembro tinham sido 57 publicações entre contos, reflexões, crônicas, poesias, textos autobiográficos, artigos…

Em junho de 2016, conheci uma moça por quem me apaixonei, a Jaqueline. Éramos de cidades diferentes e conversávamos por aplicativos há alguns dias até que surgiu a chance de nos toparmos numa festa universitária em que eu estaria em Sorocaba — que era meio caminho para os dois.

Aprendendo com meus erros do passado (e com a terapia), foi de um jeito que nunca tinha sido antes pra mim, mais aberto e saudável. Dessa vez, fui honesto desde o princípio. Dessa vez, o sentimento era mútuo. Tive algumas complicações nos primeiros meses para me desvincular dos meus múltiplos casinhos com outras meninas que vinha vivendo naquela época, que até então vinha sendo o auge da minha solteirice. Mas nada disso importava diante. Com a Jaqueline. pela primeira vez em toda minha vida falei abertamente sobre todas as situações dramáticas da minha questão familiar. Dei um contexto completo e honesto sobre minha mãe e minha avó, de um lado, e sobre meu pai de outro. Fiz algo que jamais imaginei que faria e a levei para minha casa, para conhecer onde e com quem eu morava. Também a levei para conhecer meu pai. Esperava que ela fosse desistir de mim porque era muita coisa. Ela não desistiu.

O último capítulo de Eu Só Existo às Terças-feiras que escrevi em 2016 foi o capítulo 14. Eu sabia para onde a história devia seguir dali para frente, então não tenho certeza se foi exatamente um bloqueio criativo. Existiam diversas tecnicidades trabalhosas em como a história seguiria (tabelas sobre datas para garantir a sequência coerente dos eventos a partir de tantas perspectivas, com várias personas de Viktor envolvidas que não podiam saber de certas coisas antes da hora), mas eram isso, detalhezinhos técnicos que se eu me esforçasse acabaria resolvendo.

Mas naquela época fiquei distraído aproveitando o final da minha adolescência e os preparativos para o início de minha vida adulta. No segundo semestre de 2016 vivi meu namoro do melhor jeito que pude com o dinheiro que me restava. Fomos viajar, jantamos juntos, passeamos, fomos visitar um a cidade do outro todos os fins de semana (eu morava em São Paulo e ela em Indaiatuba). Quando penso em 2016, penso que fui feliz.

Em dezembro daquele ano, arranjei uma vaga de estágio como redator. O portfólio que eu vinha criando no Medium foi um fator importante para que me considerassem.

Com o estágio, eu e a Jaque decidimos morar juntos. Fomos para o lugar mais barato que dava para arranjar, um cortiço muitíssimo precário. O finalzinho da minha herança acabou nos gastos da mudança com caminhão, tinta para pelo menos pintar as paredes, caixotes e pallets que foram tudo que usamos como móveis. Quando meu primeiro salário do estágio caiu, já tive que usar dele para pagar o aluguel.

E daí pra frente minha vida mudou completamente.

Hoje em dia fico assombrado com o contraste. Em 2016 vivi uma despedida de tudo que foi minha adolescência: acabou o dinheiro da herança, acabou o tempo livre, acabou a vida de solteiro, acabaram minhas indefinições sobre como seria minha carreira, acabou aquela rotina bastante privilegiada que vivia até então entre viagens, passeios entre cidades, festas, idas a academias, livrarias e parques. De passar a maior parte do dia zanzando pela Avenida Paulista, lugar que eu mais frequentava porque era onde ficava minha academia e minha faculdade (além de algumas das minhas livrarias favoritas), passei a ter uma rotina estruturada de estágio de manhã e tarde com aula da faculdade no período noturno. De comer todos os dias em restaurantes, passei a comer humildemente o que dava pra prepararmos em casa (e passamos dificuldades financeiras ao ponto de passarmos fome às vezes).

Foi realmente uma viagem abrupta “do luxo ao lixo”. O cortiço era precário e a Jaque veio para São Paulo recém-formada, procurando emprego numa cidade nova. No começo, o que nos mantinha era só o dinheiro do meu estágio, um salário mínimo que tinha sido pensado para que um jovem universitário pagasse suas baladinhas de fim de semana, não para que ele saísse da casa dos pais com uma namorada procurando emprego, sem ajuda nenhuma dos pais, para ambos morarem de aluguel.

Minha família inteira foi contra. Meu pai, que ainda não entendia a gravidade da minha situação familiar, era contra eu sair da casa da minha avó indo para um lugar tão precário quanto um cortiço. Eu estava aos poucos explicando melhor para ele minha situação — na verdade, foi mais a Jaque quem começou a dar uma perspectiva terceira, que era mais disposta porque ela insistia em explicar onde eu costumava desistir, e que era vista por quem não confiava em mim (ou seja, todos) como mais isenta. Minha mãe e minha avó ficaram com medo de que eu as abandonasse, eu acho, porque fui morar do outro lado da cidade onde consegui um aluguel barato. Com minha ausência definitiva da casa delas, a situação das duas pioraria mais ainda durante os próximos anos. Sem a ajuda nem o aval deles e sem herança, o que eu tinha era o salário do estágio. Mas não me importei nem um pouquinho. Ter ido com a Jaque era feliz por si só. Ter finalmente saído da casa onde morava antes, coisa que eu sonhava em fazer desde criança, foi feliz por si só. Passar fome parecia só detalhe. Ser um cortiço parecia só detalhe. Eu estava convicto, como vinha desde dezembro de 2014, que o caminho da minha vida era aquele. Sabia o quanto era significativo no meu caso conseguir engrenar um relacionamento saudável. O quanto era significativo um estágio com a escrita.

Mas foi duro.

Em 2017 eu e a Jaque sofremos muito. O primeiro emprego que a Jaque achou era terrível e ela teve que se demitir depois de poucos meses por problemas de assédio. Fizemos dívidas, passamos fome, brigamos, passamos perrengue. Era o meu último ano de faculdade, então eu precisava intercalar fazer TCC com lidar com as dificuldades e trabalhar.

Mas eu estava num período muito produtivo criativamente e meu Medium seguia crescendo. Decidi que iria postar nele os capítulos que tinha do Eu Só Existo às Terças-feiras e que, quando chegasse no último escrito até então, voltaria a escrever para concluir a história.

Comecei a publicar o Terça no Medium em 02 de março de 2017. O retorno foi muito bom logo de partida. Fui convidado por uma das principais publicações do Medium na época, a Crônicas Trendr, a postar os capítulos com eles. De uma forma muito astuta, eles resolveram publicar um capítulo por semana, sempre às terças-feiras (essa era uma ótima ideia que fiquei com raiva por não ter sido minha). Fizeram um portal dedicado ao meu livro e foi por lá que os capítulos saíram durante os próximos meses.

O último dos capítulos que eu tinha escrito em 2016 foi publicado no Medium em 27 de junho de 2017. Depois disso, sofri por mais um mês com um bloqueio. Já tinha chegado ao ponto em que muitos leitores (mais ou menos uns dez, o que para mim era “muitos”) me cobravam querendo saber quando a história ia voltar.

Alguns dos comentários que mais me deixaram feliz entre aqueles que o Terça recebeu no Medium e no Wattpad ao longo dos anos. Sem retornos desse tipo, eu provavelmente não teria terminado o livro nunca.

Não me passa desapercebida a ironia de que o Terça é um livro que só existe finalizado devido a um equilíbrio delicado entre pressões e vontades do público e pressões e vontades minhas.

Não fossem os comentários engajados dos leitores, que desde o começo trataram o Terça com um carinho e atenção especial que se destacava muito em comparação a qualquer outra coisa que já tinha escrito, talvez eu não tivesse tido o ímpeto necessário para retornar depois do hiato para finalizar o projeto. A pressão deles foi fundamental para isso, então num certo sentido devo a existência desse livro a eles.

Ao mesmo tempo, foi muito consciente que eu entrei na escrita da segunda metade ciente de que minha energia e motivação para escrever aquela segunda metade da história dependiam da liberdade criativa para tomar as decisões que eu bem entendesse, decisões que desde o começo eu sabia que eram às vezes muito ousadas e experimentais, com risco de serem impopulares. Sabia desde o começo que a segunda parte seria mais surreal, abstrata, densa e lenta que a primeira, que isso provavelmente seria visto como um defeito, mas sabia também que esse era o único jeito que eu tinha para voltar a esse projeto com a motivação necessária para completá-lo.

O livro que surgiu, portanto, é um filho híbrido entre as concessões feitas aos leitores e as concessões feitas a mim enquanto autor. Sem esse delicado lugar no meio desses dois mundos, essa seria outra das muitas histórias que eu teria abandonado na metade.

O capítulo 15, o primeiro que escrevi em 2017, foi publicado em 22 de agosto daquele ano. Junto dele publiquei esse comentário prestando satisfações aos meus fiéis leitores:

Dali em diante, segui a rotina de escrita do Terça durante os próximos meses, intercalando a todo o resto das minhas demandas, ao caos do cortiço, à vida de morar junto com a Jaque e passar nossos perrengues iniciais, ao primeiro ano de trabalho como redator no qual ainda me estabelecia, ao TCC.

O último capítulo do Terça foi publicado no Medium em 24 de outubro de 2017. O livro era todo cheio de referências a Dezembro, meu projeto anterior. Na história, Terça escreve um livro para dar de presente à sua contraparte Sábado, que é um dos principais antagonistas da história. O livro de Terça sobre “uma epifania a ligar os sete dias da semana” empresta trechos e ideias de Dezembro: termina com as mesmas palavras do relato que fiz em 2015, “outros dias, outras vidas, outros” e entoa o refrão “tudo é; algo há”, a frase que formulei no momento da epifania em 17 de dezembro de 2017 e que aparece, além de Dezembro e do Terça, em diversos outros projetos meus. A última cena de Eu Só Existo às Terças-feiras, com o protagonista tendo uma epifania profunda sentado numa escadaria no meio da rua depois de um longo período de desespero, é uma reprodução exata do que eu mesmo vivi em 17 de dezembro de 2014. Pelo simbolismo de estar comigo na vida de cortiço quando terminei o projeto, a dedicação do Terça ficou para a Jaque.

Meu frenesi de produção da época foi absoluto e até hoje é algo que não entendo direito como consegui realizar. Na mesma semana que finalizei o Terça, finalizei a monografia que era meu TCC (inspirada também na minha epifania e com psicologia analítica de Jung como um de seus referenciais). Era uma monografia muito mais extensa e ambiciosa do que o necessário, eu diria que até imatura e irresponsavelmente ambiciosa, mas me garantiu um dez com louvor. Na mesma semana finalizei também um ensaio de quase trinta mil palavras, outra vez inspirado pela epifania, articulando de forma mais solta as mesmas ideias que fui construindo durante a monografia. O Terça, com suas sessenta mil palavras, a monografia, com cinquenta mil palavras, e o ensaio com trinta mil. Os três projetos foram feitos mais ou menos ao mesmo tempo e finalizados de uma só vez. Na época fazia sentido pra mim porque pareciam só linguagens diferentes pra dizer as mesmas coisas.

O tempo é um bicho curioso e mostra como a literatura tem força. Desses três projetos, hoje em 2024 só gosto ainda do Terça. Como linguagem de literatura, ele funciona em suas metáforas. Minha monografia da graduação me incomoda porque me parece provisória e imatura e o ensaio, no qual eu tinha sido mais solto ainda, é talvez uma das coisas que mais me arrependo de ter escrito na vida por diversos equívocos que tomei em sua escrita. Mas os três projetos juntos foram importantes e me direcionaram adiante. Ao terminá-los eu estava exausto, mas realizado.

Alguns dos leitores do Terça comemoraram quando terminei de escrever e me agradeceram. Alguns deles estavam me acompanhando desde 2016 e ficaram muito felizes quando retornei do hiato.

Tudo que escrevi de literatura nos anos seguintes seguiu uma progressão lógica do que tinha feito ali. Minha dissertação do Mestrado, anos depois, foi inspirada ainda pela mesma epifania, mas foi mais contida, pragmática e protocolar (o que é bom). Continuei crescendo no Medium de pouco em pouco, continuei me estabelecendo como redator (e nunca deixei de trabalhar com isso, em 2024 completo oito anos ininterruptos de trabalho nessa área; recentemente comecei inclusive a dar aulas ocasionalmente sobre). Eu e a Jaque passamos ainda por uma infinidade de novos perrengues, mas nos estabelecemos e casamos.

Tive que intervir na situação da minha mãe e da minha avó em 2019. Tive que morar com minha avó durante alguns anos, arrumar as finanças das duas, minha mãe precisou ser internada depois de uma piora do seu quadro bipolar. Mas hoje ambas estão muito bem e vivem bem. Estão as duas em Indaiatuba, cidade que descobri graças à Jaque e que tem muito mais qualidade de vida e muito menor custo de vida. Minha mãe numa casa e minha avó em outra, cada uma com suas contas separadas, o que resolveu o caos financeiro de antes e contribuiu também para a saúde mental e emocional de ambas (e minha).

Mas estou me adiantando, vou quebrar para o próximo e último capítulo desse making of. Daqui, o que importava era o hiato e o contraste. Antes do hiato, primeiros catorze capítulos do Terça feitos quando eu era um bon vivant da Paulista; depois do hiato, os oito capítulos finais (que na verdade são a outra metade do livro porque são mais densos, lentos e longos) feitos em 2017 quando eu era um estagiário que tinha passado da solteirice para namorar e morar junto em menos de um ano, que tinha passado de nunca trabalhar para trabalhar pagando aluguel em menos de um ano, que em menos de um ano tinha passado de nunca ter sido honesto para estar me mostrando inteiro para alguém.

A vida que tenho hoje começou toda em 2017. Foi uma desgraça quando vivi, muito difícil mesmo, mas vendo os resultados sinto que valeu bastante a pena. Pelo Terça, que trouxe frutos inesperados lá na frente. Mas pelo estágio que virou minha carreira, o morar com a namorada que virou meu casamento, o aprender a ser uma pessoa inteira que trouxe de forma mais concreta para a realidade externa o processo que tinha começado abstrato e subjetivo em dezembro de 2014. Eu morava num cortiço, passava fome, minha família ainda estava um caos, meus pais me davam pouco ou nenhum suporte frente às minhas dificuldades, eu e a Jaque tivemos nossas crises mais sérias naquele período, mas eu sabia que era esse o caminho. O que plantei em 2017 demoraria em alguns casos muitos anos para germinar. O Terça, por exemplo, trouxe frutos só em 2024, sete anos depois.

E é sobre isso que falta falar.

4. Como o Terça foi publicado e virou finalista de um prêmio

Um print do vídeo de divulgação gravado na chácara em que morei em São Roque. Foi publicado em 31 de agosto de 2022, na mesma semana do lançamento do Terça na Amazon.

2018, 2019, 2020… Os anos foram passando e o Terça entrou no mesmo processo que eu já vinha experimentando com Verde Verdade, meu livro anterior que até então eu também tentava emplacar. Ou seja, um processo formado por experiências sucessivas de rejeição.

Hoje, como adulto, tudo faz mais sentido. O mercado literário é precário. Eu era um ninguém e, pior ainda, um ninguém jovem demais. A princípio, eu não tinha reputação nenhuma para além de alguns poucos anos como redator e um punhado de seguidores no Medium. Fiz Publicidade & Propaganda por covardia, porque teria vergonha de pedir sobretudo ao meu pai que financiasse outra coisa, por pânico das consequências pragmáticas se tivesse feito algo como Letras, porque sabia que precisaria urgentemente me sustentar com algum emprego e supus (acertadamente) que redator publicitário era um cargo com mais empregabilidade e que poderia me sustentar. Mas essa escolha pragmática envolveu algum nível de renúncia às portas que uma formação mais acadêmica ou artística poderiam ter aberto para meus livros. Então eu não tinha nem a formação certa para que me levassem a sério.

Hoje sei de tudo isso e, dados os resultados, fiz as pazes com minha jornada. Ter me estabilizado economicamente na publicidade me viabilizou toda a liberdade criativa sem concessões que eu desejava na literatura. Mas isso é hoje, 2024. Por anos, eu sofri. Quem me respondia, dizia não. Ou então era uma editora predatória tentando me arrancar vinte mil reais e me deixar depois com duzentas unidades não vendidas do meu livro entuchadas na minha casa. O mais comum era que não respondessem. Mandava um e-mail para alguma editora e ficava meses atualizando todo dia a caixa de entrada, sem resposta. Inscrevia meus livros, o Terça e o Verde, em concursos literários e ficava triste quando saíam as listas e nada de mim.

Mas fui crescendo ao lado disso, pouco a pouco. De estagiário para assistente, de assistente para redator pleno. Fiz uma pós-graduação em UX, comecei a pegar projetos que pagavam melhor. Eram coisas técnicas e de publicidade ainda, mas foram ajudando. Fiz daí o mestrado em Comunicação, comecei a dar aulas às vezes e fui aos poucos cobrindo com uma ponte acadêmica aquele abismo que me afastava até então do campo literário. E na minha presença digital ia construindo mais e mais portfólio com meus contos, poemas, ensaios, etc.

Na agência em que eu trabalhava, uma amiga minha que era Atendimento acabava tendo que conferir o que eu escrevia. Conversamos sobre o que eu escrevia e ela quis ler o Terça. Gostou muito e concordou em revisá-lo comigo. Fizemos isso, se não me engano em 2020. E daí o livro voltou a ser uma prioridade pra mim e comecei de novo a procurar caminhos para viabilizar sua publicação.

Em 2021, eu passei por longas e sofridas crises familiares (a internação de minha mãe que comentei, que levou a alguns dos maiores sofrimentos da minha vida incluindo novas crises financeiras, episódios de chorar sem parar e até palpitações por estresse que me levaram um dia pro hospital). No olho do furacão na crise de 2021 eu tinha decidido entrar num mestrado e agora faltava pouco para concluí-lo. A vida mais tranquila de São Roque (tínhamos mudado eu, minha avó e a Jaque para uma chácara lá durante a pandemia, minha mãe foi morar lá também depois da internação) fez bem para toda minha família. A Jaque mantinha uma hortinha e eu criava patos. Estávamos nos recuperando e nos restruturando.

Em 2022, as coisas estavam bastante estabilizadas de novo depois do caos de 2021. Mais do que isso, essa estabilização de 2022 era uma consolidação final do novo estado das coisas. Depois de uma infinidade de desafios absurdos que a gente tinha aguentado, as coisas estavam todas prestes a se desenrolar.

Decidi que ia revisar mais uma vez e publicar o Terça na Amazon para concorrer à sétima edição do Prêmio Kindle de Literatura. Tirei as versões antigas do livro do ar no Medium e no Wattpad. Pedi a uma outra amiga minha de agência, que era designer, que me ajudasse com uma capa.

O livro foi publicado e inscrito no Prêmio Kindle em 27 de agosto de 2022. Na mesma semana, a Jaque gravou um vídeo meu no jardim da chácara, contando do lançamento do livro, com nossas cachorras brincando ao meu redor enquanto eu explicava a premissa. Na mesma época, tinha acabado de publicar meu primeiro livro impresso, uma edição artesanal lindíssima de um ensaio sobre tecnologia que fiz com a editora Casatrês. Então estava eufórico, é isso que define. Depois de um monte de problemas, coisas boas vinham vindo.

No mês seguinte, fui convidado para uma entrevista contando sobre o livro num streaming do IS Impérios Sagrados. Foi no mesmo dia em que apresentei e fui aprovado na minha dissertação do mestrado. Fiquei extremamente ansioso até o resultado do Prêmio Kindle sair, ansioso como nunca tinha ficado antes, mas não fui finalista.

O Terça seguiu lá, como ebook publicado, e continuou chegando ocasionalmente a novos leitores. A premissa era muito chamativa e a sinopse, que modéstia à parte eu fiz muito bem, captava rápido o interesse. Nos meses seguintes, minha avó foi morar sozinha em outro lugar de São Roque e eu e a Jaque fomos passar alguns meses em Indaiatuba. De lá mudamos de volta para São Paulo e dessa vez minha mãe e minha avó que se mudaram para Indaiatuba, vivendo na situação mais tranquila do que nunca em que ambas estão hoje.

Prestes a mudar de vez para São Paulo, em agosto de 2023 publiquei Verde Verdade na Amazon também para concorrer à oitava edição do Prêmio Kindle. Fiz um vídeo de divulgação dessa vez, na varanda do apartamento do meu pai. Quando o resultado saiu e não tinha sido finalista de novo, no final do mesmo 2023, eu já morava em São Paulo no apartamento em que vivo hoje. Fiquei (um pouco) menos ansioso com o resultado dessa vez e (um pouco) menos chateado com não ter sido finalista

Na mesma época a Amazon anunciou um outro prêmio, uma primeira edição de um Prêmio Amazon de Literatura Jovem. Como era a primeira edição, deixavam que fossem inscritos livros não só de 2023, mas também de 2022. O Terça, que estava lá na Amazon fazia mais de um ano, podia se inscrever. Àquela altura, era o único prêmio ou concurso que o consideraria.

Pela primeira vez na minha vida, parei para considerar que o Terça talvez pudesse ser encaixado no gênero de literatura jovem, ou YA. Eu nunca tinha pensado no gênero dele antes, para além do ficção psicológica com que costumava descrevê-lo. Ainda parecia um pouco desconjuntada a ideia de um livro meu como uma ficção jovem adulta, mas eu achei que, forçando um pouco a vista, dava pra considerar essa perspectiva. Ao longo dos anos tinham mesmo sido principalmente os jovens que adoraram o Terça. E ele começava o livro adolescente, afinal.

Além disso, e mais importante, eu não tinha nada a perder . Então me inscrevi, sem grandes expectativas.

No começo de 2024, ligaram pra mim avisando: entre os mil livros inscritos, o seu é um dos cinco finalistas. Até hoje a síndrome do impostor me ataca: sinto volta e meia que deve ter sido um engano. Como a própria inscrição do Terça tinha sido um grandecíssimo “vai que”, eu não tinha grandes ambições ou expectativas de ganhar. Mesmo assim, fiquei ansioso pra cassete pelos próximos meses. Em 28 de maio de 2024, a cerimônia de premiação aconteceu.

Não ganhei. A vencedora foi a Juliana Giacobelli e, isso já não me incomodou lá na hora, a vitória dela faz cada vez mais sentido conforme vou refletindo mais ao longo dos meses. Na verdade, pra mim a vitória de qualquer uma das quatro finalistas que concorreram comigo teria feito mais sentido do que a vitória do Terça. Todas elas pareciam mais intimamente ligadas ao universo de YA e suas obras pareciam se encaixar melhor às expectativas desse gênero. Três delas, incluindo a vencedora, já tinham uma certa presença e comunidade de leitores porque vinham há anos escrevendo especificamente literatura jovem. Eu me senti um peixe pequeno porque era mesmo. E me senti um pouco deslocado porque de fato estava.

Fotos do dia da premiação. A primeira, com todo mundo que foi finalista: Camila Sodré, Tati M. Ribeiro, Juliana Giacobelli (a vencedora), Julie Pedrosa e eu. A segunda, quando levantei todo animado meu trofeuzinho de finalista no palco mais ou menos como o meme daquele cara que estoura o champanhe e se exalta na sua comemoração pra ganhar “só” o bronze. A terceira foto só deixei porque acho que saí bonito nela.

Mas fiquei feliz demais. Foi um pontapé que colocou todo o resto em movimento. Aproveitei como pude para surfar a onda. Publiquei um novo livro na sequência, apareci em grandes portais de notícias. Graças ao trabalho muitíssimo competente de assessoria da Com.tato, dei entrevistas para a rádio dos deputados de Brasília, para a rádio nacional, para diversos portais literários (dessa aqui gostei demais). Falando do Terça, de saúde mental ou de autopublicação escrevi textos para lugares como a Publishnews e Veja. Fora isso, meu livro foi indicado pela revista Galileu. Fiz contato com grandes escritores, alguns deles que eu já conhecia e admirava, e ouvi da boca de alguns deles que tinham lido meu livro e gostado.

No meio de tudo isso acontecendo, tintilava em mim certo conflito. Eu nunca tinha me visto como um autor de YA e as críticas que o Terça recebia eram normalmente em relação às suas limitações para se encaixar adequadamente às convenções esperadas desse gênero. Era um livro muito denso, muito longo (às vezes até repetitivo), confuso e com certas partes bastante abstratas ou pesadas. Quando me diziam isso, eu respondia quando podia ser honesto exatamente a verdade: que tinha inscrito o Terça no concurso da Amazon para ver se colava e colou, mas eu mesmo não tinha nunca parado pra pensar se ele era um livro de literatura jovem ou não até então.

E daí vi como esse mercado todo funciona. Fui à bienal, conversei com autores publicados e com gente das grandes editoras. Vi as paredes repletas de livros que vendiam bem, mas faziam concessões: certos temas, certas estruturas narrativas, um determinado número de páginas, um tipo específico de linguagem. Respeitavam o que se esperava do gênero em alguma medida. Funcionavam pragmaticamente como produtos. Fiquei tentado a me conformar. Eu podia tentar escrever livros para o público jovem dali em diante? Exclusivamente isso? Poderia tentar me enquadrar e me focar? Tentar viabilizar uma carreira mais estruturada?

Fiquei alguns meses com essas questões na cabeça, mas enquanto isso fui seguindo normalmente com o que escrevo desde sempre e as contradições começaram a aparecer. Desde que comecei a escrever, o que sempre fiz foi escrever um pouco de tudo. Se o resto da minha publicação ao redor do Terça já não era apropriada ao público jovem lá em 2016 e 2017 (meu primeiro livro, o Verde escrito em 2013, é extremamente pesado e adulto), aos 29 anos e em 2024 essa minha amplitude e o desafio implicado nela estão mais evidentes do que nunca.

Quem entrasse no meu perfil do Medium em maio deste ano, quando foram divulgados os cinco finalistas, encontraria um poema experimental com glitch text que era hermético, críptico e com referências a mitologia grega. Logo embaixo estava um conto trágico de ficção psicológica sobre um funcionário público chamado Alcebíades com um fetiche compulsivo por pelos pubianos.

Eu nunca me senti apropriado. Não me sinto ainda.

Mas o Terça está lá. Foi um finalista do prêmio, foi adaptado em audiolivro e hoje é mais lido do que nunca. Sou muito compreensivo e receptivo às críticas que ele recebe e que imagino que vá continuar recebendo. Em certo sentido, concordo com boa parte delas. Percebo que é um livro no meio do caminho, que às vezes é confuso, adulto e complexo demais pro público jovem, ao mesmo tempo em que é simples, fantástico e juvenil demais para o público adulto. Com mais experiência e outra perspectiva, tem muita coisa que eu faria diferente se estivesse escrevendo hoje em dia, mas preciso ser justo com o autor jovem que fui lá atrás e tento respeitar às decisões e limitações de quem fui.

Reclamam que fica lento e confuso do meio pro final. Concordo e não tenho adendos em relação a isso. Alguns acham o elemento fantástico incômodo, ou acham que alguns aspectos dessa fantasia (como o conflito de Terça com Segunda no final) deixam a estrutura clichê. Acho que é uma leitura válida, mas me divertiu poder explorar a metáfora psicológica desse jeito. Enfiar no final de uma ficção psicológica uma cena de “batalha”, com frases de efeito e tudo, parecia pra mim um jeito leve e lúdico de contrapor algumas das coisas mais pesadas daquele mesmo pedaço da história, que por trás do que poderia parecer bobo estava discutindo coisas como ideação suicida e supressão neurótica de traumas.

Alguns acham que existe algo de muito fácil na “solução” do final, o que também acho que faz sentido como leitura possível. Mas minha leitura e minha decisão foram outras porque considero que o final funciona mais como um primeiro passo interno de um novo processo que dali em diante seria externo (lidar com os pais, com as escolhas para a vida adulta, voltar talvez à terapia, reaprender a se relacionar romanticamente), inclusive um novo processo externo que seria também bastante desafiador. A epifania de Viktor no final não era uma cura absoluta, nem um milagre, nem uma panaceia, como não foi o caso comigo.

Reclamam do papel dos pais do protagonista, que não ajudam nada em sua crise e às vezes atrapalham. Não respondo sempre tão honestamente, mas a verdade é que os pais dele são assim porque eu tive que enfrentar minhas próprias crises sem apoio da família e foi daí que veio a inspiração.

Criticam também a decisão de no final o protagonista não terminar namorando com Bia, a jovem com quem o Quarta, uma das personalidades fragmentadas, tinha um caso ao longo da história. Sei bem por qual motivo essa decisão minha não é popular, mas não faria diferente porque isso simbolizava pra mim a necessidade de às vezes deixar para trás jeitos antigos de se relacionar (como foi no meu primeiro romance frustrado) para se reconstruir como pessoa antes de achar um novo relacionamento.

Reclamam principalmente que o final, que é o momento da epifania, não mostra o que acontece com o Viktor depois que integra suas personalidades. Dizem que é um final muito fácil, ou vago, ou um cliffhanger bobo. Entendo e me sinto até lisonjeado que quisessem mais, mas não faria diferente. Porque no momento em que a epifania acontece, a mudança subjetiva e interna é tão drástica que as consequências externas desse processo são só uma questão de tempo para se apresentarem — e para mim, no contexto daquela história, não importavam. Em Terça, a grande transformação interna acontece primeiro e é prioritária; as consequências externas vem depois e são secundárias — portanto o final não precisava delas.

Sei bem que todas essas decisões são impopulares e, numa perspectiva do livro mais como produto, ou como narrativa mais acessível ou harmônica, não são as que agradariam aos leitores, nem às editoras. Mas o Terça não nasceu para ser acessível, ele nasceu para tornar mais acessível o que tinha sido originalmente um livro impublicável de 150 mil palavras sobre uma crise existencial de primeira grandeza. E esses são objetivos bem diferentes. Se ele está sendo lido por tanta gente, mesmo com seus trancos e barrancos que não se conformam bem às expectativas, para mim ele é um sucesso.

Também sei bem que esse sucesso é um acidente de percurso, quase uma casualidade, porque o que atrai os incautos ao Terça não é meu hermetismo, nem a densidade do final impopular, nem as vinculações da história às inspirações na minha vida real que ninguém (até esse texto) conhecia. O que atrai no Terça é antes de mais nada a premissa, que é fácil de explicar e que já capta o interesse desde a sinopse, junto a uma primeira parte cheia de criatividade e boas intrigas que o resto do livro abandona para virar um negócio complexo e bagunçado que fiz mais para mim do que para qualquer outro.

Minha escrita, que não tenho problemas em dizer que considero bastante competente, também ajuda a captar o interesse logo de cara e segura a barra mesmo quando o livro começa a gastar demais a paciência do leitor lá pro final. O começo do Terça é muito bom pra todo mundo, mas o Terça inteiro é um livro para poucos. Tenho recebido retornos diversos, muitos deles antagônicos. Tem gente que ama o final, tem quem odeia muito. Tem quem elogiou como a questão familiar é tratada (normalmente quem teve famílias parecidas), tem quem detestou.

Não me ofendo e me divirto. Tudo isso parece pra mim ainda um pouco surreal. O fato de que o Terça entrou um pouco no circuito dos livros para jovens, captando volta e meia mais e mais leitores desavisados, ainda é para mim um absurdo daqueles que não dá pra acreditar. O fato de que eu, com toda minha estranheza, acabei nesse lugar inusitado para meu pontapé inicial: algo de deixar incrédulo.

Todo o dilema que tive sobre seguir ou não como autor voltado ao nicho jovem é um falso dilema. Só entreti a questão porque às vezes sou bem besta. É óbvio que eu não conseguiria nem se quisesse. Não seria midiático do jeito necessário, não teria o tipo de carisma que essa posição demanda. Não sou feito para me conter a um só nicho, nem seria capaz de só produzir exclusivamente para o público jovem sem ser extremamente infeliz, ou eventualmente sendo extremamente inapropriado. No mesmo setembro em que saiu o audiolivro do Terça narrado pelo Fábio Lucindo, célebre por ter sido o dublador do Ash Ketchum de Pokémon, estava eu aqui no meu Medium publicando um conto de ficção especulativa e body horror em que um influencer chamado Tarrare inventa um nicho chamado “mukbang vore” e faz um streaming engolindo uma pessoa viva. Em agosto deste ano, mais uma vez me inscrevi no Prêmio Kindle, dessa vez com uma ficção científica densa e especulativa, com uma ridícula dedicatória à minha cachorra, em que (alerta de spoilers, pule esse parágrafo se quiser ler o livro) crianças de cinco anos fumam cigarro, em que um personagem se suicida duas vezes, em que um cachorro vive a vida de um ser humano via capacete de imersão como se o Neo ao sair da Matrix fosse um border collie ao acordar, e em que um influenciador é queimado vivo numa praça por seus seguidores depois de perder tudo.

Eu cresci assistindo Pokémon. Foi meu desenho de infância. Ouvir a voz do dublador do meu protagonista de infância lendo meu livro, descrevendo cenas inspiradas diretamente na minha epifania de 2014, foi profundamente surreal e inusitado pra mim. Ouvi o Ash Ketchum indo a consultas de psicólogo como o Terça, reproduzindo assim uma versão metafórica dos meus próprios processos terapêuticos com meu próprio psicólogo. Ouvi o Ash, que foi o herói do meu menino, da minha criança interior, dizendo no meu ouvido “tudo é, algo há”, o mantra do momento mais absurdamente particular da minha vida — e isso só vai compondo o absurdo mais e mais.

Chorei ouvindo o audiolivro por uma grande felicidade, mas uma felicidade estranha, difícil de definir ou adjetivar melhor como outra coisa que não surreal.

Se foi um acidente que eu tivesse esses cinco minutos de fama e se agora meu lugar for voltar à obscuridade, posso garantir que aproveitei do melhor jeito possível dessa experiência — e que vou continuar escrevendo exatamente do meu jeito depois disso, exatamente como fazia antes.

O título desse making of veio de um texto que publiquei aqui no Medium em 16 de junho de 2016. Foi uma das primeiras coisas que publiquei por aqui. Eu tinha 21 anos, estava começando meu primeiro namoro (que hoje é meu casamento). O texto é curtinho e menciona o Terça porque era algo que eu vivia e escrevia na época. Também menciona várias máximas e ideias que eu vinha carregando comigo desde a epifania de 2014.

Como quase tudo que eu escrevia naquela época, ele é pedante sem remorsos, muito abstrato, meio críptico e bem maluco. Quero deixá-lo aqui na íntegra:

Requiem for a Maybe;

Existo além de minha percepção de existência; existo além dos confins de minha própria mente. Minha alma não tem bordas delimitadas, nem mapa, nem planta, e não se finda nela mesma.

Quem você seria? Quem você seria se não tivesse dado aquele específico beijo, naquela específica boca, ou se tivesse selado naqueles outros lábios de quem não tocou, se não conhecesse ou escutasse aquela música, se não tivesse aquela conversa, se não visse aquele filme, não encontrasse aquelas pessoas, aqueles amigos, grupos, professores, quem você seria sem aqueles amores?

Não existe “eu e você”, existe “nós”. Não existe dentro e fora. Eu me amo, eu amo o mundo; eu odeio o mundo, eu me odeio.

Quem você seria se tivesse sido a outra e não a uma? Quem você seria sem aquela escolha, sem aquela noite sem dormir, sem aquela dor que te marcou, sem teus específicos traumas? Quem você seria com os sofreres dos outros, com as dores que não te doeram? Quem você seria em outro curso, outra escola, outra cidade, outra família, outros pais, outro ano?

O louco retorna à primeira casa” é o que sonhos me dizem. Ele é o único que de fato entende a beleza do mundo. Eu só existo às terças-feiras; eu existo todos os dias. Eu existo além das cisões e a dor me levou à busca por seu oposto. A sombra me guiou à luz, o medo me levou ao destemor. A fratura me unificou; a loucura que me fez são.

Quem você seria em outra vida? Quem você teria sido se você já não fosse quem agora é? Quem seria se não tivesse vivido algo que viveu, ou se vivesse algo que deixou de ter vivido? Quem você seria se a resposta dos “não” tivesse sido “sim”, ou vice-versa, quem você seria se não tivesse aceitado certas coisas? Quem você seria sem os eventos, pessoas, lugares, atos, memórias, que definiram o que você veio a ser? Quem você seria em outro lugar que não exatamente onde está, onde está exatamente agora? Quem seria? Quem?

Eu queria escrever esse making of faz algum tempo e estava esperando o audiolivro sair para mencionar tudo que envolvia o Terça e fechar esse capítulo da minha vida. Mas o audiolivro saiu faz um mês e ainda faltava uma chave temática para isso aqui ser escrito. Foi lendo esse textinho de 2016 que descobri não só o título que esse relato de 2024 teria, mas também a grande ironia: que eu tenha me sentido tentado a me prender a uma persona, a um estado de tentar ser uma coisa só, diante da mensagem de abraçar a diversidade de si que o Terça pregava. Que eu tenha considerado me formatar para ser apropriado a um nicho em particular, numa só direção mais focada, como possível consequência do sucesso de um livro que pregava uma liberdade de ser em todas as direções. Às terças, eu posso ser um escritor de ficções jovens e, porque isso também faz parte de mim, fico feliz de ter sido reconhecido como tal. Mas a semana tem mais outros seis dias em que sou muitas outras muitas coisas.

Não vou ser purista só por ser purista. Admiro quem tem a competência para encontrar sucesso num gênero. Encontrei escritores e editores admiráveis nesse processo todo que tratam sua produção e suas carreiras com a seriedade que exige um mercado para se manter viável e, talvez mais ainda, que exige um comprometimento responsável com a escrita para jovens. Mas ter um salário bonitinho como redator significa que posso me dar ao luxo dos meus caprichos. De escrever sobre pentelhos no mesmo espaço, no mesmo nome, no qual escrevo sobre ficção científica, ficção psicológica e extensos ensaios sobre mitos e processos de identificação.

Esse sou eu e vou continuar sendo, na obscuridade ou não, quem sou.

Por alguns dias, graças ao Terça, fui aos holofotes. Mas eu existo todos os dias e vou continuar existindo seja nos holofotes futuros, por qualquer caminho que vierem (se vierem), ou seguirei existindo na falta deles, caso minha excentricidade acabe por me alienar de vez. Não é um sacrifício, é um compromisso com minha voz, com meu caminho e comigo.

É um compromisso com tudo que vivi e vivo de autêntico, com minha relação com meu falecido avô, com minha família com a qual nos anos mais recentes tenho reformado vínculos no mais saudável que eles podem ser. É um compromisso com minhas amizades que são mais autênticas hoje em dia, com meu casamento em que todo dia vou aprendendo a me posicionar de um jeito mais e mais honesto. Não tenho compromisso nenhum com qualquer tipo romantizado de sucesso, nem com qualquer tipo romantizado de fracasso. O compromisso que tenho é sobretudo comigo.

Aos 29 anos, estou prestes a entrar numa nova década ciente, com grande deleite nisso, de que outra vez não faço a menor ideia de onde vou parar.

Escrevo isso em outubro de 2024, dois meses antes da minha crise de 2014 completar uma década, tendo como suas consequências mais diretas possíveis de se vincular a conclusão um mestrado e um casamento, além da voz de um mestre Pokémon dizendo “tudo é, algo há” e narrando um rapaz desesperado sentado numa escadaria quando tem, súbita e milagrosamente, um insight intenso que o leva a gargalhar e chorar ao mesmo tempo.

Não quero também ser derrotista. Cheguei até aqui, o que já é um ótimo começo, e acho que hora ou outra devo chegar a mais lugares. Minha combinação de insistência teimosa com sorte funciona a seu ritmo e alguma hora trará novos frutos. Uma última vez, não finjo modéstia e posso dizer que me sinto seguro e competente no que realizo e sei que ainda posso vir a realizar com minha escrita. Para além da minha ambição e ansiedade, preciso voltar a deixar em perspectiva que pode ser que essa jornada tenha meandros, como inclusive teve o caminho do Terça até o sucesso.

Minha escrita é muito guiada por esse ideal de liberdade, mas eu sei bem que minha romantização de autonomia pouco se concilia com quem trabalha nesse mundo literário diariamente e precisa ser muito mais pé no chão do que sou. E no que posso me comprometer, vou fazer o possível: seguirei publicando livros e inscrevendo eles em concursos, com capas bonitas e uma campanhazinha de divulgação, com presença em redes sociais, com a esperança de ser finalista ou vencedor de algum prêmio algum dia por uma mistura de acaso com a qualidade daquilo que produzo.

Minha ficção científica que nesse momento está concorrendo ao Prêmio Kindle de 2024? Fico ansioso e esperançoso de que seja finalista, mesmo sabendo que é pouco provável (ainda mais logo em seguida de ter sido finalista de outro prêmio da Amazon também). Já sei qual é o próximo livro que vou inscrever em concursos, um que inclusive está pronto, já estou na metade de mais um e sei qual vai ser o próximo depois desse. Se algum dia eu tiver a inspiração pra escrever outro romance que possa ser entendido como jovem, vou sem medo escrevê-lo e publicá-lo. Mas vou escrever primeiro e pensar só depois se qualquer história pode ou não se encaixar em algum gênero . Porque sou carente, espero alcançar mais leitores e que os leitores que alcance gostem de mim. Mas nunca vou editar o que escrevi antes para agradá-los porque fazer isso seria distorcer uma peça fundamental de algo que para mim é um projeto maior.

Por isso, mesmo com os pedidos dos leitores que já comentaram isso e mesmo se um editor eventualmente pedisse o mesmo, eu jamais editaria o final do Terça, nem faria uma sequência dele. Fazer isso aos 29 anos sendo guiado por expectativas de leitores ou editores seria para mim impossível porque não sou mais o mesmo autor que escreveu essa história aos vinte e poucos anos de idade. Na publicidade, faço tudo que me pedirem porque preciso de dinheiro para viver. No que escrevo para além disso, eu me dou ao luxo de certos princípios criativos que não ultrapasso. Mantenho alguns crivos, alguns valores. Mas se puder conciliar algum dia, de alguma forma meio milagrosa, sucesso e viabilidade comercial a fazer do meu jeitinho, daí não vou me recusar.

Porque sou publicitário, sei que conseguiria e talvez até gostasse de escrever por demanda literária, um projeto específico que me pedissem ou para tentar aproveitar alguma brecha ou uma modinha, um mercado bombando. Num caso desses trataria essa escrita com algum distanciamento e como uma outra demanda de trabalho. E num livro assim deixaria que mexessem por pragmatismo como deixo que mexam nos meus documentos técnicos de redator. Mas os livros que fiz dando tudo de mim, enfiando tudo de mim neles, não consigo tratar dessa maneira.

Quando me comprometi com a escrita lá na adolescência, eu o fiz aceitando os piores cenários possíveis, que naquela época incluíam talvez acabar até debaixo da ponte, e só de estar vivo e bem, só de ganhar às vezes alguns centavos com isso, já é além do esperado para mim. Sou feliz toda vez que um leitor que me encontra gosta de mim. Não me ofendo quando me encontram e me odeiam. Então não tenho o que perder.

Para quem leu o Terça, espero que esse estranho making of tenha sido também uma boa experiência. Espero que tenha ajudado a contextualizar melhor algumas coisas — as origens das qualidades e dos defeitos do livro, a jornada até ele ser publicado, como enxergo a narrativa e a escrita. A quem também escreve, em particular, espero que tenha sido um bom relato do caminho de um livro e de um escritor bastante esquisitos.

Comecei a escrever esse making of numa terça-feira, 01 de outubro de 2024, e queria usar disso para algum trocadilho bobo de fechamento com o nome do livro. Mas a escrita seguiu madrugada adentro e agora já são cinco e meia da manhã de quarta-feira, 02 de outubro — da janela vejo que já amanhece.

Até o dia em que eventualmente deixarei de estar aqui, existo escrevendo. Por enquanto, eu existo todos os dias.

E porque virei a noite nessa escrita, vou agora dormir.

A quem ler, deixo isso para ser interpretado como for.

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Rodrigo Goldacker
Rodrigo Goldacker

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