Vermelho Pálido

Rodrigo Goldacker
23 min readAug 15, 2019

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Detalhe de foto retirada daqui.

1.

Ela acordou sozinha no escuro.

Moveu-se inquieta, verificando as vestes que trajava e forçando as vistas tentando assimilar o ambiente. Percebeu seu longo vestido, tão negro e limpo quanto o céu sem estrelas, espalhando-se por um gramado. Desprendeu a cauda longa de tecido com um movimento feroz de mãos e observou o pano rasgado contrastar com a grama de pálido brilho avermelhado. Na penumbra, a única luz provinha daquela estranha vegetação.

A paisagem do vasto gramado vermelho não tinha qualquer indicação de fim. Era uma imensidão de campo, uma planície infinita. Escutou seus próprios pés descalços roçando na vegetação e nada mais conseguia ouvir que não seus próprios movimentos. Decidiu caminhar sem rumo pela falta de qualquer outra opção, cantarolando melodias sem letra. Sua voz tímida e baixa fazia pouco efeito em quebrar o silêncio lúgubre do vazio em que se perdera. Anos se passaram, séculos talvez, com a andança solitária. Escorrendo por seus olhos de íris vermelhas, a garota tinha rastros de sangue pintando suas bochechas brancas. Ela não envelhecia nem sentia fome ou sede, apenas se incomodava ligeiramente com o marasmo do lugar.

Um dia, finalmente, ela encontrou um término para a vastidão dos campos vermelhos. Era um penhasco grotesco, sem fim visível em qualquer lado. Ao se aproximar da borda e olhar para baixo, em primeiro momento viu apenas mais escuridão. Entretanto, um olhar mais apurado acabou por revelar três criaturas distantes que flutuavam sozinhas no vazio. Ela chamou com gritos incessantes durante dias e enfim as três se aproximaram.

A primeira era uma menina de cabelos negros, de aproximados sete anos e vestindo roupas rasgadas.

Estava amedrontada, soluçando e tremendo. Parecia precisar de ajuda, mas as outras eram indiferentes. Seu olhar continha um pedido desesperado, uma súplica por ajuda.

A segunda era um jovem demônia, de pele rosa e sem nenhum pelo no corpo, com exceção das suas volumosas mechas ruivas de cabelo.

Tinha dois chifres na cabeça, um deles quebrado e expelindo uma espécie de vapor. Estava completamente nua, mas não tinha qualquer sexo. Seus olhos afundados e maldosos pareciam oferecer conhecimento e malícia.

A terceira era uma mulher alta, também nua e visivelmente severa.

Seus compridos cabelos de loiro claro caíam junto com o penhasco para a escuridão, sem nunca encontrarem fim. Tinha um rosto seco e alongado, seu corpo era de magreza cadavérica. Seus olhos, completamente brancos, não passavam nada.

As três pronunciaram a mesma frase ao exato mesmo tempo, cada uma com sua entonação. A primeira tinha voz esganiçada e trêmula, a segunda a voz aguda e animada, a terceira a voz rouca e distante.

— Uma de nós irá ajudá-la para sempre. As outras te trairão e desaparecerão. Escolha quem te acompanhará.

A garota sentou na beirada do abismo e apoiou o rosto nas mãos, absorta em tomar a decisão.

Quem ela escolherá?

2.

A menina pensou durante alguns segundos antes de se decidir.

Optou, enfim, pela segunda, a mulher demônia. Apontou para ela com o seu dedo indicador, mas nada disse. A criança e a mulher loira se viraram e voltaram ao abismo, se encolhendo na escuridão de onde vieram. A demônia sorriu abertamente e se aproximou. Seus olhos escuros continham um brilho mínimo de vermelho nas profundezas, como rubis no fundo de um poço.

— Eu quero sair daqui. Você vai me ajudar. — A garota ordenou simplesmente, decidida.

A demônia riu sarcástica. Anunciou, com voz falsamente melosa:

— E para onde a garotinha gostaria de ir? Existem muitos caminhos para seguir a partir daqui.

A garota não sabia, de fato, seu caminho. Pensou por alguns instantes, mas não se lembrava de já ter estado em qualquer outro local que não o gigante campo vermelho. Faltavam-lhe ideias de qualquer lugar para onde pudesse ir. Na busca de opções, perguntou:

— Para onde podemos ir, demônia?

A mulher demônia tinha modos exageradamente teatrais e fazia cada gesto de forma dramática. Apoiou a mão no rosto, mordeu os beiços e virou os olhos, suspirando uma indecisão superficial. Só depois disso apresentou suas sugestões:

— Lembro de três lugares que ficam perto daqui, menina. Creio que não vai gostar de nenhum deles, mas é o que tenho a oferecer. O primeiro é uma cidade caída, onde poucos homens aguardam que algum deus se lembre deles. São nervosos, opressivos e dificilmente te tratarão bem, o mais provável é que te façam escrava de suas vontades mais baixas. O lugar também não é de todo alegre, sabe. Lá é sempre nublado e triste, tudo está corroído e apodrecendo por aquelas bandas.

A garota permaneceu em silêncio, analisando a opção. A demônia continuou:

— O segundo lugar é um gigantesco castelo onde orgias acontecem incessantemente. Os proprietários são dois obesos gigantes que tem como deleite particular o hábito de violar vítimas até que seus corpos se rasguem ao meio. Fora isso, é casa de profissionais da prostituição que vieram de mil mundos, por desejo ou desespero, para atender clientes sedentos por luxúria. Tudo lá é bastante suntuoso. O palácio é tão grande que é possível passar uma vida explorando e morrer antes de tê-lo conhecido por completo. Se você conseguir passar despercebida pelos donos, pode apreciar algo carnal com alguém.

A menina riu da proposta, mas não tinha qualquer desejo sexual. Permaneceu quieta. A demônia concluiu:

— O terceiro é um lugar engraçado. É uma aldeia de ritualistas com um apetite bastante grande pela iguaria da carne humana. Fica exatamente no centro de uma grande ilha no mar rosa, tem vegetação abundante e um clima desgraçadamente quente. Costumam fazer gigantescos banquetes em que os mais fortes se empanturram da carne de seus escravos mortos nas suas arenas de luta. São bastante violentos com visitantes, mas de que importa? Você é imortal, de qualquer forma.

A demônia continuou a encarando, esperando alguma resposta. A garota se pôs a pensar.

A cidade caída, o palácio das orgias ou a aldeia canibal?

3.

Dessa vez, a decisão demorou um tempo considerável.

A demônia, enquanto isso, dançava sozinha no ar, aguardando com um sorriso maldoso no rosto.

Finalmente, a menina determinou o lugar que aparentava ser menos horrível e anunciou, com súbita animação:

— A cidade! Eu quero ir para a cidade! Podemos fazer o lugar ficar bonito e melhor, não é?

Enquanto ria da ideia infantil, a demônia se aproximou e finalmente pousou seus pés róseos no campo fluorescente para caminhar em direção ao horizonte, sem nada declarar. A menina, contanto, se irritou com a falta de detalhes e gritou:

— Onde você tá indo? Eu vim por esse caminho, não tem nenhuma cidade pra esse lado, eu sei! Só tem essa grama vermelha toda, só isso!

A demônia virou e encarou a menina de forma intensa. Ela não sorria mais e seu rosto se fechara numa expressão crua e severa que assustou a garota.

— Você não achou a cidade porque não soube procurar, criança estúpida. Agora apresse seu passo e não me contrarie novamente. Caso contrário, eu te deixarei sozinha.

A menina correu aos pulinhos para próximo da demônia. Andaram lado a lado em completo silêncio por dias e dias sem nada mudar na paisagem. O mesmo campo vermelho se alongava em todas as direções, sem qualquer indício de que algo existisse por perto. A menina, entediada, começou a cantarolar novamente outra de suas melodias sem letra. A demônia perguntou:

— O que está a cantar, menina? Não tem letra?

A menina parou sua música e hesitou ao responder:

— Não sei o que canto, mas acho que não tem letra não… Eu nunca aprendi qualquer letra pra cantar.

— Pois devia criar as suas próprias, então. Não espere que alguém as crie por você — a demônia retrucou. Continuou: — E você tem algum nome, menina?

Ela não sabia se tinha algum nome. Pensou um pouco e percebeu que podia criar um. Estava indecisa entre Pan, Dia ou Meg, pois foram estes os nomes mais bonitos que conseguiu conceber baseada em seu limitado leque de referências.

Enquanto pensava, a demônia disse:

— Meu nome é Emp Deed, caso isso te ajude a ter alguma ideia. E já estamos chegando, portanto se apresse.

A menina não via qualquer sinal de que estivessem de fato chegando, mas concordou. Estava ocupada demais escolhendo como se chamaria.

Pan, Dia ou Meg?

4.

— Meg! Eu vou me chamar… Digo, eu me chamo, eu me chamo Meg!

Foi isso que a menina anunciou, orgulhosa, sorrindo e dançando aos pulos pelo gramado.

A demônia soltou uma longa risada, zombando da animação excessiva da menina. Disse achar o nome cativante, pois lhe remetia a alguém bastante inteligente e dada à leitura que conhecera certo dia. A garota tomou aquilo por um elogio, mesmo percebendo que nunca lera qualquer coisa em sua longa vida.

Andaram por mais algumas semanas, novamente em silêncio. Em dado momento, a menina perguntou sobre as duas outras criaturas do abismo. Emp Deed respondeu, cautelosa:

— A morena se chama Emp Aded e a loira era Emp Eaad. Você não precisa se preocupar com elas, nada acontecerá com ambas durante uma infinidade realmente grande de tempo. Nada, literalmente.

Nenhuma delas insistiu mais no assunto. Por fim, após longo período de trajeto, a demônia parou no meio da grama, em qualquer lugar exatamente igual a todos os outros lugares vistos até ali. Disse, simplesmente:

— Chegamos.

Meg ficou confusa. Não conseguia ver qualquer cidade em qualquer direção e achava que a demônia estava zombando de sua ingenuidade. Emp Deed ofereceu-lhe a mão e Meg a tocou ansiosa. Começaram a levitar e subir, cada vez mais alto, adentrando na escuridão do céu e voando cada vez mais pra cima durante horas e horas, depois por dias e dias. O campo, por mais que diminuísse abaixo, nunca sumia. Sua luz vermelha e fraca permanecia oscilando na visão de Meg, que esperava com o braço cada vez mais dolorido. Quando finalmente avistou algo diferente acima, ficou tão animada em gritos e comemorações que quase se soltou sem querer para a colossal queda que a separava do gramado.

— Ali, ali! Olha ali, é ali!

À frente, havia uma gigantesca porta triangular branca que seria invisível na escuridão, não fosse por sua maçaneta brilhante como uma pequena lua. Emp Deed seguiu em direção ao portal, abriu-o com uma mão enquanto cobria os olhos com a outra e jogou a menina para dentro. Meg fechou os olhos ao ser lançada, com medo do que avistaria ao abri-los de novo.

Sentiu o corpo cair num terreno fofo e riu extremamente animada pela sensação nova, tão diferente do campo vermelho. Abriu os olhos e viu uma grande colina, repleta de neve. No topo, uma cidade brotava entre as pedras, com casebres de madeira podre contrastando com gigantescas estruturas de ferro oxidado. Embora a cidade fosse bastante grande, ela enxergou poucas luzes acesas vindas do local.

— Está nevando bastante. É melhor a gente correr. — Anunciou Emp. Meg concordou e seguiram caminhando por cerca de cinco horas, até finalmente alcançarem os portões. Foram recepcionados por um homem de rosto ossudo e olhos negros, barba espessa e roupas de couro. Agressivo, ele questionou sem mais detalhes:

— Quais são os seus negócios? Veio ver o governador? Veio participar da guerra? Ou está só de passagem? Se eu fosse você, sairia deste inferno, garota. Você é muito jovem para morrer aqui.

Visita ao governador, guerra ou apenas passagem?

5.

— Estamos só passando pela cidade. Está nevando muito, senhor.

Foi assim que Meg respondeu, encabulada. O homem a encarou com uma expressão de dúvida, acirrando os olhos para tentar descobrir algo mais. Enquanto abria os portões, perguntou com um tom de voz impaciente:

— “Estamos”? Você e mais quem, garotinha solitária? Tome cuidado aí dentro. Podem te matar se fizer alguma bobagem, por menor que seja.

Meg encarou a demônia, que apenas virou os olhos e deu de braços, fingindo não saber o motivo pelo qual o homem não a enxergava. As duas entraram lentamente e olharam ao redor procurando por qualquer um ou qualquer coisa, mas tudo que viam eram casebres em ruínas e neve. Seguiram em direção aos gigantes edifícios metálicos do centro da cidade e Meg começou a perceber alguns pares de olhos que a encaravam das janelas escuras, como animais acuados. Emp disse:

— Não creio que seja tão sábio ir direto para o centro, menina. Podemos esperar a nevasca passar em algum desses casebres abandonados.

A menina, entretanto, estava decidida a seguir em frente. Não parou para considerar, nem ao menos para responder. Andaram por alguns minutos até que uma mulher, com cabelos azulados e de rosto cheio, veio para detê-los. Trajava uma armadura de ferro antiga e repleta de marcas de batalha e carregava um revólver pesado na mão. A sua voz era rouca e alta, inquisitiva e quase intimidadora:

— O que quer nas ruínas de Concentriel, criança? Pra onde vai? É perigoso andar por aí sozinha, principalmente no centro. Tem uma guerra acontecendo lá, menina.

— Não estou sozinha e não tenho medo, moça — a garotinha retrucou, sem dar qualquer abertura. Não gostara particularmente da mulher, nem da forma como a tratava. Era provável que Meg fosse mais velha do que toda a cidade e tinha uma demônia a acompanhando: estava farta de ser avisada dos perigos que encontraria e só queria encontrar logo alguma aventura.

— Criança, não seja tola. Venha comigo, posso te levar para um lugar seguro. Caso negue, eu vou te seguir de qualquer forma. Não vou deixar outra criança morrer nessa maldita cidade, mesmo que seja uma criança estúpida.

Emp Deed encarou Meg, esperando ouvir um comando por ajuda. Quando a menina virou para olhá-la com uma expressão indecisa, Emp disse:

— Podemos despistar essa mulher se voltarmos e eu creio que consiga deixá-la confusa, caso você deseje. Tenho alguns truques que ainda não mostrei pra você.

A mulher de cabelos azuis, que aguardara impaciente enquanto a menina conversava com a demônia, enfim gritou, irritada:

— Vamos, criança! Não vou esperar aqui a noite toda.

Seguir para o centro com a companhia da mulher, ir para o dito lugar seguro ou usar Emp para despistá-la?

6.

Meg olhou profundamente nos olhos de Emp Deed, torcendo para que esta lesse corretamente sua expressão.

A demônia pareceu entender e ordenou, com a voz risonha:

— Dê meia volta e siga reto, menina. Não olhe pra trás, vou cuidar disso pra você.

Obediente, Meg virou de costas e seguiu seu caminho. A mulher veio logo atrás, bradando ordens e nervosa por ter sido ignorada. Num instante, contudo, sua voz engasgou e um silêncio frio cortou suas reclamações. Meg parou, mas não olhou para trás. Um soluço forte ecoou e Meg escutou a mulher cair de joelhos. Um sibilo grosso e rouco veio em seguida, prolongando-se por alguns segundos. A garota permaneceu quieta no mesmo ponto, tensa. Finalmente, ouviu Emp Deed anunciar, com a sua voz aguda e animada:

— Pode se mexer agora, menina. Venha cá.

Meg virou e foi na direção da demônia. A mulher estava jogada no chão e uma poça de sangue se espalhava pela neve, vinda de sua boca. Ela soluçava pequenos gorfos de sangue periodicamente.

— Ela vai ficar bem? — Perguntou Meg, preocupada. Queria apenas que a desconhecida fosse embora, não que morresse.

— Talvez. Caso ela lide bem com o trauma dessa terrível experiência, acho que sim. Vamos continuar?

A menina não entendeu exatamente a resposta, mas acenou com a cabeça. As duas deixaram a desconhecida para trás, ainda engasgada no próprio sangue, e seguiram seu caminho ao centro. Meg voltou a cantarolar, tentando, sem sucesso, criar uma letra para sua melodia. Quanto mais andavam, mais as ruas se estreitavam e mais olhos a garota via nas janelas mais próximas dos gigantescos prédios ao redor. A observação silenciosa a incomodava, mas ela não queria tentar qualquer contato com os habitantes de Concentriel. Eles pareciam todos bastante insistentes em tratá-la como uma criança.

Seguiram os sons de gritos vindos de uma rua paralela à avenida em que até então caminhavam. Alcançaram uma praça, onde a menina viu dois homens velhos e magros se espancando violentamente, ambos vestindo apenas trapos. Em berros frágeis e roucos, gritavam ofensas e maldições um ao outro a cada soco deferido:

A menina se aproximou. Em um primeiro momento, os homens nem perceberam sua presença.

— Por que brigam? — Ela questionou, olhando-os curiosa.

— Por que seus olhos sangram? Por que está nevando? Por que você se importa? — Um dos velhos respondeu enquanto socava o outro na altura do abdômen.

— Oras, porque brigar é errado. Parem com isso! — Ela respondeu balançando o dedo indicador, dando uma bronca nos dois.

Os homens pararam a contenda por um segundo, apenas para encará-la com maior atenção. Um deles riu uma risada seca.

— O que vai fazer, nos impedir? Desaparece, menina. Você não tem nada com isso. Ou então fique aí e aposte, te darei um pão e um teto pra dormir caso torça por mim e eu acabe ganhando.

— Então eu te darei uma chave especial e um segredo caso eu ganhe. Que achas, menina? — O outro velho disse.

Impedi-los, apostar pelo pão e moradia ou apostar pela chave e o segredo?

7.

— Eu posso fazer quem você quiser ganhar, Meg. Mas não tenho como impedir esses dois sem matá-los.

Foi isso que Emp declarou, sorridente. Ela parecia gostar bastante daquela situação.

A menina pensou durante alguns segundos. Estava triste por ter que ver os homens lutando, mas viu a oportunidade de tirar algo disso. Pouco se importava com pão ou moradia. Não sentia fome e estava ali apenas para explorar, não para viver junto de um velho briguento. Anunciou sua escolha, cabisbaixa:

— Aposto no senhor, homem da chave e do segredo. Boa sorte na sua luta.

O homem sorriu em resposta, agradecido pela fé que a menina depositara nele. O outro aproveitou a chance para desferir-lhe um soco no maxilar, fazendo o homem da chave quase cair no chão. Meg sentou-se com as pernas cruzadas para assistir ao conflito.

Emp Deed, após alguns segundos de diversão observando a violência, aproximou-se do velho que Meg escolhera e tocou seu braço. Uma luz avermelhada emanou da palma da mão da demônia, mas nenhum dos dois idosos pareceu perceber. O velho das chaves então urrou num grito violento e poderoso que não parecia sair de sua garganta e nem vir da mesma voz fraca que usara antes. Preparou um soco, subindo o punho para trás, e desferiu violentamente, com força e velocidade quase irreal, no estômago de seu oponente, que caiu no chão assustado e ocupado demais tentando tragar algum ar para poder reagir. O idoso das chaves, ainda tomado de fúria, deu um chute certeiro no nariz do inimigo ao chão. O atingido deu um giro no ar e caiu de barriga para cima, desacordado e com o nariz moído numa pasta de sangue e carne.

— Ganhei, minha bela menina! Eu ganhei, sou seu forte vencedor.

Meg riu desconcertada, preocupada com o estado do homem jogado no chão. Levantou-se, aproximou-se e deu um beijo na bochecha do vencedor. Parabenizou-o e pediu por seu prêmio. O homem tirou uma chave de suas roupas surradas e entregou-lhe. Era um objeto de prata, com um quadrado de diamante na ponta. Ele se aproximou e sussurrou apreensivo:

— Esta chave… Ela abre um baú no antigo prédio da prefeitura. O governador está procurando há anos por essa belezinha para tentar abrir o baú. Ninguém sabe o que tem dentro. Se você conseguir chegar lá, pode acabar descobrindo algo valioso.

A menina sorriu e guardou a chave nas suas vestes negras. Então encarou o idoso nos olhos e perguntou:

— E o segredo?

O homem pigarreou. Olhou ao redor novamente, aproximou-se ainda mais e falou, ainda mais baixo, em tom sinistro e amedrontado:

— Existe algo no topo do abandonado edifício Babel. Fica no centro também, mas é um lugar desgraçado, aos pedaços e quase caindo ao chão. Ele já foi o lugar mais belo daqui nos tempos antigos. Suas centenas de andares brilhavam na noite, fazendo com que qualquer um na cidade conseguisse localizá-lo mesmo estando a quilômetros de distância. Agora, entretanto, ninguém mais vive ou vai lá. Pelo menos ninguém normal. Existe uma criatura, um demônio talvez, lá em cima… Mas isso não é coisa para uma garota linda que nem você. Você devia vir comigo, vou voltar para o subterrâneo e ir ao encontro dos meus amigos. Estamos em guerra, sabia? É perigoso zanzar por aí.

Seguir o homem, ir atrás do baú ou descobrir o que existe no edifício abandonado?

8.

Meg agradeceu pela disposição do homem, pelo presente e pela história, mas disse que não gostaria de acompanhá-lo.

O idoso se afastou, entristecido, mancando e gemendo de dor por horas de batalha sem sentido. Olhou para trás uma última vez quando já estava distante e, sorrindo, acenou uma despedida. Depois virou uma esquina e sumiu atrás de um prédio.

— E então, para onde vamos? — Perguntou Emp Deed, interessada. Meg já andava, com seus passinhos rápidos, fazendo pegadas de seus pés descalços na neve cinzenta de sujeira que cobria o chão.

— Vamos pro tal do Babel, Emp. Voe alto e procure o maior prédio que encontrar.

A demônia fechou a cara por um instante, mas depois começou a levantar voo. Meg reparou no rastro de vapor que saía de seu chifre quebrado, fazendo uma linha no céu escuro e derretendo pingos de neve em água. Emp perdeu pouco mais de um minuto subindo e depois desceu, tomando outro minuto. Com a voz manhosa e mordendo os lábios, anunciou:

— Menina burra, eu queria ter ido atrás do baú, estou farta de encontrar com criaturas. Você é uma criança muito inconsequente. O prédio está deliciosamente horroroso, deve ser algo anormal que ainda o mantém de pé. Fica bem longe, depois de dois muros gigantes, naquela direção. — Ela apontou para uma ruela suja e estreita, tão escura que era impossível ver seu término. E então começou a seguir para lá, sem maiores rodeios. Meg seguiu o caminho aos pulinhos, finalmente criando uma pequena letra para poder cantar.

Era vermelho pálido
O gramado de onde eu vim
E por mais que lá andasse,
Não encontrava fim,
Mas agora tem um prédio
Que eu quero explorar,
Não tenho medo de perigos,
Tenho alguém pra me salvar.

— Que porcaria, Meg. Preferia suas canções sem letra. Mesmo para uma primeira tentativa, isso é medíocre. — Emp opinou.

A menina não se deixou ofender pelo comentário e continuou cantando alegremente sua primeira música. A demônia fechou a cara, emburrada. Andaram por muitas e muitas horas sem nada ouvirem além da cantoria incansável de Meg. Finalmente, chegaram aos pés do edifício, uma gigantesca estrutura agora toda enferrujada. Meg conseguia observar diversos andares onde barras caíam para fora, ameaçadoras. O arranha-céu provavelmente tivera vidros algum dia, mas apenas alguns cacos ainda estavam grudados no que foram suas janelas. O chão estava sujo e cheio de escombros e, lá no topo, muito, muito, muito alto, Meg conseguia ver uma luz vermelha pálida oscilando.

— Tem certeza que quer subir nisso aí, garota? — Emp perguntou. — Podemos continuar indo a pé, mas se quiser posso te levar voando direto pro topo. Ou podemos voltar atrás daquele baú…

Subir voando com Emp, subir com os próprios pés e explorar o edifício ou voltar em busca da prefeitura?

9.

A garota estava com preguiça de subir todos os andares do gigantesco prédio com os próprios pés.

Além disso, estava ansiosa por descobrir logo o que havia na cobertura. Olhou para cima e apontou para a luz que enxergava lá longe, anunciando:

— Emp, você poderia, por favor, me levar mesmo lá pra cima? Não quero sem querer cortar meus pés nesses cacos de vidro…

— Apenas se você prometer cantar menos — a demônia bufou, sorrindo com o canto da boca, antes de oferecer-lhe a mão. Meg a segurou com força e permaneceu olhando para o prédio enquanto subiam lentamente, tentando assimilar alguma coisa estranha em algum andar através das janelas quebradas. Viu algumas pessoas no edifício, em vários andares diferentes. No oitavo, viu uma menina encolhida e chorando. No vigésimo, enxergou um homem morto com metade do corpo para fora da janela, a carne já quase completamente decomposta. No quadragésimo sexto, uma mulher gritava ofensas aos deuses, louca em seu ódio e tristeza. No octogésimo sétimo, uma criança andava em círculos atrás de um rato. No centésimo quinto, três mulheres cantavam em círculo uma canção, olhando para uma cabeça decapitada atravessada em um bastão. Mas, a partir daí, quando continuaram subindo, ela não viu mais ninguém. Nas próximas centenas de metros, tudo que o prédio tinha para oferecer eram escuridão e escombros, chegando ao ponto de, em certo andar, a estrutura ser mantida apenas por duas pilastras intactas entre toneladas de ruínas de concreto. No topo, o brilho vermelho se tornava cada vez mais forte.

— Chegamos, Meg — Emp Deed anunciou quando finalmente se aproximaram da cobertura. A demônia pousou cuidadosamente e soltou a mão da menina antes de olhar para a fonte da luz. Meg também olhou, curiosa com que tipo de criatura encontrariam.

Um homem gordo, com rugas profundas e olheiras acentuadas, repousava sentado. Era obeso e sujo, tinha uma grande barba marrom e vestia um manto desbotado e rosa. Na mão esquerda, segurava um livro de capa roxa e aspecto antigo e, na mão direita, segurava uma lança de guerra. Seus olhos eram completamente tomados pelo brilho vermelho ofuscante e forte, origem da luz que Meg vira durante toda a subida.

— O que quer aqui, criança? — O misterioso homem perguntou, com uma voz que tinha mil entonações em uma, todas elas severas e assustadoras.

— Quero saber o seu segredo — Meg soltou com tom confiante, sem se deixar intimidar. Por mais estranho que fosse o homem, ela era bem estranha também. Não tinha por que não se impor. — Que livro é esse que você carrega?

O homem sorriu, deixando a luz que vinha de sua boca vazar mais ainda. Meg cerrou os olhos por conta da claridade excessiva. Ele disse, com seus milhares de vozes soando serenas:

— O livro não tem mais nada de importante, garota. Está em branco outra vez, minha tarefa é recomeçá-lo. O que quer aqui? Quem é esta demônia que lhe acompanha?

Emp Deed encarou Meg assustada e então olhou para o homem, nervosa. Com sua voz mais ameaçadora, a demônia gritou:

— O que é você, criatura? O que faz aqui?

O homem riu do tom agressivo. Aproximou-se de ambas com passos calmos e vagarosos. Estendeu a mão para a menina, num sinal de boa fé.

— Sou um homem amaldiçoado. Vocês não podem me ajudar.

— Podemos sim, senhor! Do que é que você precisa? — Meg perguntou, sorrindo por achar que entendia finalmente alguma coisa. O homem não era de todo mal, apenas amaldiçoado.

— Preciso… De algo que está num baú, na prefeitura… — Ele começou, sibilando suas vozes. — Não tenho a chave… — Ele lamentou.

Emp Deed ficou muito desconfiada, mas Meg estava feliz por descobrir qual era o problema do homem. Podiam ajudá-lo a livrar-se da maldição e depois escreveriam o livro todos juntos, pensou.

— Emp, você consegue ir atrás do baú se eu te der a chave? — A menina perguntou, alegremente. A demônia virou os olhos.

— Não quero te deixar sozinha. Se formos, devemos ir as duas. Ainda assim, acho estúpido fazer qualquer coisa para este desconhecido antes de perguntar mais coisas antes. Isto tudo é esquisito demais, garota.

O homem permanecia parado, esperando. Seus olhos oscilavam o mesmo brilho pálido, agora ainda mais forte, quase cegando a garota.

Mandar Emp buscar o conteúdo do baú, ir atrás do baú junto dela ou pedir mais detalhes para o amaldiçoado?

10.

A menina não queria deixar o estranho sozinho e tinha preguiça de fazer todo o caminho até a prefeitura.

Estava curiosa em saber mais sobre aquele ser tão estranho e descobrir como ele chegara até ali. Faria como Emp disse e pediria mais detalhes, mas aceleraria as coisas mandando a demônia ir buscar o conteúdo do baú enquanto aprendia mais sobre o amaldiçoado.

Tirou a chave de suas vestes pretas e entregou para a demônia. Emp pareceu consternada com a teimosia de Meg, mas pegou o objeto e partiu voando atrás do baú.

Quando Emp Deed se afastou, o homem se aproximou mais de Meg, quase a abraçando, e disse:

— Agora temos que esperar, não é mesmo? Quem é você, menina? Por que sangra pelos olhos?

— Sou Meg, apenas isso. Não sei por que meus olhos são assim, mas eu nunca chorei na minha vida. Pelo menos não que eu me lembre.

— Mas que benção sua vida deve ter sido então, criança. Tudo que eu tive, desde sempre, foram motivos para chorar… — O amaldiçoado lamentou, com suas mil vozes agora trêmulas — Esta maldição que me aflige é só mais uma da minha lista de desgraças…

— Não fique assim, senhor! Você pode melhorar e ser feliz, sei que pode. Minha demônia foi buscar o que tinha no baú e iremos quebrar sua maldição, fica tranquilo. Depois disso vou te ajudar com esse tal livro!

O estranho homem pareceu, pela primeira vez desde que chegaram, totalmente perturbado. Suas vozes agora passaram, todas elas, um misto de demência, de ódio profundo e de ira intensa.

— Você não entende, menina? O baú não vai me salvar, nada vai me salvar. O livro é a maldição, eu só vou me livrar e poder voltar pra casa daqui dois milênios. Eu não posso nem concluir a história, só tenho direito de escrever seu começo… Caso ninguém termine o livro, sofrerei a dor mais dolorosa possível para sempre, garota, para sempre! E nunca morrerei. Só serei mortal novamente quando concluírem este maldito livro. Você não entende, não é mesmo, garota estúpida? Você é nova demais para entender, é nova demais! Vou livrar você da minha companhia amaldiçoada… — O homem gritava insano, absolutamente enraivecido, e começou a aproximar a garota da beirada do prédio. A cabeça dele girava e se contorcia em mil ângulos e a luz de seus olhos agora estava tão forte que Meg não conseguia enxergar nada. — Vou te livrar, garotinha… Vou te matar…

— Sou imortal, homem bobo. Pare com isso, eu quero ajudá-lo! — A garota alertou, nervosa, quase chorando pela primeira vez.

— Acha que é imortal também? Vamos confirmar, então — O homem ameaçou, antes de empurrá-la do prédio. Com seus olhos luminosos, observou o corpo magro da menina despencar pelas centenas de andares.

Emp Deed voltou horas depois. Questionou sobre a menina e o homem, sorrindo, foi direto e sincero:

— Joguei ela do prédio. Ela disse ser imortal. Quis tirar a prova.

Emp Deed ficou furiosa e sem ação. O conteúdo do baú que trouxera consigo era formado de papéis e tesouros, mas nada que aparentasse ter serventia para o homem amaldiçoado. Devia ir atrás de Meg imediatamente ou tentar matar o homem, deixando-se levar pela fúria? Poderia levá-lo junto consigo para que Meg, caso ainda estivesse viva, decidisse o que fazer.

Levar o homem e ir atrás de Meg, ir atrás de Meg sozinha ou se vingar do amaldiçoado?

11.

A demônia, mesmo enfurecida e desejosa de vingança, tinha mais urgência em achar a menina do que em lidar com o homem.

Arremessou o baú contra o amaldiçoado, que caiu no chão com o peso do ouro, e então alçou voo, descendo na maior velocidade possível até a base do edifício para tentar encontrar Meg.

Rondou por todos os lados do edifício duas vezes antes de conseguir avistar a garota, deitada na calçada embaixo de uma placa de ferro, com a barriga para cima e os braços abertos. Uma poça de sangue se formava ao seu redor e umedecia suas roupas negras. Emp Deed gritou, preocupada:

— Você está bem? Aquele homem… O que ele fez com você, Meg?

A garota levantou a cabeça lentamente, sorrindo. Disse, com a voz trêmula e rouca, enquanto se levantava:

— Isso doeu bastante, sabe. Eu não me lembro de já ter sentido dor antes, mas não acho que devem existir muitas tão doídas quanto essa. Agora minhas roupas estão todas empapadas de sangue, isso também é um problema bem chato.

A demônia riu aliviada pelo bem-estar da garota e por seu senso de humor inocente. Ajudou-a a se levantar e esperou enquanto se recompunha.

— O homem, o que aconteceu lá em cima com ele?

— Acho que o baú não vai ajudar ele, nada vai. Parece que ele tem que escrever um livro, mas não pode ser ele quem escreve, algo assim. Fiquei meio triste por ele. Acho que ele talvez mereça de um lugar mais calmo pra escrever… Um lugar que combine com o brilho dos seus olhos. — Meg olhou para a demônia com uma centelha de vingança e maldade começando a florescer no fundo de seu peito. Emp Deed entendeu a pista e anunciou, com a voz aguda tentando soar misteriosa:

— Acho que posso providenciar para o pobre homem um lugar para escrever. — Dito isso, voou novamente para o topo do prédio. Ao chegar lá, encarou o amaldiçoado com todo o desprezo que conseguia. O homem sorriu com sua boca reluzente e perguntou, em suas várias vozes:

— Ela é de fato imortal?

A demônia não se deu ao trabalho de responder. Apontou seu dedo indicador para ele, fazendo o gesto de uma pistola, sorrindo ligeiramente com o canto da boca.

— Bang. — Ela murmurou, enquanto disparava seu revólver imaginário na direção dele. Depois do barulho alto de um estalo, o topo do prédio foi tomado por uma gigantesca explosão luminosa, preenchendo boa parte da cidade em luz por algo mais que um segundo. Quando sumiu a luz, sumiu também o amaldiçoado.

Emp desceu voando calmamente para reencontrar a menina. Encontrou-a na calçada, cantando sozinha a mesma letra imbecil que criara horas antes.

— Para onde você quer ir agora, Meg? — A demônia perguntou.

— Estou meio dolorida ainda. Acho que a gente devia descansar um pouco. Tem muita coisa que a gente pode fazer amanhã.

Ambas seguiram juntas para um barraco abandonado. A menina se deitou, apoiada numa parede mofada, e disse com a voz calma e sonolenta:

— Foi um dia divertido, sabia?

Emp Deed acenou com a cabeça, concordando. Permaneceu ao seu lado, observando-a adormecer. A lua brilhava no céu e sua luz vazava para o cômodo abandonado através das frestas de metal enferrujado. Não era possível ouvir qualquer som. A demônia pensou que talvez fosse uma boa ideia levar a criança para algum século antigo, mesmo que fosse bastante distante dali. Dificilmente a menina seria lançada de um arranha-céu gigante antes dos prédios existirem.

— Era vermelho pálido… — Meg cantarolou baixo, já com os olhos fechados. Agora tinha uma música, mesmo que de letra bastante mediana, para cantar quando quisesse.

fim.

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Rodrigo Goldacker
Rodrigo Goldacker

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