Queria Querer

Meu nome é Rodrigo Goldacker e o meu maior problema é que nada me convence.

Rodrigo Goldacker
6 min readJun 6, 2016

Toda partícula da existência contém dentro de si todos os adjetivos existentes e inexistentes. Sejam estes os adjetivos já proferidos, os que ainda serão ditos, aqueles que jamais serão concebidos, sejam eles complementares ou completamente apolares, contraditórios, todos eles habitam tudo ao mesmo tempo. O definível é limitado, normalmente, a partir da subjetividade do observador que adjetiva, o ângulo pelo qual este olha. Um cubo que intercale lados brancos com pretos pode ser somente preto diante de alguém que observe a só uma de suas faces. Cada nomeação, cada classificação, tanto é arbitrária quanto não o é. Cada escolha existe tanto quanto não. E se tudo pode possuir todos os adjetivos, dá quase na mesma assumir que tudo não possua adjetivo nenhum.

Meu nome é Rodrigo Goldacker; eu não acredito em adjetivos.

Eu não comprei nenhuma ideia; nenhum temor. Nenhuma fé, qualquer religião, qualquer medo, qualquer pressão, qualquer manipulação ou da verdade versão, qualquer virtude da nobreza, da pobreza, qualquer certeza; nada me garante, nada me pegou, nenhuma filosofia me fez submisso, nenhum ideal me dominou.

Nenhum dogma, nenhum panteão, qualquer símbolo ou qualquer magia, nem a ciência ou a razão, nem a lógica, a estética, nem o raciocínio ou a emoção, nada me ganha, nada me vence, nada me garante nada; não há Deus que me assuste, não há ciência que me fascine, não há efeito prático, externo, material, que me livre do meu instinto questionador primordial, de não aceitar como absoluto nada que há, de perceber todos os outros seres só como seres, como seres tão perdidos quanto sou.

Invejo a facilidade dos que tem certezas; queria eu acreditar que a ciência vai salvar o mundo, ou que tudo seria melhor se todos fossem éticos, ou céticos, racionais, civilizados, religiosos ou espiritualizados, se fossem sóbrios ou se fossem drogados; queria eu achar que meu objetivo e sentido de vida deveriam ser formar família (jogar outro no mundo para partilhar de minhas ignorâncias primordiais sobre por que estamos aqui?), acreditar que algum deus olha por mim, ou que a culpa é dos políticos; queria eu ser de esquerda, de direita, ser cientificista, ateu ou ser deísta, queria eu que qualquer noção que aos outros segura me segurasse também.

Queria eu acreditar que não somos só humanos, todos humanos, e que tudo que sai da boca alheia não é tão inerentemente invalidado quanto o que sai da minha; queria eu acreditar e julgar valor, achar que o doutor é melhor que o cobrador, queria eu que não soubesse não ser só eu, mas todo mundo, que não sabe mesmo é de nada.

Queria eu me convencer dos mentores, profetas, protetores, dos sábios ou dos professores, queria garantias de que ao escutar alguém serei feliz, de que há caminho certo, que há sentido na vida que parta dos outros e não de mim; queria comprar os desejos fáceis, os quereres óbvios, eu queria querer; queria querer o corpo perfeito, queria querer o carro do ano, queria querer tudo que cada propaganda diz que eu deveria perseguir. Queria que cada manipulação midiática me desse um objetivo, que me cegasse do breu de todos os vazios delegados pelas palavras de cada apresentador televisivo.

Queria engolir os medos que me jogam; queria acreditar nas ameaças, queria temer o “dar errado”, o “morrer sozinho”, o “empobrecer”; queria valorizar o trabalhar muito, muito mesmo, até cansar, até parar de pensar, o alienante esforço que me afugentasse das minhas questões de ócio, de quem tem a chance de, no vazio do tempo livre, não se distrair de si mesmo para do tempo se libertar.

Queria querer desfilar com namorada; querer o casamento, os filhos, a mansão bonita, a empregada; queria querer o sucesso, a cara nas telas estampada, queria comprar os sonhos pobres que grifes de luxo tentaram me vender.

Queria acreditar que há méritos; que não somos todos cartas marcadas. Que li mais livros que o cobrador só porque quis e sou melhor, mais inteligente, não porque pude e tive a chance; queria acreditar que o banqueiro é mais rico do que o operário porque trabalhou e se esforçou mais para isso. Queria também acreditar que há culpas; que é tudo por causa do “homem branco opressor”, ou que é culpa dos esquerdistas, do marxismo cultural, de algum grupo conspiratório, do governo, das corporações, dos terroristas, satanistas, iluminatti, muçulmanos, judeus, nobres, burgueses, qualquer coisa. Queria acreditar que não somos todos igualmente amedrontados e perdidos, todos tão presos nos seus próprios papéis, todos tão cegos ao outro que está do lado. Queria acreditar que há heróis e que há vilões, que não há simplesmente humanos tão iguais dos dois lados de todas as guerras. Queria acreditar que o comunista é melhor que o capitalista, ou vice-versa, queria acreditar que o russo é malvado e o estadunidense é bonzinho, que os chineses são o mal encarnado, que não há sombra dentro do guru tanto quanto que não há luz dentro do presidiário.

Queria acreditar no diabo; no mal, no errado; queria acreditar que os crimes são só dos outros, que eu faria diferente, que não tenho responsabilidade pela dor que acontece do outro lado do mundo para que, do lado de cá, haja meu conforto e estrutura para escrever isso; queria acreditar que não sou culpado por cada boca que salivou com fome enquanto eu sentava em poltronas fofinhas para estudar; queria acreditar que cada mimo ou excesso que me veio não poderia ter sido o básico de outra pessoa.

Queria não acreditar que, no fim e no fundo, somos todos sozinhos; queria me convencer da identidade de grupo, participar de algum rótulo, queria me sentir parte de um movimento; queria acreditar que farei do mundo um lugar melhor, ou pior, que de qualquer forma minha existência será algo além de neutra, que de alguma forma qualquer coisa possa ser qualquer coisa além de neutra. Queria acreditar que há “grandes homens” e homens pequenos, queria acreditar que Hitler nunca chorou e que sempre soube que estava errado, queria acreditar que Gandhi não tinha defeitos. Queria comprar os modelos, os exemplos, que o mundo tentou me vender para definir como deveria me comportar.

Invejo quem vejo estar no Éden, mas mesmo assim acho o paraíso uma ilusão; aquele que está no Éden na verdade só está do meu lado, no mesmo espaço em que eu estou (espaço este que é ao mesmo tempo paraíso e inferno, ao mesmo tempo em que também não é nenhum dos dois), mas está cego às sombras malignas que seus próprios pés ignorantes projetam; queria eu não ter provado da maçã que só me deferiu a sabedoria do conhecimento de minha absoluta ignorância.

O único que me convence de qualquer coisa sou eu. E isso, além de ser libertador e maravilhoso como dizem em cada palestra motivacional por aí, também é horrível e sufocante. Porque a cada pequena verdade que preciso, tenho que criá-la (ou buscá-la?) de dentro de mim, e isso é sempre um processo exaustivo. Não há ninguém no mundo que seja melhor ou pior do que eu. Somos todos diferentes, somos todos iguais. Não há deuses que andem entre os homens. Não há voz iluminada a sair de nenhuma dessas bocas de carne. E essa carne humana que nos faz é sempre a mesma; nossos sangues rubros e quentes não são melhores em uns do que em outros.

Somos todos só gente; queria eu acreditar que alguns são mais gente do que outros. Queria eu acreditar que quem odeio não tem mãe e nunca amou.

Queria eu certezas. Queria adjetivos, culpas externas, méritos internos. Queria acreditar que exista dentro e fora, interno e externo, eu e o mundo, e que eu posso classificar as instâncias do simples “tudo” do que há da maneira que convir ao meu ego e aos meu desejos de seguranças e superioridades. Queria eu achar que sei de algo. Queria eu me convencer das verdades alheias, me submeter aos discursos que me submeteram.

Queria ser cria dos outros, não cria de mim; queria ser agente externo, a agir num mundo externo, e achar que um prédio maciço de concreto não é tão maya quanto o mundo onírico que visito ao me deitar.

Ah, quantas coisas queria.

Queria não saber que estamos todos perdidos, vagando ao léu por um intervalo ínfimo afunilado entre mortes. Ah, perdidos estamos, tão perdidos estamos, perdidos estamos todos nós. Mas saber que estou perdido é o que me faz; é minha maior maravilha, mesmo sendo meu maior peso.

E, no fim, não há nada que queira mais do que o meu não querer nada do que queriam que eu quisesse. Assim é que, mesmo só, eu me liberto.

Sou um cego que sabe que nada vê no meio de outros cegos que acham que veem alguma coisa. Não sei nem mesmo se sou mais ou menos cego do que eles por deles discordar — ou se ganho qualquer coisa por saber que, no fim das contas, igualmente cegos somos nós todos.

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Rodrigo Goldacker
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