Éramos Deuses

Rodrigo Goldacker
33 min readNov 10, 2016

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Photo by Joel Filipe on Unsplash

1.

Era uma vez Apolo.

Naquele dia, ele acordou com o barulho de um peido; fungou profundamente, inchando seus pulmões com o ar quente de fedor azedo.

— Muito bem, quem é que foi? — perguntou, um gracejo debochado no rosto se misturando à careta de nojo.

Uma das duas mulheres deixou um sorrisinho escapar. Ele levantou da cama com um pulo. Pegou algumas roupas jogadas pelo chão (não sabia quais peças eram de quem e inclusive catou uma cueca própria junto) e jogou para a que sorrira.

Se veste e sai fora — ordenou, o deboche anterior se transformando numa expressão séria de desprezo. O nojo ainda estava lá: agora não mais pelo peido, mas pela pessoa em si que o cometera.

O sorrisinho dela travou, amarelou e desceu. Os olhos grandes e castanhos o encararam no fundo da alma, intimidantes, úmidos, como se o desafiassem a realmente expulsá-la daquela maneira. Ele permaneceu irredutível.

Ela se vestiu às pressas (colocou a blusa do lado errado) e saiu do quarto dando passadas fortes pelo chão de madeira; Apolo ouviu a porta da sala bater com violência, ressoando o estrondo por todo o apartamento.

Ele olhou para a outra mulher que ainda estava na cama e que tinha assistido a cena toda sem esboçar reação. Sorriu para ela, receptivo, e ela sorriu de volta, aliviada.

Agora que estamos a sós… — flertou, entrando de volta nos cobertores, subindo lentamente a cabeça pelas pernas da mulher, passando as mãos por sua barriga e beijando a parte interna das suas coxas.

Depois do café da manhã, uma hora e meia mais tarde, Apolo a expulsou de seu apartamento também.

Do outro lado, estava Ted.

Ele acordou já com a cabeça latejando e uma terrível dor nos ombros; demorou a se localizar o suficiente para entender aquilo que o despertara: seu celular tocando.

Alô — foi tudo que conseguiu verbalizar com sua voz rouca, monótona e amarga. Tão pouco era seu ânimo que até isso foi difícil de dizer.

— Oi, Ted! Tudo bem? Então, preciso que você cubra o meu turno hoje à noite. A diretoria decidiu de última hora que vai me mandar pra uma convenção de professores órficos na Europa — era a voz de seu colega de trabalho, o irritante e excessivamente simpático Erik.

Que horas? — Ted não se deu sequer ao trabalho de tentar discutir sobre o turno extra. Tinha marcado um encontro para aquela noite, mas ter uma desculpa para não comparecer era até um pouco positivo, na verdade.

— Das sete até até onze e meia. Você sabe, é a parte mais tranquila do trabalho. Fazer os planejamentos para as próximas semanas, conferir como as crianças estão progredindo, só essas coisas.

Ted não conseguiu evitar um suspiro deprimido.

Tudo bem, Erik. Estarei lá.

— Muito obrigado, Ted! Você é sempre ótimo. E como foi com aquela moça na sexta passada? Pri, não era? Mãe de uma das crianças?

Um momento desconfortável de silêncio. Ted até então olhava à unha de seu dedão do pé esquerdo, saindo através da meia rasgada e do outro lado das cobertas muito curtas que nunca conseguiam cobri-lo completamente. Ao receber a pergunta, desviou a vista para o horizonte de céu nublado através da janela embaçada; era tão cinza quanto sua própria alma.

Não quero falar disso, Erik. Vou estar aí de noite, é só isso que importa. Bom dia.

Ah, Ted, me desculpa por ser enxerido. Espero que com a próxima dê certo. Enfim, boa tarde para você! Até mais!

E desligou. Ted olhou para o relógio na tela: eram duas e meia da tarde. Cinco ligações perdidas. Duas de Erik e três de Pri.

Ao finalmente levantar da cama, escutou o barulho e sentiu a dor vindos de um estalo dos ossos das costas.

— Merda.

2.

Apolo gostava de andar pelado.

As portas de todos os armários de seu apartamento eram revestidas com espelhos. Ele gostava de desfilar sozinho pelos cômodos, admirando seu corpo nu a também bailar pelos reflexos.

Na cozinha, esperava seu sanduíche de queijo de búfala esquentar no grill enquanto apertava a pele de sua barriga observando sua rigidez e ausência de gorduras, comprovadas no ele-mesmo que o espelho da geladeira repetia.

— Lindão, hein — em voz alta se elogiou. Seu rosto limpo, com só uma sombra de barba delineada; seus cabelos num tom amendoado de loiro; seus olhos, vívidos de verde; suas feições perfeitamente simétricas, resultantes de uma longa jornada cirúrgica; seu bronzeamento artificial, seu clareamento dentário…

Recebera um convite para um evento chique naquela noite, realizado por uma tal de Samsara Unae para lançar um jogo educativo em VR. Só decidiu que iria mesmo depois de comer seu sanduíche. De volta ao quarto, vestiu só uma cueca boxer preta, bem colada aos seus glúteos definidos (sabia disso porque também tinha conferido no espelho) e então pegou seu celular. Ligou a câmera.

Olá, olá, olá, meus queridos…

Passou cinco minutos conversando com a tela. Contou uma versão mais inofensiva e leve do incidente do peido naquela manhã e falou de seu sanduíche de queijo de búfala, lembrando de citar o nome da marca do grill para receber alguns trocados a mais de patrocínio. Disse enfim do evento ao qual iria naquela noite, convidando todos que o assistissem para irem lá também e tentarem encontrá-lo. Postou o resultado.

Levantou-se, foi se vestir. Perdeu uma hora alternando combinações de roupas até achar uma que considerou preferível e condizente: regata brilhante de lantejoulas; calças jeans pretas, justíssimas; tênis de cano alto num tom gritante de lilás.

Quando finalmente sacou o celular de novo, ficou frustrado vendo as estatísticas do seu vídeo de pouco antes: só cento e trinta e duas mil visualizações até agora. Lembrou saudoso de uma época pouco distante na qual conquistava meio milhão em menos de uma hora com tudo que postasse. Sua curva de fama passara do ápice e começava a declinar.

Foda-se — xingou, tentando mentir uma indiferença para si mesmo. Ao mesmo tempo, tinha esperanças de que sua chamada ao público gerasse suficiente caos naquela noite para que voltasse a entrar em evidência.

Ted achou o café horrível.

— Foi até bom remarcarmos para mais cedo, Ted. Não veríamos esse lindo pôr do sol de outro jeito…

Não tinha lindo pôr do sol nenhum. Escondido atrás das pesadas nuvens da tempestade que ameaçava vir, o Sol era só uma distante e sutil sugestão num desbotado tom de laranja, perdido no canto de um céu cinza escuro e bem feio.

— É, é mesmo, Pri — foi o máximo que conseguiu mentir, por educação.

Estavam sentados juntos na mesinha pra rua de um barzinho nos limites da cidade, próximos ao prédio ao qual Ted teria que ir logo depois. Toda aquela boa vontade o deixava extremamente desconfortável. Depois do horrível primeiro encontro que tiveram, no qual broxara quando tentaram transar, achou que nunca mais veria de novo aquele rosto redondo e aqueles cabelos desgrenhados de mechas encaracoladas tingidas de azul claro.

Pri era muito bonita, mas na essência tinha algo de bem esquisito nela. Os olhos pretos eram grandes demais, a boca muito pequena; dentes de coelho amarelados de nicotina, uma verruga na lateral de sua bochecha, nariz arrebitado; ela tinha diversos tiques gestuais e de fala, piscadas destoantes e desconexas, risos quebradiços. Sua educação adocicada era claramente falsa: parecia demandar da mulher um enorme esforço.

Mas, em todos os possíveis aspectos e sentidos, Ted sabia que ele era alguém muitíssimo pior. Pri seria capaz de achar alguém muito melhor do que ele para sair. Se na semana anterior o primeiro encontro que tiveram fora tão retumbante fracasso, era totalmente culpa dele.

Sua timidez, a incapacidade de interagir direito, as monossilábicas respostas, sua ansiedade, a aparência taciturna e corcunda, suas olheiras, suas entradas nos cabelos grisalhos, a pança e seus peitinhos, sua postura retraída e, especialmente, o seu eterno deslocamento deprimido, tornavam Ted uma péssima companhia para qualquer coisa.

E mesmo assim, ainda assim, lá estavam os dois num segundo encontro. Ela ainda por cima tinha insistido e remarcado para mais cedo só para conseguir revê-lo. Ele mal podia acreditar.

Eu acho sua profissão tão fascinante, sabia? — ela elogiou. — Quer dizer, tenho tantas boas memórias de tudo que aprendi por causa de vocês, fico tão feliz de conseguir pagar para minha filha estar lá, ela vai aprender tanto… — ela refletiu sozinha por um instante, considerando seus aprendizados do passado e os futuros de sua filha, antes de continuar: — Como você reage quando as crianças começam com as perguntas?

A pergunta feita afetou Ted no âmago, na ferida mais constante e profunda de todo seu ser. Pegou a xícara de café à sua frente e tomou um gole longo para enrolar na resposta. Lembrou só então que tinha achado o café horrível: forte demais, doce demais também. Fez careta.

Mas conseguiu agradecer, acompanhado do mais falso risinho que já tivera a falta de vergonha para expressar em toda a sua vida.

Vou ter cuidado especial com sua filha e ela vai aprender muito, prometo. Mas tenho que ir agora, de verdade. Eu já tô meio atrasado. — Achou que foi suficientemente educado; só fingiu esquecer a pergunta dela.

Pri sorriu compreensiva. Quando o fazia, as laterais de sua boca tremiam, como se quisessem descer; um quase sutil tremelique de nuca jogava sua cabeça para a esquerda; um de seus olhos subia e se fechava mais do que o outro.

Ele se levantou da cadeirinha de metal. Pri soltou um “aahhh” inautêntico. Despediram-se com um abraço curto; quando ele achou que se afastariam, ela se aproximou uma última vez e lhe deu um selinho. Ted simplesmente ignorou, sabendo que seria incapaz de entender.

Ela se virou e foi embora em passinhos apressados.

Ele se virou para o outro lado. Uma sombra quase invisível de sorriso passou pela sua boca durante algo menos do que um ínfimo instante enquanto andava apressado.

3.

Apolo escarrou em seu agente.

— Não vou atender porra de ligação nenhuma.

Foi educado; quando o homem baixo e frágil chegou, olhando submisso aos próprios pés e lhe estendendo o telefone, ainda tinha dado (através de um olhar de desprezo) uma chance para que se afastasse. Mas o homenzinho se atreveu a continuar, iniciando um “é importante, senhor…” ao qual Apolo respondera com um “hmpf” em grunhido de desgosto. A terceira impertinência foi punida de forma justa, ao menos na visão de Apolo, com aquela escarrada que atirara.

Mas, senhor, é o seu pai… — justificou-se o persistente agente, com o catarro descendo da lateral de sua narina, passando pelo canto do lábio e indo virar uma gota comprida no fim do queixo que pingava nas próprias roupas. O homenzinho não se atrevia a limpar o rosto na presença do seu chefe; sabia que, se o fizesse, levaria uma segunda ou talvez até uma terceira escarrada também.

A modelo com a qual Apolo flertava (e que era a principal razão para que ficasse tão nervoso em ser interrompido) achou grande graça do estado do agente. Pediu para que ele olhasse diretamente à sua câmera e tirou uma foto de seu rosto cuspido, pedinte e humilhado; então postou em um grupo privado de famosos, fazendo uma menção ao número de Apolo. A escarrada lhe renderia, nas próximas duas horas, setenta mil visualizações e duzentos novos seguidores.

— Foda-se — Apolo retrucou. “Foda-se” era bem presente em seu vocabulário; ele achava muito funcional o uso da expressão para resolver diversas situações. A modelo soltar uma risada só serviu para fortalecer mais ainda seu viés de confirmação sobre isso.

— É sobre sua mãe, senhor. Parece que ela está muito mal. Quase inconsciente, risco de entrar em coma… — amedrontado e desesperado, o agente insistiu. Apolo foi finalmente fisgado pelas informações. Arrancou o celular da mão do agente e usou deste como arma, batendo na cabeça do homenzinho até que ele fugisse correndo; riu sádico do estado de miséria da pobre criaturinha que empregava. Só então levou o celular à orelha.

Que foi, meu velho?

Enquanto o pai explicava a séria situação em um tom de voz grave, baixo e preocupado que casava muito bem ao clima pesado e à gravidade contextual daquilo dito, Apolo se ocupava em seguir seu joguinho de seduções com a modelo; sua mão livre, estrategicamente posicionada em cima da coxa dela, agora iniciava o processo sutil de lentamente mover-se em carícias para dentro da saia. Ela mordiscava maliciosa o lábio carnudo inferior, colorido em batom preto.

Tá bem, tá bem, ainda hoje passo aí, já entendi — interrompeu o discurso do pai, pouco depois, quando ficou entediado; não tinha entendido muito bem o que foi dito: o velho falava muito devagar, num tom muito monótono, usando muitas palavras chatas como “agravou-se” e “procedimento”.

Porque já tinha tirado o telefone da orelha e fazia um “blá blá blá” gesticulado de piada à modelo, que ria, Apolo não ouviu direito o pai ressaltar seu pedido com um “corra, é urgente”.

— Entendi, meu velho, entendi, tchau, tchau, até mais, tchau, entendi, tchau, tchau — despediu-se acelerado; desligou na cara do pai e finalmente conseguiu dedicar total atenção ao que de fato lhe importava naquele momento: convencer aquela modelo a ir com ele ao banheiro antes que começassem a servir vinho.

Ted odiava seu trabalho, muito mesmo.

Dentre a série de hábitos destrutivos que tinha adquirido graças ao emprego (que iam de comer bem mal a dormir muito pouco), talvez fumar fosse o mais significativo.

Não começou a matar seus pulmões por conta do enorme estresse, nem por seu desgosto para com tudo, nem por suas crescentes ideias autodestrutivas, quase suicidas: embora essas questões também existissem, ele achava que sabia lidar até que relativamente bem com todas elas.

Na verdade, o hábito viera mais como uma simples desculpa social a permitir que fugisse do escritório e aproveitasse alguns intervalos sozinho para respirar, meditar e se acalmar um pouco. Sempre que algo o incomodava demais e sentia urgir o desejo de fugir do mundo, de simplesmente se demitir e nunca mais voltar, Ted descia e acendia um cigarro. Passava alguns minutos remoendo sua falta de coragem em verdadeiramente largar o emprego enquanto observava os céus, o verde das copas das árvores e o horizonte; daí voltava, resoluto, nutrido pelo próprio amargor, e continuava o seu trabalho de onde tinha parado antes. Não sabia dizer se estava fumando cada vez mais por ter de fato desenvolvido um vício ou por estar se deparando mais frequentemente com situações nas quais desejava fugir do mundo e se demitir.

Naquela específica noite, o que o levara a criar mais uma nuvem de nicotina foi um e-mail que recebeu de Erik sobre a palestra que este tinha apresentado na semana anterior. Todo mês, um funcionário era escolhido para uma apresentação daquelas e todo aquele que não prestigiasse o evento era obrigado a assistir tudo em vídeo depois, como política interna para que “incentivassem uns aos outros”. Pegava tão mal não participar desse processo que Ted já tinha visto alguns funcionários serem demitidos com as mais estapafúrdias desculpas, sendo o real motivo simplesmente terem ignorado as tais palestras mais de uma vez num semestre.

Lição de Moral: o uso do mito e da narrativa na educação”, era o nome da palestra de Erik; ele era um escritor frustrado que foi trabalhar lá para dar vazão aos seus ímpetos criativos. Boa parte do modelo educacional tinha partido dele. Enquanto Erik era supervisor de tudo de teórico e abstrato, sobrava a Ted ser o supervisor que lidava com toda a parte prática e técnica.

Ao voltar para sua mesa depois do cigarro, Ted suspirou fundo, um pouco aliviado. A nicotina conseguiu aumentar ou suas forças motivadoras, ou sua apatia diante da estupidez humana; mas fosse qual fosse a razão, conseguiu continuar o vídeo de onde tinha parado. Não suportara nem dez minutos antes de precisar sair para fumar e agora ainda faltava assistir mais vinte.

Os estudantes são protagonistas de suas próprias histórias, histórias dotadas de toda a sabedoria que for possível extrair delas; são os atos deles que vão ditar seus caminhos e que os guiarão para o futuro que construírem através da educação. A Samsara Edua acredita que o papel dos professores é só auxiliá-los nessa jornada. Com as histórias eles aprendem os valores, valores estes que são mais fáceis de se identificar nas consequências. Todo estudante aprende errando. Todos nós, na verdade, aprendemos assim. Viver o mito pode permitir que se libertem…

Era insuportável. Ted queria fechar o vídeo, mas sabia que não computariam a visualização se não assistisse até o final; queria deixar o vídeo mudo, ou dormir, ou fazer qualquer coisa, mas sua supervisora vigiava com atenção especial todos os seus movimentos desde que tinha voltado da rua. Ela abominava fumantes.

Uma única coisa aterrorizava Ted mais do que ter de assistir ao vídeo de Erik: saber que a próxima palestra seria a sua. A lembrança desse fato lhe desencadeou um pequeno episódio de ansiedade, deixando-o com vontade de já fumar outro cigarro.

4.

O vômito de Apolo era vermelho sangue.

Mas tudo bem: era só vinho.

Afastou-se da obra que tinha criado no meio do salão, ligou a câmera do celular e aguardou. Um garçom passou com taças aos convidados e não viu o obstáculo. Escorregou, derrapou e caiu em cima da poça rubra. Apolo esperou o áudio captar um pouco de suas risadas de deboche antes de parar de gravar e subir o vídeo no grupo privado de amigos famosos.

A noite seguia exatamente como tinha planejado. Começou a se embriagar logo ao voltar do banheiro com a modelo e uma hora mais tarde já estava absolutamente bêbado. Na portaria do prédio, uma pequena multidão se reunira graças ao seu convite, dificultando a saída e entrada de qualquer um no evento. Enquanto repreendia o comportamento do povo aos outros convidados do salão, Apolo incentivava na Internet que aqueles lá embaixo pulassem os muros, derrubassem os portões e dessem algum jeito para invadirem a festa. Na sua última postagem pública, pouco antes do vídeo do escorregão em vômito, tinha dito:

O vinho está muito bom mesmo, galera. Estou esperando vocês aqui em cima para bebermos juntos. Tratem de subir aqui também.

Do salão na cobertura conseguia ver o caos que criara vinte andares abaixo. O orgasmo mental que sentia por conta disso era indescritível: maior, certamente, do que o orgasmo físico que pouco antes atingira no banheiro quando enchera o nariz de poeira enquanto a modelo lambia sua virilha.

Seu celular começou a apitar. Apolo voltou suas atenções à telinha retangular e descobriu que metade da Internet estava mencionando seu nome. “Caramba”, pensou, “será que meu vômito fez tanto sucesso assim?” e foi ver suas estatísticas. Como sempre, alguém tinha vazado o vídeo que postou no grupo de amigos; a postagem num perfil de fofocas com o garçom no gorfo já tinha trezentas e quarenta e nove mil visualizações. Embora de fato surpreendente e acima da sua média atual, o vídeo sozinho ainda não justificava o tanto de menções que estava recebendo.

Pesquisou o próprio nome na barra de buscas do celular. Engoliu seco já ao ler o título da notícia mais recente, postada dois minutos antes e já viralizando: “Morre mãe do influencer Apolo”. O subtítulo conseguia piorar: “No mesmo minuto do falecimento, filho aparecia em vídeo com vômito nas redes sociais.” E piorava mais ainda no primeiro parágrafo: “‘Lamentável’, disse o pai do famoso à imprensa, sozinho no hospital. ‘Eu implorei para que ele viesse, mas ele não quis me escutar’. Em vídeo, registro oficial comprova que a última palavra da mulher antes de falecer foi o nome do filho único ausente.” O contexto fora minuciosamente planejado: uma equipe estava no hospital filmando tudo desde que o pai ligara horas antes. Tanto o momento da ligação do pai quanto o da ultima palavra da mãe já circulavam em essencialmente todos os lugares da Internet.

O agente de Apolo brotou súbito, como se vindo de lugar nenhum, exasperado, suando frio e com os olhos arregalados.

Apolo, eu avisei… Você perdeu dois mil seguidores só nos últimos dois minutos…

Apolo não precisava de lições de moral dadas pelo cretino homenzinho que empregava; frustrado e irritado, espancou seu agente até que ele estivesse encolhido no chão; escarrou nele mais uma vez e deu-lhe um chute na barriga antes de ficar satisfeito.

Foda-se, foda-se, foda-se! Foda-se! — começou a repetir aos berros. O garçom que derrubara no gorfo pouco antes, ainda com as roupas manchadas em tons rosados mesmo depois de lavá-las no banheiro, passava com algumas taças de vinho. Apolo pegou duas, uma em cada mão, e virou uma atrás da outra, concluindo com um arroto alto.

Meia hora depois, quando já perdera quase metade de seus seguidores, já virara notícia nas maiores redes de notícias e quadruplicara o número de pessoas na revoltosa multidão do térreo, vomitou uma segunda vez no meio do salão. Dessa vez, de tão incapacitado pelo álcool, ele mesmo escorregou e caiu na própria obra. De longe, a modelo ganhou mais algumas dezenas de seguidores e visualizações graças a Apolo, mas agora por postar um vídeo nomeado “justiça poética”, em que o derrotado influencer escorregava no vermelho-sangue de seu próprio vômito e passava um minuto e meio fracassando em tentativas de se levantar.

A velha cueca esgarçada de Ted era bege.

Estava vestido só com ela enquanto escovava seus dentes.

Na pia do banheiro ficava o único espelho de sua casa; só quando fazia sua higiene bucal ou a barba que se permitia o prazer da autopiedade vinda de analisar seu corpo patético, pálido, peludo e torto.

Cuspiu a pasta na pia no mesmo momento em que o telefone tocou. Sentiu uma mistura ambígua de sentimentos: faltava vontade de atender, fosse quem fosse que ligasse, mas também sentia certa felicidade por ter se libertado da hipnótica relação parasitária e autopiedosa para com seu sofrido reflexo.

Ted, Ted! Estou na Europa ainda, mas vi que você terminou de assistir minha palestra! O que achou dela? Boa, ruim? Mais ou menos?

Ted imaginou uma série de adjetivos nada elogiosos como possíveis respostas caso sua finalidade fosse a honestidade. Como não era o caso, os xingamentos não saíram da sua cabeça.

Alô, Erik. Ah, achei bem legal — foi sua mentira educada da vez.

— Você já está preparando sua palestra? Já tá sabendo que uma das turmas do intensivo de cinco anos se forma um dia antes? Vai ser uma semana bem corrida para você!

A preguiça de Ted era tão enorme que parecia quase tangível, quase dotada de forma física, como se o peso que sentisse sobre suas costas viesse de algum objeto muito real e muito sólido.

— Pois é, né — respondeu. Um momento de silêncio desconfortável se seguiu à sua resposta curta. Erik provavelmente se esforçava em encontrar algum comentário para seguir àquele corte monossilábico.

Você viu o que aconteceu com aquele Apolo influencer lá?

Ted conseguiu deixar um riso escapar diante da cretinice. É claro que tinha visto, todos viram.

Vi. — Se continuasse encurtando assim as respostas, a próxima seria só uma vogal.

Muito louco, não é? — Erik insistiu.

É — concordou, atingindo o ponto atômico das respostas curtas. Mais um silêncio desconfortável se seguiu.

É, é isso aí, Ted! Você é sempre ótimo! Boa tarde para você, viu!

Ted respondeu com um “boa tarde” robótico; desligou no mesmo instante em que descobriu que sua velha cueca bege estava desfiando e se desfazendo.

5.

Há anos que Apolo não chorava.

Não tinha chorado nem no funeral da mãe, no qual foi vaiado por uma multidão enorme e do qual precisou sair acompanhado de policiais para não ser linchado.

Tinha tentado chorar quando foi ao mais famoso entrevistador do país para pedir desculpas aos seus fãs e à sociedade, mas fracassara. Sua incompetente tentativa de comoção ainda virou meme, ridicularizando-o mais ainda diante da opinião pública.

Mas então ali estava: três meses depois daquela maldita noite, encolhido debaixo das cobertas, suas lágrimas escorrendo ao olhar para as estatísticas do último vídeo que tinha postado, duas horas antes.

Nem sua nova tatuagem de qualquer baboseira espiritual oriental (uma mandala genérica), exposta em seu belo corpo escultural vestido somente com uma justíssima boxer rosa, era capaz de tirá-lo do esquecimento. Mil visualizações e quinze novos seguidores. Só.

Perdera todos os seus patrocínios: nenhuma marca queria se associar a um sociopata que ignorava mortes na própria família. Sentia-se socialmente excomungado.

Tentara voltar à sua rotina anterior e esquecer o acontecimento. Falara até mesmo em um dos seus vídeos: só estava passando por uma fase difícil, mas se reergueria fortalecido. Voltaria ao topo.

Mas o poço no qual tinha se metido parecia não ter fundo. No minuto anterior ao falecimento de sua mãe, contava com nove milhões de seguidores que demorara anos para conquistar. Um quarto deles era fiel, o que significava que acessavam seu perfil pelo menos uma vez por semana. Desde então, esses números vinham caindo vertiginosamente.

A campainha tocou. Apolo limpou as lágrimas no lençol e levantou veloz, excitado por qualquer um que pudesse estar na sua porta; solitário e deprimido, não tivera visitantes nos tempos recentes e tinha recebido da polícia a recomendação de que evitasse sair na rua durante algum tempo.

A alegria diminuiu um pouco ao ver que era só o seu agente que viera vê-lo.

Ele trazia a primeira “boa notícia” que Apolo recebera em muito tempo: finalmente seus números pararam de cair. Estava estabilizado novamente, mas agora com apenas vinte e nove mil seguidores, sendo só um quinto deles fieis.

Que merda; tô tão fodido que é uma boa notícia chegar na porra do fundo do poço — constatou. — Até que enfim, pelo menos. Daqui não dá pra ficar pior.

Só tome cuidado para não cavar mais fundo — aconselhou o agente.

Apolo estranhou tamanha coragem do ridículo baixinho, que ainda continuou:

Senhor, preciso que fique ciente de que estou gravando toda a nossa conversa desde que cheguei e que, se algo acontecer comigo, será postado na Internet.

Antes de começar a espancá-lo por tanta audácia, Apolo decidiu que permitiria ao agente que prosseguisse mais um pouco com sua cena; mas só porque estava se divertindo com o tom sério saído do pobre coitado que menos levava a sério no mundo.

Eu me demito — gaguejou o agente, claramente amedrontado, mas firme.

A curva de reações de Apolo foi a seguinte: revoltadíssimo, começou gritando muito e batendo no homenzinho. “Você não pode fazer isso!”, era a frase recorrente desse primeiro momento. Depois, começou a implorar. “Por favor, não faça isso! Por favor!”, chorava desesperado. O agente, agora com o nariz sangrando por um soco que levara do antigo chefe na primeira fase, era tão pequeno que mesmo um Apolo ajoelhado ainda o abraçava acima do umbigo. Finalmente, passara para a terceira e final etapa, da mentirosa indiferença, quando começou a gritar coisas como “pior para você”, “você é quem vai se arrepender”, “nem ligo” e “tanto faz”, todas intercaladas com muitas repetições da sua expressão favorita, “foda-se”.

Sem piedade, o agente vingativamente escarrou no ex-chefe. Depois, correu desesperado ao elevador que, temendo retaliações, já chamara bem antes; enquanto o homenzinho apertava frenético o botão de fechar portas, Apolo estava tão infeliz que nem tinha considerado retribuir as ofensa de qualquer maneira. Tinha ficado em choque, pura e simplesmente.

Uma hora depois, o vídeo de todo o processo de demissão foi postado online. Apolo perdeu mais sete mil seguidores por causa disso. Terminou a tarde no mesmo lugar onde começara: encolhido na cama, chorando.

Pela primeira vez em muito tempo, Ted ria.

Era um prazer sádico: gostava de acompanhar o desespero das crianças que eram suas alunas nos momentos finais de seus cursos intensivos.

Pri, que perguntara preocupadíssima sobre a situação de sua filha que tanto sofria, ficou indignada com sua reação. Ted repreendeu a si mesmo, vertendo o riso numa faceta séria de falsa preocupação. Tossiu, pigarreou e assumiu um tom de voz formal:

Desculpa, Pri. Lembrei de outra coisa. — Era mentira: ria mesmo por causa da filha dela. Nas últimas semanas, às vezes conseguira tornar suportável até mesmos conversar com Erik, ao menos quando se divertiam rindo do específico caso daquela garota e de seu sofrido estado.

A mulher manteve uma careta de repreensão por um último momento (tão estranha quanto todas as expressões faciais que tinha) antes de perdoá-lo e seguir seu desabafo.

Ele bebericava uma xícara de chá (tão horrível quanto o café da outra vez) e só prestava meia atenção ao que ela dizia. A outra metade de sua cabeça divagava, admirando o belo fim de tarde de verão; o céu estava bem bonito e Pri, mesmo preocupada e ansiosa, também estava mais atraente do que o normal. Uma semana depois daquela ida ao bar, foram jantar juntos. Na ocasião, Pri o chamara de novo para sua casa, talvez esperançosa de que Ted redimisse seu fracasso sexual, mas ele recusara, dizendo que infelizmente tinha que ir trabalhar. Era verdade: estava atolado de obrigações da escola. E agora, uma semana depois disso, lá estavam num quarto encontro, retornando àquele mesmo barzinho mais uma vez.

Ele sabia que, assim que o inferno da mulher e de sua filha acabassem, seria o inferno dele que começaria: teria a formatura da turma do intensivo e a porcaria da palestra um dia depois. Mas, de alguma forma, saber de todo o desprazer que seria obrigado a suportar logo mais só servia a tornar ainda mais alegre a beleza e sutileza daquele momento leve junto a Pri.

Fica tranquila, viu. É a última semana, é normal que seja a mais pesada. Logo mais sua menina se forma e tudo fica bem para vocês — tranquilizou.

Funcionou: Pri sorriu, menos tensa, e Ted pôde enfim extravasar mais do seu sadismo direcionado à filha, dissimulando numa risadinha supostamente bondosa e simpática.

6.

Apolo durou duas semanas na rua.

Do dia em que seu agente se demitiu até o dia em que foi despejado do apartamento, se passou menos de um mês.

Primeiro, tinha tentado pedir abrigo na casa da família. Seu pai, que ganhara certa visibilidade e muito dinheiro graças à matéria produzida no leito de morte da esposa, agora investia em criar seu próprio público online. Estava dando certo: atualmente ele era o quinto influencer favorito da terceira idade.

Mas Apolo era o primeiríssimo a saber que não era nem a compaixão nem a piedade que o sucesso e a fama costumavam inflar nas pessoas. O pai nem sequer abrira o portão para ele. Simplesmente mandara, pelo interfone, que fosse embora antes que chamasse a polícia.

Como nunca fora muito bom em guardar dinheiro, as economias de Apolo serviram para mantê-lo alimentado e num hotel por um mês somente, enquanto tentava desesperadamente emplacar um novo sucesso; mas se tornara invisível ao público. Ainda mais, deixá-lo com o menor número de seguidores possível se tornara uma piada sádica para toda a Internet. Postou seu último vídeo para os seus quinhentos seguidores remanescentes no mesmo dia em que estourou o limite de seu cartão. A noite seguinte foi a primeira que passou na rua; roubaram seu celular e o espancaram assim que tentou dormir pela primeira vez ao relento, no degrau de uma farmácia de esquina.

Poderia, talvez, ter sobrevivido àquela situação de miséria: encontrara um abrigo para indigentes no qual, mesmo sem nunca conseguir entrar na fila para dormir debaixo de um teto, sempre recebia um pote de comida. Mas sua ruína final veio da infantil esperança de dar a volta por cima, de conquistar uma segunda chance.

Já habituado com a vida de indigente, passava uma manhã calorenta sentado numa praça qualquer quando foi reconhecido por um rapaz caminhando com seu cão.

Apolo? — o garoto perguntou, incrédulo. Era um jovem feio com o rosto coberto de espinhas e um moicano de cabelos tingidos de púrpura berrante. Seu cachorro era um labrador preto. — É você mesmo? Cara, eu te seguia, adorava seus vídeos…

Apolo se emocionou ao ser reconhecido. Conversou durante boa parte da tarde com o seu fã. Tiveram juntos a ideia de filmar uma entrevista mostrando onde Apolo acabara. Quem sabe o mundo não se apiedasse dele e o perdoasse? Quem sabe denunciar o abandono paterno não fizesse com que fosse aceito de volta na casa de sua família?

A entrevista-denúncia, com o pomposo título de “Queda dos deuses: o triste fim de Apolo”, foi postada no mesmo dia. Deu certo para o fã que filmara: duzentas mil visualizações e quinze mil novos seguidores.

Para Apolo, nem tanto. Agora que sabiam sobre o bairro onde estava morando e o estado de fragilidade no qual se encontrava, muitos de seus antigos fãs acharam que seria divertido começar a torturá-lo.

Na primeira noite, foi encontrado por dois dos que saíram às ruas do bairro para buscá-lo: um deles só cuspiu nele repetidas vezes, mas o outro o espancou até que desmaiasse. Na segunda noite, três fãs o encurralaram numa viela, o ameaçaram de morte com facas e urinaram nele. No terceiro dia, um homem (que Apolo achou ter reconhecido como o garçom que maltratara) veio com um balde cheio de vômito, urina e fezes, que jogou em cima dele enquanto dormia. No quarto dia o deixaram em paz e ele, com um mau pressentimento, passou a tarde na fila tentando ganhar uma vaga para passar a noite no abrigo. Não conseguiu.

Finalmente, na quarta noite alguém o banhou em álcool enquanto chorava e urrava pedindo desesperado por clemência. Um primeiro fósforo foi lançado; apagou, permitindo a Apolo que vivesse um último instante cheio da esperança de que sobreviveria. Outro fósforo foi aceso e dessa vez, ao ser lançado contra o álcool, queimou direito.

Apolo brilhou uma última vez na vida, durante cerca de um minuto, reconquistando a atenção de todos ao seu redor enquanto corria desesperado pelas ruas e pegava fogo. Tombou no asfalto, soltando fumaça aos céus. Dos curiosos que rodearam seu corpo morto, fazendo caretas pelo fedor de gordura humana defumada, recebeu suas cinco últimas visualizações.

Ted olhou solenemente para Pri.

A mulher aguardava, do outro lado da janelinha de vidro da porta branca de metal, observando toda a cena com extrema ansiedade.

Duas memórias diferentes sempre fisgavam a atenção de Ted naqueles momentos: a primeira da própria infância, de quando ele mesmo passara pela experiência de se formar naquela escola; a segunda de quando aos vinte anos, após um intenso processo de entrevistas e testes simulados, fora contratado para trabalhar lá.

Vinte e três anos depois, ali estava. Nem sempre odiara seu emprego como odiava agora. Na verdade, ficara muito orgulhoso e satisfeito consigo mesmo ao conquistar aquela vaga. De trezentos interessados, só ele e Erik foram contratados no fim do processo seletivo. Seguira feliz durante os primeiros cinco, seis anos: até lá, ainda amava seu trabalho.

Mas foi então que as perguntas das crianças começaram a penetrar de verdade em sua mente.

Quando percebeu que estava sendo afetado por aquilo, tentou ignorar: desprezou seus pensamentos, ridicularizou as próprias dúvidas. Enganou-se fingindo que tudo continuava bem durante alguns anos, enquanto o tumor mental da sua incerteza crescia e crescia, inchando mais e mais a cada nova criança que passava por ali.

Chegara enfim ao ponto no qual não possuía mais nem a capacidade nem o ânimo necessários para mentir a si mesmo. Sua negação desmoronou e foi aí que Ted se tornou ciente do seu estado depressivo. Pior, mergulhou nele: desenvolveu então a amargurada apatia com a qual vinha empurrando a vida com a barriga durante a última década.

A cada nova turma que se formava, sua alma morria mais um pouco, seu mundo se acinzentava mais, e as vozinhas agudas, inocentes e infantes, pedintes desesperadas por explicações, ecoavam ainda mais alto e mais fundo na sua cabeça.

Sabia que não seria capaz de suportar muito mais tempo vivendo daquele jeito. Era insustentável, verdadeiramente insustentável. Mas, de tão exausto, já não se importava.

À sua frente, a garota gritou. Ted olhou para Pri do outro lado do vidro uma última vez. Dentro de seu peito sentia um buraco negro demoníaco e niilista que engolfava, engolia e destruía todo o seu ser; mas por fora, com uma bondosa expressão no rosto, sorria à menininha.

7.

Apolo passou os dez primeiros minutos aos prantos;

Chorava tanto que rios de meleca escorriam de seu nariz; tanto que soluçava, babava, tanto que gritava roucas vogais desafinadas; tanto, mas tanto, que faltava o ar, que a vista embaçava em lágrimas, tanto que só conseguia discernir a silhueta de alguém à sua frente no ambiente muito iluminado.

Foi só quando finalmente se acalmou que conseguiu entender o espaço. Estava numa salinha quadrada; o chão, o teto, todas as paredes, a luz das lâmpadas, a mesa, era tudo branco. Até a porta de metal era branca. Do outro lado da mesa à sua frente, um homem de camiseta social (branca, também), calça bege e maleta de couro no colo lhe estendia uma caixinha de lenços.

Choramos em todo parto, não importa quantos tenhamos na vida — o desconhecido iniciou. Tinha o sorriso mais infeliz que Apolo já vira alguém ter, acompanhado de um tom monótono e meio sarcástico. Era um típico quarentão entediado com tudo e que claramente não gostava muito de estar ali. — Eu chorei quando acordei, também. E meu nome é Ted, aliás. Vou te acompanhar durante as próximas horas. Boas-vindas à escola Samsara Edua, é um prazer para mim estar aqui contigo.

Lembrava de morrer queimando. Ou enlouquecera, ou sonhara, ou o paraíso era muito mais chato do que Apolo esperava que fosse. Talvez fosse o inferno.

Você consegue falar alguma coisa? Consegue olhar para suas próprias mãos? — o homem pediu numa lenta voz, falsamente atenciosa e obviamente aborrecida.

Talvez um limbo. Seria mais apropriado, se levasse o tedioso Ted em consideração.

O-oi — conseguiu gaguejar; de pronto, estranhou a própria voz. Além de quebradiça e desafinada, como já imaginou que estaria, também notou que estava muito aguda, muito fina.

Sei que estranhou sua própria voz — Ted adivinhou. — Se olhar para suas mãos como eu pedi, vai se estranhar mais ainda.

Apolo obedeceu. Olhou para as próprias mãos e ficou desacreditado. Eram pequeninas e gordinhas como as de uma criança.

Talvez — o tal Ted continuou, burocrática e mecanicamente — você esteja considerando que elas parecem muito com as mãos de uma criança.

Nem reagiu dessa vez. Apolo só permaneceu muito quieto enquanto Ted abria a maleta que levava no colo e lhe passava um espelho pela mesa.

Travou ao olhar o reflexo e descobrir que estava no corpo gordinho de uma menina de cinco anos, com cabelos castanhos encaracolados e olhos negros excessivamente grandes e esbugalhados. Seu rosto bochechudo ainda estava muito inchado e vermelho de choro.

Eu morri? Essa merda é tipo um limbo? Vou reencarnar nesse criança esquisitinha?

Antes que Ted respondesse, Apolo se deu conta que reconhecia o nome que ele dissera antes, quando estava se apresentando.

“Escola Samsara Edua”? Essa porra aí tem alguma coisa a ver com aquela empresa meio merda que chama Samsara Unae e desenvolve uns jogos educativos de realidade virtual chatos pra caralho?

Ted já estava enjoado daquela conversa.

— Alguma coisa a ver, sim — ele respondeu à menina.

Depois de repetir o mesmo diálogo incontáveis vezes por mais de duas décadas, Ted não conseguia mais evitar que um pouco de seu cansaço transparecesse. A cada turma do intensivo de cinco anos que ia se formar, e duas turmas daquelas se formavam por ano, ele era obrigado a repetir o mesmo processo com quarenta e cinco crianças diferentes, uma por uma.

Começamos daquele jeito aqui também. Decidimos inserir os primórdios de nossa empresa nas simulações justamente para que vocês já estivessem um pouco habituados conosco.

A garotinha continuava estupefata. Ted aproveitou para seguir explicando:

Você não morreu, não de verdade. Isso não é um limbo, isso — e engasgou um segundo antes de conseguir dizer as próximas palavras porque não tinha mais certeza se acreditava nelas — é o mundo real. Você não vai reencarnar nessa “criança esquisitinha”. Esse é seu corpo real, sempre foi, e você só não sabia disso.

Incrédula, a criança quis interrompê-lo para contrariar o que era dito. Para economizar algum tempo, Ted preferiu passar por cima dela e prosseguir:

O corpo que você conhecia era um avatar personalizado. Foi desenvolvido por nossa equipe para casar com o universo narrativo que Erik, nosso storyteller supervisor, escreveu para você. Seu verdadeiro nome é Isabela. Você tem cinco anos de idade e foi trazida para nós por sua mãe quando ainda era uma bebê de três meses.

Ted preferia sempre omitir que os desenvolvedores eram preguiçosos e que reaproveitavam os mesmos corpos e os mesmos universos narrativos para vários alunos. Só nas turmas daquele ano, tinham doze Apolos diferentes. Ainda assim, mesmo quando partiam da mesma base, nunca dois alunos terminavam do mesmo jeito. Isabela foi a primeira a viver Apolo o levando para uma “carreira” de celebridade de Internet e para o tão trágico fim de ser queimado vivo. Ted nunca tinha visto Erik tão animado quanto no dia em que escrevera aquela cena final e pedira para que já a deixasse programada e pronta para executar.

No extremo oposto, um outro Apolo da mesma turma, vivido por uma menininha ruiva chamada Helena, precisou morrer atropelado para encerrar sua simulação; construíra uma vida tão segura e estável junto a sua bela família que nem Erik nem Ted conseguiram encontrar alguma morte punitiva com lição de moral que fosse passível de lhe ser aplicada.

Segundo Erik, “o atropelamento ensinará para a pequena Helena o quanto precisamos aproveitar cada momento junto com nossas famílias. Porque a vida é tão frágil! E nunca sabemos quando a morte, tão repentina e súbita, chegará para nós”. Ted achou que o discurso era só outra das balelas bem formuladas que Erik cuspia quando não tinha resposta para algo.

A pequena Isabela continuava calada, em choque. Ted entendia. Era muita informação para absorver de uma vez só. Tantos anos mais tarde, eram poucas as memórias que ainda retinha da primeira vida que vivera, a simulada, mas nunca se esqueceu de como foi acordar depois de morrer num assalto e descobrir que não era mais Jule, uma programadora de trinta e cinco anos, mas sim Ted, um menininho de cinco.

Prove — foi a primeira coisa que, numa voz muito séria, a criança exigiu (como 86% delas exigia, aliás) depois do que ouvira. Ted olhou à porta e estranhou não ver mais Pri lá.

Muito bem — respondeu enquanto se levantava. — Então vamos dar uma volta.

8.

O sentimento de Apolo era meio agridoce.

Ele não sabia definir muito bem a emoção que estava sentindo. Por um lado, estava bem feliz simplesmente por estar vivo; por outro, todo o contexto era muito, muito estranho. E não estava nem um pouco contente em ser uma estúpida garotinha de cinco anos.

Vamos descer — Ted avisara, desanimado, quando apertara o botão na parede; ao saírem da salinha, andaram de mãos dadas por dois corredores muito estreitos até pararem ali para esperar. — Foi ali que você passou quase toda sua vida, Isabela — continuou contando ao apontar para a enorme estufa que, assim que a porta prateada se abriu, viram através dos vidros do elevador panorâmico.

Ao entrarem, Apolo descobriu que só uma parte do prédio de vinte andares era formada por aqueles claustrofóbicos escritórios e corredores brancos onde estavam até então. A outra metade era um gigantesco jardim botânico em que a parede pela qual desciam era a única feita de concreto; as outras três eram todas de vidro, iluminando naturalmente o ambiente com a luz solar e permitindo que vissem uma enorme planície de pasto verde que existia lá fora. Até onde podia ver no horizonte, cabeças de gado estavam espalhadas, pastando tranquilamente.

Quando saíram no térreo, Apolo seguiu andando descalço; sentia a grama massageando seus pezinhos. Ovos vazios de plástico conectados a vários fios estavam pendurados nas árvores.

Você estava naquele ali — Ted falou, apontando para um dos mais próximos.

Andaram mais um pouco e chegaram aos ovos ainda ocupados. Pararam para analisar um no qual um menininho de uns três anos estava suspenso, nu e aparentemente dormindo; oito braços mecânicos massageavam todas as partes de seu corpo constantemente para que, segundo Ted, seus músculos não atrofiassem e se desenvolvessem saudáveis. Três tubos estavam conectados nele (um na boca para alimentação, outros dois para excreção) e cinco cabos estavam ligados à sua cabeça (um na testa; um acima de cada orelha; um na nuca e um último no topo da cabeça).

O único sentido que não conseguimos estimular e desenvolver enquanto vocês ficam aí dentro — o homem seguiu explicando sem emoção — é a visão. A geração beta de simuladores deixou todas as crianças cegas. Depois, passamos muitos anos sendo obrigados a fazer cirurgias de correção antes de acordarmos vocês. Há trinta anos conseguimos desenvolver uma tecnologia de lentes de contato que solucionou o problema. Você está usando um par delas agora e é só por isso que consegue enxergar. Em três meses elas terão terminado o seu trabalho curativo e vão se dissolver no seu corpo. Todo o resto, audição, tato, olfato e paladar, nós estimulamos durante a simulação das noites, enquanto vocês sonham.

Apolo sempre tivera a estranha impressão de que sonhando seus sentidos pareciam mais aguçados. Achou irônico descobrir que era por sonhando ter tido suas únicas experiências sensoriais reais.

Nunca antes Ted fizera um tour.

Se o fazia dessa vez, não era por gostar particularmente de Isabela (pelo contrário, aliás: como Apolo, a garota vivera uma das mais detestáveis pessoas que ele já vira na vida, dentro ou fora das simulações), mas sim por ter desenvolvido certa afeição pela mãe dela, Pri.

Enquanto caminhava (conhecia o jardim de cima a baixo graças às suas frequentes fugidas para fumar por lá), Ted nutria certa esperança de avistar cabelos azuis entre as árvores.

Essa merda que vocês fazem… — a menina começou a falar, mas parou para refletir.

Ted sabia que, depois de serem convencidas sobre a maior parte das questões técnicas e fatos sólidos envolvendo as experiências pelas quais passaram, a maior parte das pessoas começava a se aprofundar naquele segundo tipo de perguntas, mais morais e abstratas.

As estatísticas diziam que 41% das crianças se tornava mais metafísica nas suas questões logo depois de descobrir que, em média, só existiam mais duzentas pessoas reais no mundo todo (para Ted, no servidor todo) do qual tinham vindo. Durante toda a vida, normalmente viam só umas quinze dessas, isso se dessem sorte. E muito dificilmente, até mesmo por questões de segurança, chegavam a falar com mais do que uma. Todo o resto do tempo, estavam interagindo ou com os professores, ou com bots.

A Samsara Edua tinha inaugurado um novo mundo no ano anterior. Trabalhavam agora com vinte servidores simultaneamente. Isabela viera do oitavo deles, pelo mesmo motivo pelo qual vivera a vida como Apolo: era esse o pacote promocional que Pri comprara, ganhando 45% de desconto. No ato da compra, Erik tinha convencido a mãe de que seria muito enriquecedora à menina a experiência de ver o mundo pelos olhos de um homem.

Ted sabia de três coisas: uma, por experiência própria inclusive, que na verdade essa troca de gêneros podia acabar gerando certas confusões, dificultando mais ainda o já complicado processo de habituar-se à vida pós-simulação; duas, que já tinham esgotado todos os modelos femininos para as turmas daquele ano e que só estava faltando fecharem a cota mínima de Apolos (por conta da aparência física de estética genérica, o ultrapassado modelo seria descontinuado logo); três, que o oitavo servidor era estatisticamente mais propenso do que os outros a gerar fins trágicos, sempre sobrando como o último a conseguirem lotar.

Na sua inocência e ignorância, Pri não sabia de nada disso quando assinara o contrato; não era obrigação da empresa explicar as razões internas pelas quais estava lhe oferecendo um desconto tão alto. Ted se sentia um pouco mal com isso: sabia que a mulher era pobre e que não teria como pagar para a filha estar lá de outro jeito (mesmo com o desconto, Pri só tinha quitado a última parcela dois meses antes da formatura). Mas levando em consideração o quanto a mãe sofrera acompanhando o desenvolvimento da história da filha durante aqueles cinco anos, talvez ela devesse ter desconfiado um pouco mais da suposta oportunidade.

… é meio doentia, não é não? — Isabela finalmente completou, depois de passar alguns minutos em silêncio, andando pensativa pela grama. Com isso, agora ela ingressara nos 7% de crianças que se tornavam metafísicas antes mesmo de saberem sobre os servidores.

Uma teoria diz que somos escravos mentais de nossos mitos por boa parte de nossas vidas — Ted narrou, lembrando do que Erik ensinara para se defender daquele tipo de críticas — e nós já te libertamos disso aos cinco anos de idade. Sem falar de toda a educação, do nível básico ao superior, que você já recebeu. E de todo seu amadurecimento, toda sua experiência de vida.

Que experiência? — Isabela questionou. — Que porra de vida? Como você sabe, aliás, que isso aqui agora é a vida real? — e com isso ela chegara à mais profunda ferida de Ted. 100% das crianças faziam essa pergunta desgraçada.

Não sei! Eu só não sei!”, era o que Ted queria gritar, berrar na cara dela, na cara de todo mundo. Maldita pergunta. De um jeito ou de outro, demorasse mais ou demorasse menos, sempre chegavam nela. Como odiava ouvi-la.

Aqui não tem lição de moral — foi tudo que secamente respondeu.

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