Todos os adultos morreram em 2004

Rodrigo Goldacker
33 min readOct 7, 2023

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Photo by Hudson Roseboom on Unsplash

1.

A pandemia começou a matar em algum lugar, não se sabe exatamente onde, no interior da Europa. Isso quer dizer que tive alguns dias a mais do que seria quase uma normalidade por aqui, ainda com os adultos vivos, antes que o vírus começasse a fazer seu estrago por nosso continente também. Nos primeiros momentos do processo, ainda tínhamos televisão, noticiários, Internet banda larga. Primeiro, vieram notícias apocalípticas sobre uma Europa dizimada, posteriormente sem comunicação alguma. Depois, as notícias repetiram o mesmo padrão de gritos de desespero seguidos por silêncio para a Eurásia e para a África, daí para a Ásia também. Fronteiras foram fechadas, políticas de isolamento social extremamente rígidas foram implementadas, mas nada disso adiantou.

Aqui na América do Sul, a doença apareceu por último. Mas quando apareceu, o resultado foi o mesmo de todos os outros lugares: em poucas semanas, todos os adultos de todas as comunidades, até mesmo as mais remotas delas, foram morrendo. Crianças sobreviveram porque, aparentemente, a alta mortalidade do vírus estava relacionada à sua interação com alguma enzima do sangue que só era adquirida após o início da puberdade. Quem fosse contaminado antes desta puberdade, porém, criava resistência e não morria quando envelhecia.

Os sintomas nos adultos eram bastante trágicos. O início era aparentemente assintomático, mas na verdade servia como vetor de altíssima transmissão pelos fluídos e pelo ar. Essa fase, em que qualquer golfada de ar já era altamente contaminada, durava cerca de cinco a seis meses. Depois, evoluía para tosses e espirros, também transmissíveis. Em seguida vinha uma febre incapacitante, seguida de náuseas fortes, dores musculares e fraqueza. Finalmente, vinha a falta de ar, a anemia e os vômitos, que se intensificavam durante três a dez dias até levar ao óbito. Não deu para descobrir muitos detalhes sobre a doença para além disso: as pesquisas pararam quando os adultos foram morrendo.

Isso quer dizer que, pelas redes globais de turismo e comércio, o mundo já estava invisivelmente contaminado para além de qualquer esperança antes que a primeira pessoa desse o primeiro espirro, antes que qualquer um morresse. Quando começamos a ver as notícias na televisão sobre as primeiras mortes lá na Europa, meus pais, assistindo junto comigo na sala de estar, já estavam igualmente condenados.

Quando a televisão parou de funcionar, meus pais já tinham passado da fase de febre para o início da anemia. Os dois morreram no mesmo dia, com o intervalo de apenas algumas horas. Foi o mesmo dia, inclusive, em que a Internet finalmente caiu. Fiz um chá final para minha mãe logo cedo, que tomou, agradeceu-me e morreu minutos depois. Meu pai durou mais quatro horas, que passou intercalando dizer que me amava, chorar e vomitar.

Eu não chorei. De certa maneira, na verdade uma das minhas primeiras emoções quando os dois tinham se ido foi de alívio. Tinha assistido o lento sofrimento deles durante aquelas semanas, então fiquei aliviado por eles estarem libertos da dor.

Também acho que não chorei porque, assim que eles morreram, considerei mais seriamente a situação em que eu agora estava vivendo, ao tornar-me um órfão. Enquanto estavam vivos, mesmo que agonizando, meus pais ainda me davam ordens e conselhos. Pediam para eu conferir se todas as portas e janelas estavam trancadas, proibiram que eu saísse às ruas, pediam que eu lhes alimentasse e me alimentasse também.

Agora, pela primeira vez, eu tinha que pensar no que faria sozinho. Aos nove anos de idade, isso era particularmente difícil num mundo que eu não entendia muito bem como funcionava mesmo antes em sua normalidade, quanto mais agora com um cenário absolutamente inédito onde tudo que existia eram crianças órfãs.

Passei o primeiro mês preso em casa. Tive que lançar os cadáveres dos meus pais pela janela da sala, quando começaram a feder muito e juntar bichos. Copiei a ideia de outros apartamentos que já tinham feito o mesmo, porque lá embaixo se juntavam vários corpos. Não queria sair de jeito nenhum porque, ao que conseguia ouvir e ver do nosso apartamento (morávamos no décimo terceiro andar), as ruas estavam em estado de anarquia.

No apartamento, a eletricidade parou de funcionar dois dias depois que meus pais morreram. Nas ruas, ela continuou funcionando mais alguns dias, mas depois apagou também. Só que foi acesa uma semana depois, mas voltou de um jeito meio inconstante. Ficava algumas horas funcionando, daí caía. Imaginei se em algum lugar existiam crianças aprendendo na marra a religar a estrutura energética. O filho de algum funcionário público que fosse engenheiro elétrico, talvez.

Fiquei alguns dias jogando Pokémon no meu Game Boy, a única coisa que servia para me distrair. Sempre que a luz voltava, a primeira coisa que fazia era recarregar a bateria. Consegui fechar o jogo e completar a pokédex com todos os pokémons que não precisavam de trocas ou eventos para capturar. Enquanto isso, acabei com todo o estoque de comida que tinha. Daí, comecei a puxar na minha cabeça quais dos vizinhos eu lembrava que não tinham filhos — e passei a invadir os apartamentos mais próximos para procurar mantimentos.

Deu certo nas primeiras duas vezes: os apartamentos que invadi estavam vazios, exceto pelos cadáveres dos adultos. Na terceira vez, porém, dei de cara com outra criança. Era um menino de cinco anos que levava duas facas na mão. Ao me ver, ele ameaçou me cortar se eu não fosse imediatamente embora. Obedeci.

Fiquei mais alguns dias no meu próprio apartamento, trancado sozinho e com medo, até que a fome ficou insuportável. Abri a porta e decidi que precisava procurar outros apartamentos.

Desci pelas escadas para o andar de baixo. No hall, encontrei um grupo de quatro crianças. O mais velho, que acreditei que devia ter mais ou menos minha idade, tinha pinturas a dedo de listras por todo seu corpo. Pareciam ser pintadas a sangue. O mais jovem do grupo era o mesmo menino das facas que eu tinha encontrado antes. Havia também os corpos de duas crianças no chão, no que ficava difícil identificar se alguma ou ambas eram adversárias do grupo que agora me encarava.

O mais velho sorriu para mim. Apontou um revólver e disse para que eu me mexesse devagar. Eu ergui os braços, rendido. O mais jovem, com suas facas, chegou perto e colocou sua lâmina rente à minha garganta. Os outros dois meninos, que eram gêmeos, riam da situação e foi um deles que falou:

— Quem é você? Você tem só uma chance de conquistar nossa simpatia.

Engoli seco e me apresentei gaguejando.

— Meu nome é Lucas. Eu tenho nove anos, morava com meus pais no décimo terceiro andar.

O menino das facas me interrompeu.

— Eu lembro dele. De antes da pandemia, inclusive, vi ele no elevador com os pais uma vez. Também topei com ele no 1103C umas semanas atrás. Acho que ele é inofensivo.

O menino mais velho me olhou com muita seriedade e perguntou:

— Você está sozinho? Ainda sem grupo?

Fiz um aceno com a cabeça de que sim.

Ele sorriu e continuou:

— Que bom que você achou a gente, então. Se você tivesse encontrado com o grupo do Matheus, eles teriam te torturado só por diversão e te matado depois pra comer. Fizeram isso com todas as crianças que moravam no bloco A.

Aterrorizado com essa imagem, tentei parecer otimista e educado ao retrucar:

— É.. Que bom que topei… Com vocês…

O menino com a arma se apresentou com um sorriso.

— Meu nome é Fernando, tenho oito anos. Prometo que se você não for útil, vamos te matar sem crueldade.

Fiquei sem saber o que responder durante alguns segundos. Travei em pânico, considerando a “bondade” de Fernando ao me prometer uma morte “sem crueldade”. Então, quando retomei certa curiosidade pelo meu próprio destino, perguntei:

— Útil?

Fernando, ainda sorrindo, explicou como se fosse um assunto banal.

— É, útil. Pra combate, já deu pra ver que você não vai servir muito. Mas talvez você sirva pra outra coisa. Você sabe cozinhar, ou ler? A gente tá precisando de alguém que faça os dois. Eu repeti de ano duas vezes porque não aprendi a ler direito, os outros do grupo são novos demais para terem aprendido.

— Eu sei escrever meu nome, tá — o menino das facas fez questão de se defender.

Pensei que poderia dizer ser muito bom nas duas coisas, mas fiquei com medo de que fossem testar minhas habilidades e que a morte pudesse ser “com crueldade” se descobrissem que eu tinha mentido.

Então fui honesto:

— Cozinhar não sei, mamãe… Quer dizer, minha mãe… Minha mãe era quem cozinhava… Eu só sei fazer chá, miojo e pipoca, foi o que fiz pra eles nos últimos dias… Mas eu acho que consigo aprender…

Fernando engatilhou sua arma.

— E ler, sabe?

Comecei a chorar.

— Ler eu sei, sim… Muito bem, inclusive… Fui o primeiro da classe a aprender… Até um pouco em inglês, por causa do videogame…

Fernando lançou um olhar significativo para um dos gêmeos que ria. Ele acenou com a cabeça e saiu andando pelas escadas para algum outro andar. Durante alguns minutos, nós que sobramos no hall ficamos em silêncio, Fernando e o menino das facas me mantendo rendido.

O menino que tinha ido embora voltou com um grande livro na mão e me entregou. Era um livro de culinária.

— Qual é o nome do livro? Pode ler aí na capa — Fernando exigiu.

Olhei para a capa e tentei ler do jeito mais fluente que era capaz:

— Livro de Receitas Gostosas da… Senhora Lucíola…

O menino da faca ficou desconfiado:

— Como vamos saber que é isso mesmo que tá escrito aí? Ninguém aqui sabe ler pra confirmar, ele pode tá inventando.

Antes que eu pudesse tentar me defender, Fernando sacou o livro, folheou e abriu numa página específica.

— Leia essa página aqui. Minha mãe já tinha feito essa receita, se você contar errado vou saber e vou te dar um tiro na mesma hora.

Não consegui evitar de chorar diante da ideia de que ler uma receita da Senhora Lucíola naquele momento significava pra mim a diferença entre viver ou levar um tiro na cabeça.

Mas comecei a leitura:

— Nhoque de… Mandioquinha com molho à bolonhesa…

Achei que só isso poderia ser suficiente, mas não era.

— Muito bem — Fernando me parabenizou antes de continuar. — Mas você pode só ter reconhecido a foto da receita. Continua lendo.

Tentando não chorar nem gaguejar, reuni forças pra continuar:

— Ingredientes… Um quilo e meio de mandioquinha, duas gemas de ovo, uma xícara de chá de farinha de trigo… Farinha de trigo também para polvilhar a bancada… Modo de preparo… Lave, descasque e corte cada mandioquinha em três… Pedaços…

— Tá me dando fome — um dos gêmeos de canto comentou.

Fernando sorriu e me ordenou que continuasse. Obedeci.

— Transfira pra uma panela grande e cubra com água… Leve ao fogo alto… Quando ferver, diminua o fogo e deixe cozinhando por meia hora, até as mandioquinhas ficarem macias… Espete com um garfo para verificar o ponto…

Fernando me interrompeu.

— Se não me engano, minha mãe deixava as mandioquinhas darem uma queimadinha sem água antes de colocar pra ferver.

Eu não soube como retrucar. Achei que ia morrer ali mesmo, por causa de uma divergência numa receita de nhoque de mandioquinha.

Mas Fernando seguiu assim:

— Mas minha mãe tinha mesmo dessas de ser criativa nas receitas. Acho que você tá falando a verdade e sabe ler sim.

— Também acho — o menino das facas fez questão de dizer, para participar.

— Sei sim… Não teria por que mentir… Quer dizer, para além de não levar talvez um tiro ou… Uma facada na garganta…

Fernando e o menino das facas riram abertamente. Os outros dois de canto deram risadinhas mais abafadas.

Finalmente pararam de apontar a arma e a faca pra mim.

— Muito bem, Lucas. Seja bem-vindo ao bando. Nós somos os meninos do 212C. Você vai gostar de lá, tem até piscina. Só que já tá ficando um pouco suja e ninguém sabe limpar. Se a gente achar o manual, você vai ajudar com isso.

O menino das facas tirou uma bolacha recheada do bolso do shorts.

— Tó. Meu nome é Pedro. Cinco anos.

— Obrigado, Pedro — agradeci ainda ofegante, comendo a bolacha que já estava meio murcha.

Fernando apontou com o dedo para as escadas que subiam.

— Dá pra gente subir até o fim do prédio antes de voltar pro nosso bloco. Bora? Lucas, segura o livro e já vai procurando aí alguma receita com sardinha enlatada, é o que a gente mais tem lá no 212C. Ah, e vai no fim da fila pra não morrer, você é café com leite.

Não tive certeza se devia ficar agradecido ou ofendido. Respondi ainda um pouco tímido:

— Tudo bem…

— Aproveita também pra procurar aí alguma receita com cerveja. A gente tá bebendo um monte agora que a gente pode, mas eu já ouvi falar que dá pra usar isso pra cozinhar também.

E saímos então todos juntos, numa fila única e andando lenta e silenciosamente, para explorar os próximos andares.

2.

Enquanto a morte de todos os adultos foi um evento bastante infeliz para a maioria das crianças, existiu uma pequena parcela delas que ficou na verdade bastante feliz com o desenrolar da tragédia. Fazia sentido lamentar pela morte de seus pais quando eles eram pessoas amáveis e carinhosas, mas não tanto quando se tratavam de adultos detestáveis, agressivos e abusivos, como era o caso do pai de Matheus.

A mãe do menino simplesmente tinha abandonado a família quando o filho tinha só quatro anos de idade. Por um lado, Matheus entendia: ela devia estar cansada das brigas terríveis que tinha frequentemente com o marido e que volta e meia evoluíam para agressões físicas mesmo. Mas ela podia ao menos ter levado o filho junto…

Sem outro alvo no qual pudesse ser descontada, a agressividade do pai passou a ser descontada principalmente no filho. Especialmente quando bebia, o pai de Matheus acabava achando qualquer desculpa para bater no filho, desde “você não lavou a louça direito” até “não gostei do tom dessa sua resposta”. As porradas vinham de todas as maneiras, fosse com murros das mãos limpas do pai, fosse com chinelos, às vezes até pedaços de pau.

Crescendo já habituado com isso, Matheus chegava a quase naturalizar os ataques que sofria. Ainda doíam, é claro, mas ele logo aprendeu a repetir a mesma estratégia familiar: se o pai descontava nele o ódio que sentia da ex-esposa, o ódio de Matheus podia ser descontado nas outras crianças.

Quando a pandemia começou, portanto, Matheus era talvez uma das poucas crianças que já tinha um histórico e uma experiência com o tipo de violência que aquele novo mundo permitiria. Talvez o condomínio de prédio pudesse ter evoluído para uma comunidade mais cooperativa, ao invés de um conflito tribal de facções infantis. Talvez, se não fosse Matheus. Antes mesmo de seu pai morrer, quando o velho ainda agonizava na cama, o menino já o deixou sozinho e saiu de seu apartamento para começar a construir sua nova vida. Roubou uma faca de churrasco da cozinha e o revólver do pai, que o velho mantinha na mesinha de cabeceira, e não se despediu ao ir embora, mesmo com os gritos do adulto exigindo que voltasse.

Antes da pandemia, Matheus costumava frequentar muito o playground do condomínio, especialmente para ficar longe de casa e do pai. Aproveitava desde então o ambiente sobretudo para praticar bullying com outras crianças e para construir seu próprio grupinho, do qual já era uma espécie de líder mesmo antes de tudo. E apesar de toda sua crueldade, uma coisa que Matheus fazia questão de manter era certa lealdade. O mesmo grupinho de cinco crianças de antes se tornou o coração da facção que formou, no que um a um, todos os meninos tiveram um instinto semelhante ao dele de procurarem os amigos no playground.

Diante das outras facções que foram se formando, a de Matheus tinha uma grande particularidade na questão da estrutura hierárquica. Normalmente, as crianças mais velhas assumiam papéis de liderança, enquanto grandes grupos de crianças mais jovens eram divididas para outras funções. No caso do grupo de Matheus, era o menino e seu círculo íntimo, todos com oito anos de idade, que estavam no topo da estrutura. Fora eles, porém, o grupo era formado sobretudo por meninos mais velhos, de dez ou onze anos, que Matheus achava mais úteis. As crianças mais novas que apareciam pedindo proteção ou para participar do grupo eram sacrificadas. Matheus, de uma forma um tanto contraditória, dizia que eram “pesos mortos”, inclusive crianças que tinham a mesma idade que ele.

A facção de Matheus foi uma das primeiras a se estruturar e consolidar porque as crianças que participaram dela foram as únicas que abandonaram suas casas antes mesmo que seus pais morressem. Foi também a facção de Matheus quem iniciou a maior parte das violências. Um menino de onze anos, que assumiu uma função de algo como um conselheiro do grupo, alertou que uma competição por recursos e dominância do condomínio aconteceria eventualmente. Menos por se importar com o argumento e mais por querer extravasar suas vontades, Matheus ordenou e participou de um extermínio completo de todos os sobreviventes do bloco A, tomando controle da torre inteira e de todos os recursos que ela possuía só para si. Por um terrível e cruel ritual, em que Matheus ficou berrando ser “o dono disso tudo” enquanto sujo de sangue, ele obrigou todos os membros da facção a praticarem canibalismo com suas vítimas. Naquele primeiro momento, o canibalismo não foi uma necessidade alimentar, longe disso: nas primeiras semanas, ainda havia abundância de recursos disponíveis especialmente para o grupo de Matheus, que tinha tomado controle total de uma torre toda só para si.

A necessidade foi de Matheus mesmo. Uma necessidade de extravasar, de direcionar seu ódio para o mundo.

— Nosso plano é primeiro assegurar o controle total do condomínio todo. A gente tem que fazer isso depressa, antes que algum grupo faça a mesma coisa nos condomínios vizinhos e comecem a crescer o olho pra cá — era o argumento que seu conselheiro de onze anos, chamado Renato, deu para justificar a violência. Novamente, para Matheus era quase uma desculpa ou racionalização do que ele já queria fazer mesmo.

— Tá bem. Então a gente tem que preparar um plano pra invadir as outras torres também. Matar todo mundo lá, garantir controle.

Renato engoliu seco, hesitante. Estava evidentemente acovardado e com medo de dizer algo que sabia que talvez não fosse agradar. Matheus percebeu, deu um riso alto e exagerado, encenado da forma mais caricata que uma criança de oito anos poderia dar, e exigiu:

— Fala logo o que cê tá pensando, Renato, larga de ser bundão.

Se a covardia de dizer algo que pudesse discordar do líder era grande, a covardia de desobedecer uma ordem direta era maior. Então Renato explicou:

— Talvez.. Bem, talvez não matar todo mundo… Alguns podem ser úteis… Como escravos… Uma hora ou outra vamos precisar começar a plantar… E também dá pra descobrir mais sobre os outros grupos torturando reféns…

Ao contrário do que Renato esperava, Matheus adorou a ideia. Mas não quis dar o gostinho para o menino mais velho, então fingiu impaciência ao retrucar:

— Tá bem, tá bem, a gente não mata todo mundo então, só uma boa parte, certo?

Renato assentiu com a cabeça.

Empolgado com as novas possibilidades para além do assassinato puro e do canibalismo, naquele dia mesmo Matheus formou uma comitiva com dez de seus meninos, encabeçada por ele mesmo, para invadir as áreas comuns ao redor do salão de festas do bloco D.

Na brinquedoteca, encontraram um grupo de cinco crianças de quatro anos junto com um menino de dez que cuidava deles. Mataram os mais jovens e perguntaram se o mais velho queria se juntar a eles. Claramente em choque e chorando pela morte dos mais novos de quem cuidava, ele não conseguiu nem responder. Matheus fez questão de matá-lo pessoalmente. Depois, invadiram o almoxarifado, onde encontraram dois walkie talkies que eram da antiga organização do condomínio.

No salão de jogos, encontraram alguém fuçando nas gavetas e roubando baralhos de cartas: uma menina de uns nove anos de idade.

— O que você tá fazendo aqui, menina? — Foi Matheus quem questionou, depois que a renderam. Ela estava desarmada.

A menina gaguejou.

— Vim dar uma olhada… Só… Ver o que tinha…

Renato se aproximou de Matheus e cochichou algo em seu ouvido.

Como se a ideia fosse dele, Matheus continuou:

— Sabe uma coisa, menina? Normalmente jogar cartas é algo que se faz em grupo. Cadê deu grupo?

Dessa vez, a menina só mexeu a boca várias vezes, mas sem emitir nenhum som.

— Tá aí, Renato! Nossa primeira refém! — Matheus comemorou.

— Refém? — a menina conseguiu perguntar enquanto choro começava a sair dos seus olhos.

Matheus ordenou que a amarrassem e levassem de volta para o playground. Ficou animado com a ideia de passar o resto do dia tentando arrancar da garotinha mais informações sobre onde estava o grupo dela. Pensou que se ela era menina, devia ter outras meninas no grupo em que ela estava. Se essa garota em particular não parecia para Matheus muito bonita, talvez alguma das outras fosse.

Um dos meninos do círculo íntimo de Matheus, que também tinha oito anos, chamava Júlio. Matheus virou pra ele e disse sorrindo, enquanto voltavam com a menina sequestrada para o bloco A:

— Acho que isso vai ser legal. Se tiver uma menina bonita no grupo dessa aí, vou guardar pra ser minha namorada quando crescer.

Júlio riu e pediu se podia ficar com a “segunda menina mais bonita” que encontrassem pra ele.

Matheus disse que sim, mas pensou consigo mesmo que talvez quisesse as duas mais bonitas para si e que Júlio fosse ficar só com a terceira.

3.

Com algo em torno de cem crianças, o grupo das meninas do bloco B era, ao mesmo tempo, o maior e menos violento entre todos os que haviam se formado no condomínio.

A ideia não era exatamente a de formar uma espécie de exército, mas de na verdade oferecer verdadeiramente um cuidado, especialmente aos mais novos. O bloco B foi o único em que crianças muito pequenas, com menos de quatro anos inclusive, foram capazes de sobreviver e ser cuidadas depois que todos os adultos morreram.

O grupo foi se formando de uma forma primeiramente orgânica. Maria Julia, a Maju, aos onze anos de idade não imaginava que fosse se tornar uma liderança para tantas crianças quando decidiu, logo depois da morte dos pais, ir bater na porta do apartamento de uma amiga sua que morava dois andares para baixo. Dali pra frente, a reação foi em cadeia: foi junto com a amiga, Marcela, para o apartamento de uma terceira menina, amiga de Maria, que morava do outro lado do corredor; daí, essa menina que se chamava Pietra as levou para o apartamento de outra menina de quem era amiga, chamada Ana Clara, que morava três andares para baixo.

Enquanto os grupos de meninos foram se formando em encontros arriscados e agressivos nos corredores, nos quais as confianças e alianças eram sempre arriscadas e desafiadoras, o grande grupo das meninas começou a partir de alianças no boca a boca que foram se firmando em encontros mais seguros dentro de apartamentos. Foi quando as meninas já passavam de vinte em organização que decidiram começar a resgatar outras crianças, sobretudo as mais novas.

Era quase uma evolução natural da situação que Maju assumisse uma posição de liderança e de cuidado. Sua mãe, afinal, era enfermeira, seu pai era professor. Por isso, talvez estivesse numa das posições mais privilegiadas no que dizia respeito a acesso a recursos médicos. Maju, que já sonhava em seguir carreira na medicina, viu no auxílio às crianças um jeito óbvio de dar vida ao legado dos pais depois que eles morreram.

Assim, interpretando os pais, era mais fácil juntar forças para lidar com o fato de que eles tinham morrido. Também era mais fácil engolir o desespero para realmente tentar fazer algo. Ela sabia que estava basicamente brincando de “fingir ser adulta”. Mas como não havia qualquer adulto de fato por perto para perceber, seu fingimento era convincente o suficiente.

Ainda eram “o grupo das meninas” porque eram elas que ainda estavam em situação de liderança, mas entre a centena de crianças do grupo havia quase tantos meninos quanto havia meninas. Nisso, tinham um diferencial de diversidade importante frente a grupos como o de Matheus, que eram formados exclusivamente por garotos.

Mas haviam problemas e precariedades na maneira como as garotas resolveram lidar com a situação. Para começar, ao contrário do que elas tinham imaginado de início, cuidar de crianças de verdade não era exatamente igual a brincar de casinha ou de bonecas. Reunir tantas crianças também significava uma grande dificuldade de alimentar a todas elas. Era também particularmente difícil dar alguma utilidade sobretudo para as mais novas, ainda vulneráveis demais.

Além de tudo isso, Maju sentia que existia uma dificuldade de cunho pessoal quando engolia seus próprios sofrimentos para tentar oferecer esperança para as crianças pequenas. Os pais de todos ali tinham morrido muito recentemente, mas era mais difícil lidar com esse trauma tendo quatro ou três anos do que tendo onze. Por isso, ela só se deixava chorar quando sozinha, normalmente logo antes de dormir. No resto do tempo, mantinha uma postura pragmática, em que intercalava firmeza com as garotas de sua idade e as crianças mais velhas, e um cuidado amoroso com as crianças menores.

Mas houve um dia, uma situação, em que não conseguiu manter a mesma impassividade que tinha conseguido manter até então.

Suas cem crianças estavam ocupando dois andares inteiros do bloco B, o nono e o décimo primeiro. Tinham arrombado todas as portas entre esses dois andares, criando uma espécie de espaço amplo em que era fácil cuidar de todas as crianças. Havia uma forte segurança na descida para o oitavo andar, mas os andares para cima já estavam todos vazios. O problema principal cada vez mais se firmava como a questão de alimentação. Um mês tinha sido suficiente para que já tivessem limpado todos os recursos da torre em que estavam e, mesmo com racionamento, estavam perto de acabar com todos os suprimentos que tinham recolhido.

Nos últimos dias, Maju havia começado a enviar pequenas comitivas em busca de comida nos outros blocos, sobretudo no bloco D, que parecia ser o único onde até então não havia se formado nenhum grupo. Os resultados vinham sendo ambivalentes: por um lado, estavam realmente encontrando bastante comida; por outro, costumavam voltar também com mais crianças resgatadas, o que significava mais bocas para comer.

Naquele dia, porém, somente uma das meninas que havia enviado em sua comitiva voltou. Chamava-se Beatriz e estava muito assustada e ofegante.

— Maju, pegaram a Pietra. A gente tinha encontrado crianças que iam voltar com a gente… Mataram elas. Só voltei porque me escondi, não me acharam…

Elas tinham escutado rumores de barbaridades acontecendo entre outros grupos de crianças, mas tentavam não focar muito nisso. Primeiro porque desconfiavam bastante dos relatos das crianças que podiam ser muito influenciados por sua imaginação e medo. Segundo porque tinham suas próprias prioridades ao cuidar do grande grupo que tinha se formado no bloco B.

Maju não conseguiu evitar: chorou. E foi chorando que perguntou:

— Eles falaram o que queriam com ela?

Beatriz fez que não com a cabeça. Começou a chorar também. Ao contrário do choro de Maju, que acontecia somente nos olhos, o de Beatriz veio acompanhado de soluços e do corpo tremendo muito de medo.

Maju a abraçou.

— A gente vai organizar um grupo pra ir atrás dela. Vamos descobrir o que os meninos querem, né? Às vezes eles só queriam resgatar ela também e não sabiam que ela já tinha nosso grupo.

Beatriz se confortou no ombro de Maju, mas não parecia convencida por suas palavras.

Antes que pudessem organizar um grupo, porém, um menino de seis anos chamado Felipe as chamou para olhar pela janela.

Maju e Beatriz foram ver junto a várias outras crianças que estavam perto.

Do nono andar, conseguiam ver lá embaixo no térreo a figura de Pietra amarrada no meio de um círculo de meninos. Mesmo de longe, dava pra ver que ela chorava e tremia.

Um dos meninos lá de baixo berrou bem alto:

— É o seguinte, é bom vocês todas se renderem agora! Já! É pra descer sem armas! Devagarzinho, ou essa menina aqui vai se ver com a gente, tá!

Maju limpou as lágrimas dos olhos e ficou muito séria novamente. Disse para as crianças ao seu redor:

— Protejam a entrada do novo andar com tudo que puderem. Vou descer pra tentar negociar.

Beatriz foi contra.

— Vão te pegar também!

Maju conseguiu reunir todas as suas forças para fingir estar mais confiante do que estava ao responder:

— Não vão não. Sei blefar e sou mais esperta que eles.

Pela janela, ela berrou para os meninos no térreo:

— Já tô descendo! Calma aí!

E quando ela começou a correr pelos lances de escada abaixo, aproveitou a distância dos nove andares para chorar tudo que precisava. No terceiro andar, fez uma única pausa para limpar as lágrimas. Daí, seguiu caminho pro térreo como se não estivesse preocupada com nada nesse mundo.

4.

— Rabo de rato! Pé fedido! Pato gordo e manco! Um, dois, três!

Foi isso que Fernando gritou para uma porta trancada no segundo andar, depois que terminaram de vistoriar o prédio inteiro. Além de Lucas, o grupo tinha retornado com mais um menino que encontraram, além de muita comida e alguns videogames.

Do outro lado da porta, a voz de outro menino perguntou:

— O pato gordo é manco de qual pata?

Fernando tinha esquecido exatamente a ordem da resposta combinada. Demorou uns segundos puxando da memória antes de retrucar:

— Um, dois, três, três, dois, um! O pato gordo, na verdade, perdeu a pata.

Um segundo de silêncio. Fernando sabia que a demora era porque Joaquim, do outro lado da porta, estava tendo dificuldades pra lembrar da sequência também.

— E qual das patas que o pato gordo perdeu, um, dois, três?

Essa parte Fernando lembrava de cor:

— Na verdade, o pato gordo perdeu foi a pata sua senhora. Ficou viúvo, um dois, três.

A porta destrancou.

— Eu sempre esqueço aquela metade do meio — disse um Joaquim rabugento armado à porta. A entrada do apartamento 212C era uma barricada salvaguardada.

Originalmente, o apartamento tinha sido do próprio Fernando. Logo nos primeiros dias do apocalipse, ele percebeu que seria uma boa localização estratégica no condomínio porque ficava isolado a um dos cantos, de esquina para rua, com fácil vista para o térreo e uma entrada única para vistoriar. Daquele lado, portanto, quebrou uma parede para conectá-lo ao apartamento do vizinho, criando a primeira expansão do espaço. Depois, assumiu todo o andar depois de alguns dias. Do outro lado, a vista dava de cara para o pátio central do condomínio, o que dava uma ótima vista das movimentações dos outros grupos de crianças.

Por essa localização privilegiada, Fernando conseguiu planejar ações para resgatar crianças do seu prédio desde as primeiras semanas da pandemia, as primeiras já se organizando para encontrarem-se depois no apartamento dele mesmo antes que seus pais morressem. Enquanto a Internet estava ligada, Fernando conseguiu falar com alguns dos meninos mais velhos por e-mail e por MSN.

Agora, a base do segundo andar do bloco C, denominada ainda de 212C por ter sido sua entrada original, continha um grupo de cerca de cinquenta meninos. Os mais novos, aos cinco anos, eram dez, incluindo Pedro.

Os mais velhos saíam em comitivas para organizar missões de descobrimento e exploração nos outros blocos. O grupo de Fernando tinha uma boa estratégia de espionagem, também. Um dos seus meninos fingiu que estava sendo resgatado primeiramente pela equipe de Maju — e estava servindo como base de informações para Fernando a respeito dos acontecimentos do grupo das meninas desde então. Um dos membros do grupo de Matheus, também, era um informante seu, nesse caso um traidor que decidiu se revoltar contra seu líder após ter sido obrigado a cometer canibalismo.

Foi por isso que Fernando logo percebeu que algo grande estava acontecendo logo quando entrou na sala principal de seu andar.

Os dois informantes estavam juntos no saguão, os dois com a mesma cara de pânico.

Fernando pediu que Pedro e levasse Lucas para a biblioteca e passassem suas próximas tarefas. Daí, virou-se para ouvir os acontecimentos de seus informantes.

Ficou sabendo do sequestro de Pietra por Matheus, da invasão do bloco B pelo grupo dos meninos do bloco A e, pior de tudo, do encontro entre Maju e Matheus que acontecia naquele exato momento.

Foi pela janela ver Maju gritando uma conversa frente a Matheus, que ouvia atentamente enquanto mantinha Pietra, ajoelhada e amarrada, na mira de uma arma.

O que Fernando sentiu ao ver isso foi uma mistura de desespero com pânico. Sabia que Matheus estava prestes a repetir o massacre que realizara no bloco A com todas as mais de cem crianças do bloco B.

Ordenou aos gêmeos:

— Organizem um grupo de todos os meninos mais velhos que quiserem ir. Vamos ajudar na proteção da entrada dos andares das meninas, se o Matheus tentar invadir. O mais rápido possível.

Enquanto isso, foi armar-se propriamente. Pegou mais munição, uma grande faca de churrasco e mais um kit de ferramentas de churrasco.

O grupo de interessados na defesa das meninas era de trinta meninos.

Fernando vistoriou todos e negou a ida de alguns.

— Pedro, você não vai. Preciso de alguém bom para proteger as crianças. Lucas, você não vai. A gente já disse lá em cima, você é café com leite. Enzo, você não vai. Você só tem quatro anos, não aceitamos missões lá fora dos menores de cinco.

O único dos barrados que tentou insistir foi Lucas, mas Fernando o ignorou sumariamente.

Saíram dez minutos mais tarde. Foram correndo em grupos de cinco pelas laterais. Como a atenção inteira do condomínio estava no encontro entre Matheus e Maju, ninguém reparou na passagem deles.

A partir de uma escada na descida para a garagem que o espião de Fernando tinha descoberto, os meninos de Fernando conseguiram contornar os prédios e se posicionar na entrada por trás do bloco B. Então todos os trinta já estava encolhidos no segundo andar do prédio, tendo entrado sem serem vistos e já em posição de mira, enquanto escutavam a conversa que se desenrolava lá embaixo.

Do andar de cima, Fernando viu que o grupo das meninas estava movimentando barricadas, da maneira mais silenciosa que algo assim era possível de se fazer.

5.

Enquanto Matheus encarava Maju no térreo, movimentações aconteciam ao redor. Ele conseguia ver tanto seus próprios meninos aos cantos, mirando para Maju e para as cabeças que conseguiam ver do segundo andar, quanto as próprias meninas de Maju mirando de várias janelas do bloco B.

Matheus não tinha conseguido arrancar muitas informações de Pietra a respeito de quantas crianças estavam no bloco B, o quão bem armadas essas crianças eram, ou quais suprimentos e equipamentos possuíam. Esperava na negociação ser capaz mais de descobrir sobre o tamanho do grupo que enfrentaria, do que de fato negociar qualquer coisa.

— Eu sou Matheus. Estamos vendo suas meninas armadas nos andares de cima. Peça para todas descerem rendidas se não quiser problemas.

A menina que descera era mais velha e Matheus a achou muito bonita. Estava desarmada e não parecia preocupada com a situação.

— Oi, Matheus. Eu sou a Maju. Elas vão parar de mirar se você devolver nossa amiga.

Matheus cutucou a cabeça de Pietra com uma arma.

— Essa aqui, é? Devolvo sim. Mas você tem três minutos para se render, ou não devolvo viva.

O rosto de Maju tremeu por um momento.

Ouviram uma voz gritando do terceiro andar.

— Temos mais de cem crianças armadas aqui, Matheus! E seu grupo enquanto isso só tem trinta, quarenta meninos. Se você tentar invadir, vai ser um massacre.

Era exatamente esse o tipo de informação que Matheus queria descobrir.

— É verdade, Maju? Vocês tem mesmo mais de cem crianças armadas? Pois eu ouvi que vocês tem na verdade uma porrada de pirralhos e bebês que não servem pra nadinha — Matheus provocou.

— Temos os “pirralhos”, sim, mas temos uma criança mais velha armada para defender cada um deles — Maju retrucou.

Matheus não acreditou no número. Não condizia com as movimentações que até então tinha observado no bloco B, nem com a média de crianças que Renato tinha calculado como provável de cada bloco possuir.

— Não acredito. Eu vou invadir, sim. Meus trinta ou quarenta meninos dão conta de um monte de bebês. E se alguém reagir, a primeira que leva um tiro é essa aqui — e cutucou a cabeça de Pietra com a arma de novo.

Do segundo andar, movimentações começaram a acontecer. Logo, vieram descendo pelas escadas uma sequência de crianças.

Eram todas mais velhas e, embora descessem silenciosas, nenhuma delas estava desarmada. As primeiras fileiras eram de meninos muito bem armados. Depois, várias fileiras principalmente de meninas mais velhas, também muito bem armadas.

Não chegavam a ser cem, como a tal Maju mentira que eram, mas eram realmente o dobro do seu grupo de meninos. Então Matheus recalculou sua rota:

— Vou voltar devagar pro bloco A com essa aqui na mira — e novamente cutucou a cabeça de Pietra com o cano da arma. — Se minha caminhada acontecer tranquilamente, ela fica viva. Se eu chegar do meu lado inteiro, devolvo ela pra vocês. Certo?

Um dos meninos da primeira fileira engatilhou sua arma. Maju virou-se e o repreendeu.

Matheus engatilhou a arma também e a deixou colada à cabeça da criança, enquanto a levantava e a fazia andar embora.

Foram dois minutos tensos enquanto Matheus seguia em passos lentos, sabendo que a qualquer momento podia levar um tiro.

Mas nada aconteceu.

Quando bem distante, já enfiado de volta entre suas fileiras, Matheus gritou:

— E como prometido, agora vou devolver sua amiga!

Então atirou em Pietra e fez com que dois de seus meninos a jogassem no meio do pátio.

Do outro lado, ele ouviu Maju gritar e chorar.

O grupo de Matheus começou a correr e atirar. Do outro lado, o grupo das meninas começou a correr de volta para a entrada do prédio, enquanto tiros eram disparados do segundo e do terceiro andar.

6.

Pela janela do 212C, assisti à distância o desenrolar dos acontecimentos.

Era longe demais para conseguir ouvir, mas perto o suficiente para entender em detalhes cada ação e para acompanhá-las sem perder nada, mesmo com tudo acontecendo tão rápido.

Os meninos do bloco A saíram correndo e atirando. Dois deles caíram no meio do caminho, atingidos por tiros, mas os outros alcançaram a entrada do bloco B. A maioria das crianças do bloco B e do grupo de Fernando já tinham subido para o primeiro andar, mas duas meninas tinham ficado para trás. Uma delas foi rendida, a outra estava no chão e sangrando de um ferimento na perna. Um dos meninos do 212C também tinha caído, mas esse já estava morto.

Os meninos do bloco A estavam tentando arrombar a porta da escada que levava aos andares de cima. Do segundo andar, as meninas ainda tentavam atirar em algum deles que saísse de baixo da proteção.

Pedro chegou perto de mim com um walkie talkie na mão.

— É o Fernando, quer falar com você.

Não entendi o que podia ser tão importante de se falar especificamente comigo.

— Lucas, aqui tem um elevador. Preciso que você dê um jeito de descobrir como a gente faz pra abrir a porta dele. Se eu conseguir descer pelo fosso até a garagem, a gente fazer todas as crianças saírem do prédio sem o Matheus ver. Câmbio

O plano me pareceu ao mesmo tempo engenhoso e meio maluco.

— E como eu vou descobrir isso? — perguntei. E lembrei de complementar só depois, antes de passar a vez: — Câmbio.

— Na nossa biblioteca tem uma porrada de manuais que saímos catando, inclusive da guarita de segurança, do apartamento do síndico e da salinha do zelador. Algum deles pode ser o manual do elevador. Câmbio.

— Vou procurar, mas e se não tiver esse manual? Qual outro plano vocês tem pra sair daí?

Outra vez esqueci por um segundo de fechar o sinal. Lembrei e concluí:

— Hã… Câmbio.

Fernando ficou quieto por um segundo do outro lado da linha. Parecia estar refletindo naquele mesmo momento se existia algum outro plano para resolver o cerco ao bloco B sem violência.

— Só acha logo essa porcaria desse manual, tá certo? Câmbio.

Pedro me levou depois disso para a biblioteca dos meninos do 212C.

Chamar de “biblioteca” era na verdade um elogio. Todos os livros, papéis e tralhas estavam jogados desorganizados tomando a maior parte de uma suíte em um dos apartamentos. Dois meninos num canto tentavam organizar alguns primeiros volumes.

Pedro me apresentou para ambos:

— Arthur e Luiz, esse aqui é o Lucas. Ele sabe ler e vai ajudar vocês com a biblioteca. Agora, ele precisa achar um manual do elevador. Vocês viram alguma coisa assim?

Os dois fizeram negativas com a cabeça. Mas o que chamava Luiz complementou:

— Eu achei o manual de um Palio 2002 automático… E tem um gibi de terror que acontece todo num elevador.

Eu e os meninos ficamos duas horas fuçando no meio de todos os papéis. A maioria eram livros ruins, mas tinham manuais de eletrodomésticos, muitos gibis, revistas de fofoca, manuais de jogos de videogame, enciclopédias, um pouco de tudo.

Fui eu quem achei, depois desse tempo todo, o manual do elevador.

— Achei! Achei! — comecei a gritar em comemoração, com o manual balançando no topo da cabeça.

Pedro apareceu subitamente.

— Tava na hora. Os meninos do bloco A estão se preparando com um tronco que pegaram do playground pra tentar arrombar a passagem pro primeiro andar.

Olhei pela janela e vi a exata cena que Pedro descrevia. Quatro meninos seguravam um pedaço de tronco e o posicionavam de frente para a porta de ferro fechada que levaria ao segundo andar. Outro menino, inclusive, tentava abrir com uma pá a porta do fosso do elevador.

Pedro ligou o walkie talkie e falou para a linha:

— Fernando, o Lucas achou o manual. Câmbio.

Do outro lado, a voz de Fernando veio quase num grito, com várias outras vozes no fundo:

— Ótimo. Nós temos nove carros das meninas lá no subsolo. Vamos enfiar todas as crianças que der nos carros pra tentar sair daqui numa viagem só. Uma das meninas tinha uma chácara fora da cidade, vamos pra lá. Peguem os carros que conseguirem daí e sigam a gente, todo mundo se encontra na porta do Shopping Butantã. Câmbio.

Pedro me passou o walkie talkie.

— Tó, Lucas. Fala aí pro Fernando como abre o elevador.

Folheando desesperado as páginas amareladas do manual, tentei entender o que estava escrito. O manual tinha uma seção em inglês, outra em espanhol, outra em chinês e uma em… Português.

— Hã… Oi, Fernando… Câmbio.

Do pátio, ouvi um tiro. Olhei pela janela.

Um dos meninos do bloco A tinha atirado para o alto e estava agora com uma menina na mira da arma, ameaçando matá-la se não abrissem logo a passagem para o bloco B.

— Lucas, vai logo! Câmbio.

A voz de Fernando no walkie talkie dessa vez veio num grito quase desesperado.

Pensei por um momento que talvez não houvesse uma instrução para abrir a porta do elevador em qualquer andar. E que mesmo se houvesse, talvez a instrução estivesse escondida demais no meio de tantas palavrinhas para que eu encontrasse tão rapidamente.

Um segundo tiro.

A menina antes rendida agora estava morta lá no pátio. O mesmo menino agora rendia outra menina e gritava ameaçando fazer com a segunda o mesmo que tinha acabado de fazer com a primeira.

Achei a informação que estava procurando.

— Fernando, na lateral da porta do elevador… É pra ter um botãozinho no canto inferior… Esquerdo… Precisa pressionar ele duas vezes ao mesmo tempo em que pressiona o botão do andar… Disse que só abre quando a energia está desativada… Por segurança… Então que bom que não temos luz… Câmbio.

Um momento de silêncio do outro lado da linha.

— Conseguimos, câmbio! — Veio a voz de Fernando em seguida, ainda no mesmo desespero de antes, mas com uma notinha de euforia no fundo.

Alguns minutos mais tarde, eu consegui ver, ainda da mesma janela do andar do 212C, nove carros saindo silenciosamente pela garagem do outro lado do condomínio. Os meninos do bloco A, ocupados em tentar arrebentar o bloqueio da passagem do bloco B, não repararam.

Pedro arrancou o walkie talkie da minha mão. Então me disse:

— Você tem uma hora pra juntar quantos livros importantes achar que precisa levar. É o tempo da gente montar as barricadas e preparar nossos carros também. Os meninos do bloco A vão tentar entrar aqui quando encontrarem o bloco B vazio.

Separei os livros em quarenta minutos e depois fui com os outros dois meninos da biblioteca para a porta do elevador. Consegui repetir a mesma técnica que tinha explicado pra Fernando no telefone e abri a porta para o fosso.

Todas as crianças desceram aos poucos e silenciosamente, as mais velhas ajudando as mais novas, pelo cabo de aço do elevador. Abrimos a porta no primeiro subsolo e colocamos quantas crianças dava em cada carro. Eram seis carros, todos guiados por meninos de dez ou onze anos. Pedro me explicou que estava fazendo aulas uns com os outros para aprender na marra a dirigir desde que o grupo do 212C se formara.

Quando demos partida e saímos da garagem do condomínio, deu tempo de ouvir os meninos do bloco A começando a chutar a barricada que tínhamos montado no térreo.

7.

Os turnos de ronda eram anuais, mas quem quisesse podia sempre pedir para repetir um turno. Fernando era um dos que sempre pedia para repetir. Ele e quase todos os meninos do grupo do que tinha sido um dia o apartamento 212C.

Uma década mais tarde, a vida até então tinha sido bem tranquila na chácara das crianças. A comunidade que conseguiram construir e estabilizar ali tornara-se humilde, mas estável e segura. Agora, com a puberdade alcançando já boa parte das crianças, os primeiros nascimentos começavam a acontecer. Fernando mesmo tinha se tornado pai. A mãe era Beatriz, uma das meninas do grupo de Maju.

Apesar das doenças, fases difíceis e dificuldades de escassez, a convivência na comunidade da chácara tinha permitido tranquilidade suficiente para que os bebês estivessem sendo criados com relativa abundância de recursos. Tinham uma creche, cereais guardados para as fases sem comida, tinham acesso a rios e a poços artesianos para água. Tinham também defesas poderosas, que até então nunca tinham precisado usar, e comunidades vizinhas que não só eram pacíficas, mas com as quais faziam trocas.

As rondas de Fernando, portanto, tinham sido durante aquela década toda uma coisa um pouco inútil, um ritual residual da cultura e vida que tinham desenvolvido nos tempos antigos do condomínio.

Ainda assim, eram sempre os mesmos envolvidos, sempre levando a tarefa com a mesma lealdade. Fernando, os gêmeos e Pedro, quase sempre; às vezes também Lucas, o que era particularmente surpreendente dado o fato de que ele era um dos líderes mais importantes da comunidade. Naquela tarde, estava também Arthur, um dos rapazes do grupo de pesquisas de Lucas.

Toparam com uma dupla armada de desconhecidos andando a cavalo.

Os dois não os viram chegar e foram facilmente rendidos pelo grupo maior e melhor armado de Fernando.

— Quem são vocês? — foi Pedro quem perguntou.

— Viemos lá da cidade, somos a nova polícia. Estamos fazendo reconhecimento na área para procurar… Quem vai pagar imposto…

— “Nova polícia”, é? — Dessa vez foi Fernando quem perguntou.

Pedro interrompeu e se aproximou muito do rosto de um dos rapazes rendidos.

— Calma aí, esse cara… Ele não me é estranho. Eu acho que ele era lá do condomínio.

Lucas se aproximou e perguntou, apontando a arma também.

— Condomínio Vila Romana de Sônia, conhece?

O rapaz o olhou no fundo dos olhos.

— Vocês eram dos blocos… Que fugiram?

— E vocês são então do grupo do Matheus. — Lucas constatou.

Outro dos rapazes rendidos entrou na conversa.

— Do grupo de Matheus, não. É literalmente uma nova polícia. O Matheus conseguiu dominar vários condomínios, depois vários bairros e regiões, virou uma força de segurança mesmo. Na cidade, ele é um dos principais organizadores.

— E agora vocês estão vindo pra cá… “Coletar impostos” pra polícia dele?

Os dois só assentiram com a cabeça que sim.

— Acho melhor a gente levar esses dois de volta pra chácara. A Maju e todos os outros vão querer saber disso — Lucas comentou.

Fernando engatilhou sua arma antes de responder.

— Precisamos levar um, sim. Não os dois.

— Quais seus nomes? — Pedro perguntou.

— Eu sou Júlio… — o primeiro dos meninos respondeu.

— E eu sou… Marcos… — o segundo respondeu também.

— Esse Júlio aí que eu lembro que era do grupo do Matheus — Pedro comentou casualmente.

Fernando atirou no outro, Marcos.

— Eu não ficaria tão feliz, Júlio. Só deixei você porque quero que você me conte mais detalhadamente a trajetória do Matheus inteira.

— Eles eram bem próximos, pelo que eu lembro do espião — Lucas complementou.

Com o adolescente amarrado e amordaçado, o grupo do que um dia tinham sido os meninos do 212C voltou em direção à chácara.

— A gente precisa de um nome novo — Lucas comentou no caminho. — Rapazes da chácara da vó da Ana Clara?

Ninguém conseguiu pensar num nome melhor do que esse.

— Dá pra continuar como meninos ou rapazes do 212C mesmo — foi a proposta simples de Pedro.

— É, dá. Deve ser até melhor — Lucas concordou.

E enquanto arrastavam seu rendido amordaçado e continuavam em conversinhas banais do mesmo tipo, os meninos do 212C seguiram lentamente pelas ruas de terra entre os terrenos de chácara.

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