Seis desafios de quem escreve há tempo demais

Rodrigo Goldacker
25 min readJun 24, 2020

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Escrever nunca fica fácil.

Eu era pré-adolescente quando comecei a me envolver com a escrita, pouco depois de ganhar meu primeiro computador. Apesar de já naquela época acreditar que tinha um pouco de desenvoltura para produzir textos decentes (não tinha), escrever ainda assim me parecia um dos mais difíceis desafios, sempre exigindo muito de mim.

Esperançoso e otimista, imaginava que o passar dos anos tornaria magicamente a escrita cada vez mais fácil e intuitiva, como se o mundo fosse um tipo de jogo de RPG no qual eu pudesse ganhar experiência a cada palavra, subindo níveis até que não existisse mais dificuldade nenhuma em nada.

Obviamente estava errado, mesmo que não totalmente. Agora, depois de pouco mais de uma década praticando, alguns livros finalizados e três anos e meio trabalhando como redator, posso garantir que de fato superei quase todas as dificuldades que tinha lá no começo. Seria de uma cômica tristeza se, aos vinte e cinco anos, eu ainda escrevesse como fazia aos doze e não tivesse melhorado em nada.

O que eu não esperava é que, pouco a pouco, novas dificuldades fossem acabar surgindo. Escrever para mim hoje se tornou, contraditoriamente, mais fácil e mais difícil do que nunca.

Este texto é sobre isso: os desafios que começam a surgir na escrita com o passar do tempo. Para novos escritores, imagino que possa ser uma apresentação ao que os espera se insistirem nas palavras (na parte desafiadora, mas também na parte boa, daquilo em que com o tempo evolui). Aos mais experientes, espero dar uma oportunidade para pensarem em seus próprios caminhos, desafios, questões e soluções, sejam ou não semelhantes aos meus.

Pois então, vamos: que diabos pode ter de tão complicado em escrever demais?

1. Comparar-se consigo mesmo

Resultados relacionados de uma imagem na busca do Google, print daqui. Gosto muito de pegar esses motivacionais clichês como exemplo para mostrar como são reducionistas. Comparar-se consigo pode ser tão ruim quanto se comparar com os outros: em certos aspectos, você não vai ser sempre melhor hoje do que era ontem. E tá tudo bem: você não precisa estar melhorando em tudo o tempo todo.

Pois se há mediocridade e se há erro, o que vejo é avanço,
E rogo para você como para mim que nossas obras-primas jamais venham,
Pois depois delas só o que haveria seria a mediocridade mais vazia,
Já que do ápice a curva desce até a morte numa comparação sofrida,
E sabemos, afinal, que é ainda pior competir com o melhor texto de si
Do que com o melhor texto de Shakespeare.

Do meu poema Ansiedade Poética.

Toda vez que escrevi algo na vida em que acreditei ter me superado, senti duas coisas: primeiro, um alívio alegre por terminar o projeto e vê-lo pronto; logo em seguida, um assombro de ansiedade terrível: “o que vou fazer agora?

Na maior parte das vezes, o tempo passou e aquela euforia inicial foi embora. Algumas coisas que achei geniais no momento em que fiz, depois chegaram a me incomodar: não eram mais tudo isso, nem pareciam mais ser o ápice de minha história com as palavras. Em alguns casos, depois achei até que eram um pouco ruins; às vezes, bem ruins.

Mas em certas situações muito específicas (daquelas bem raras, porém existentes), escrevi coisas que mesmo anos depois continuaram parecendo insuperáveis. Eu sei qual é o meu poema favorito dentre os que fiz e não tenho nenhuma pretensão de produzir versos melhores do que aqueles; ainda assim, escrevo poemas. O tempo me levou para longe do estilo dos meus antigos textos autobiográficos, também, e dificilmente seria capaz de criar outra vez algo no mesmo formato que fosse melhor do que os melhores feitos naquela época; ainda assim, de uma outra maneira, ainda falo um pouco sobre mim.

Mesmo que sua técnica siga crescendo e evoluindo, quem escreve convive sempre com ansiedades a respeito da possibilidade de sua melhor fase criativa já ter passado. Acompanhar a biografia de escritoras e escritores famosos só reforça a sensação: há inúmeras genialidades que existiram até certo ponto, ou estritamente numa obra-prima, e dali pra frente subitamente desbotaram em mediocridade.

Embora essas sensações sejam constantes e nunca vão completamente embora, esse dilema foi um dos primeiros com a escrita que superei. Para mim, foi talvez o mais fácil de lidar. Com uma serenidade resoluta, assumi uma postura de “está tudo bem; continuarei escrevendo, mesmo se mediocremente”.

Essa posição me destravou para transformar a escrita em uma rotina e, cada vez mais, uma constante na minha vida. Foi a abertura que permitiu que eu trouxesse alguns dos meus textos mais fracos ao mundo; mas também foi o caminho para que eu escrevesse algumas das mais surpreendentes e inusitadas belezas, alguns dos meus melhores textos que não teria me arriscado a fazer se fosse me preocupar tanto com aquilo que já tinha feito antes.

Só por existirem,
Mesmo quando forem lixo,
Talvez meus versos terminem
Numa boa reciclagem;

Por mim, sou poeta ruim,
Mas vou continuar escrevendo mesmo assim
Porque sim.

Do meu poema Ruim.

Tanto faz se o que escrevo em algum momento (por exemplo, agora) é minha melhor ou pior frase. Na hora de escrever, propositalmente me entrego a uma espécie de amnésia. Nunca escrevi nada antes. Nunca mais vou escrever nada depois. A frase de agora é a única. Criá-la de acordo com o que preciso que seja é tudo que me interessa.

2. Esgotar sua inspiração

Imagem daqui.

Sempre escrevi muito sobre como era ser jovem. Daí envelheci.

Não sou exatamente nenhum idoso, mas existe um limite de quantas formas diferentes você pode encontrar para contar suas desventurinhas e conflitos de puberdade. Chegou um momento em que percebi que tinha saturado este tema e precisei fazer uma escolha: ou me tornar uma paródia de quem fui, simulando o mesmo estilo e vendo isso esfarelar lentamente sob meus dedos; ou largar o osso e seguir em frente.

Pela minha experiência até hoje com pessoas que escrevem, a maioria delas costuma ser bastante apegada. Há um tipo específico de escrita, a do registro subjetivo, que existe justamente quando somos apegados demais a uma fase, história, momento ou pessoa. Nesses casos, é muito pouco confiar a representação apenas à falibilidade de nossa memória, uma fotografia silenciosa, um ajuntado de vídeos, ou a qualquer outra tecnologia impessoal. Queremos registrar as sensações, os comportamentos; a narrativa inteira, os contextos; os cheiros, os olhos, os jeitos que o sol bate contra rostos e ilumina cabelos; acima de tudo, queremos registrar fielmente as emoções, mesmo que, para representá-las, sacrifiquemos às vezes a representação fiel da realidade.

Para esse perfil de escritor, esses que escrevem para deixar vivo pelo menos um registro daquele instante de vida antes da sua morte, falar sobre desapego é algo particularmente delicado. Contudo, é necessário. O tempo flui em seu caminho, independente de nossas vontades ou saudades, enquanto o escritor nostálgico segue servo do próprio passado, com um leque limitado de escrita, restrito ao que já aconteceu e ao que ele próprio já foi.

Até é possível encontrar algo que não sature nunca e que seja sempre fonte de vida. Se você produzir sua própria Terra Média, não vai ter problemas em continuar nela durante décadas. Mesmo aí, existe um outro sacrifício: o de se acomodar em um só mundo, deixando de desbravar outros. Ainda assim, parece mais provável que aquilo que te inspirava a escrever dez anos atrás já não seja o que te inspira a escrever hoje em dia. Se for esse o caso, a solução é exercitar, tanto consigo quanto com aquilo que um dia lhe foi extremamente valioso, um pragmático desapego.

Essa foi uma lição um pouco mais complicada para mim. Muitos dos meus mais longos e difíceis bloqueios de escrita aconteceram por tentar ordenhar uma fonte que já tinha secado. É um diagnóstico lento e árduo esse de perceber ser necessário deixar para trás algo que parecia ser tão intrínseca e eternamente nosso.

E deixa ainda uma questão: o que fazer depois de se desprender de tudo que nos era familiar?

3. Descobrir e integrar novas vozes

Ilustração retirada do Pinterest, aqui. Tentei (sem sucesso) encontrar o nome do artista.

Se sua escrita se transforma, você se transforma também.

Eu sempre tentei notar os padrões e ouvir os diferentes tons daquilo que escrevia. Gosto de rever meus textos recentes e tentar descobrir para onde eles estão caminhando. Gosto de reler os antigos e perceber a linha que foi me transformando com o tempo naquilo que me tornei.

Às vezes, uma nova voz simplesmente brota. Ela pode começar com um surto de inspiração incontrolável, ou partir de uma experiência muito marcante, ou ser o resultado de alguma nova influência para a escrita. Nesses casos, muitos escritores não percebem que têm uma escolha: deixar o fluxo seguir sem participar; ou tentar controlá-lo de alguma maneira.

No caso de desistir do controle, é possível que a nova voz se torne a sua principal, ou que ela vá embora tão subitamente quanto veio. No caso de tentar controlar, você pode se frustrar e cair em uma situação de bloqueio, no mesmo contexto de tentar “ordenhar uma fonte seca” que expliquei no ponto anterior.

Nem todo meio-termo é necessariamente positivo, mas este é um dos casos em que me parece a decisão mais acertada: eu participo ativamente de meus processos de escrita às vezes, no que entendo como um desenvolvimento (nesse caso, assumindo que desenvolver envolva esforço proposital) de um tema, ou estilo; mas não tento deixar nada rígido demais e se algo não se desenvolve, mesmo após tentativas, eu costumo deixar para lá.

Esse equilíbrio é bastante difícil de alcançar. Às vezes, por exemplo, você pode perceber que sua voz está se tornando pessimista demais para seu próprio gosto e desejar mudar isso. Se essa transição não for feita com paciência, carinho, compreensão e cuidado, corre-se o risco de travar, perdendo o estímulo para escrever, ou de estagnar, escrevendo sempre do mesmo jeito — mesmo que esse jeito te faça mal.

Descobrir novas vozes é também uma forma de se conhecer e se observar. É um processo orgânico, mas também consciente. Algumas vezes, simplesmente percebi que passava por uma transformação sutil e que estava escrevendo mais de um tal jeito. Em outras, tive que buscar a mudança que queria: fosse aprendendo como produzir de maneira mais direta e sucinta quando necessário, uma exigência para minhas atividades profissionais, fosse buscando trazer mais leveza para minhas frases, algo que quis fazer para compensar o amargor daquilo que escrevia até então (com que não mais me identificava, mas que seguia reproduzindo por costume).

Hoje, consigo intercalar: sou sucinto ou prolixo quando bem entendo e porque quero e/ou preciso, não porque sou viciado e alienado em um jeito ou outro; escrevo doce ou pesadamente de acordo com minha intenção e momento, não pela monotonia de uma zona de conforto.

Rendendo-me a uma metáfora boba, saber lidar com novas vozes é aprender a não represar o fluxo da escrita, começando uma seca terrível; mas também não deixar esse fluxo correr descontrolado, causando catástrofes. É saber como, quando e quanto assumir o controle da própria escrita. E quando simplesmente deixar fluir.

4. Enfrentar desleituras

Primeiro printscreen retirado daqui. A página do segundo print caiu, mas os donos criaram uma nova e repostaram aqui.

Escreva se escrever valer o risco do ódio, do equívoco e do ruído,
Se o que quer escrever valer o risco de causar contigo um Helter Skelter
Ou talvez aos teus leitores um Efeito Werther,
Ou ainda um livro santo incompreendido que justificará guerras por milênios,(…)
Se a expressão valer o esforço sem garantia alguma de retorno;

Do meu poema “Risco e Sacrifício”.

Na metade de 2019, algo que eu tinha escrito dois anos antes (isso aqui) foi ressuscitado no Instagram e no Facebook por duas daquelas páginas de conteúdo motivacional espiritualizado. Tratava-se de um recorte com trechos sobre o tema “cura” por quatro autores, todos devidamente creditados. Meu nome aparecia ao lado de um professor de zen-budismo, de uma monja tibetana e de uma “coach quântica”.

Isso foi só o começo. Os compartilhamentos dos posts pelo público levaram minhas palavras a habitar hashtags como #frasesdeefeito, #rebirthing e #guerreirosdaluz, para citar só algumas. Fui parar em um Tumblr de mensagens espíritas e alguns psicólogos e coachs usaram do meu conteúdo para alimentar seus perfis (às vezes roubando mesmo, sem nem me citarem como autor).

Achei o episódio inteiro de uma maravilhosa ironia. Quando escrevi o texto que gerou tudo isso, estava consciente do risco que corria e cheguei até a usar os tais “memes motivacionais” para ilustrar o que queria (nem sempre gosto deles só para criticá-los). Já sabia desde lá que podia ser lido de muitas formas e via certa graça nisso também. Mas tendo um relacionamento com espiritualidade e religião que até para mim é bem difícil de explicar (um pouco mais sobre essa questão aqui e, se você estiver muito a fim de me entender, bem mais nesses textões gigantes aqui e aqui), foi uma sensação de grande estranhamento a que tive ao me ver figurando em qualquer coisa ao lado de figuras famosas de tradição espiritual oriental. Ou ao lado de uma “coach quântica”

A resposta mais simples para porque eu estava ali, sendo citado para aquele nicho, é: por superficialidade. Talvez os outros autores mencionados também não se sentissem confortáveis naquele grupo. Mas as mensagens de todos nós pareciam bonitas quando reunidas, daquele jeito que certos memes superficiais iludem remeter a coisas mais profundas que seu formato simplificativo e palatável, e naquele contexto minhas palavras se encaixaram bem mesmo que eu, autor delas, não me encaixe naquilo tão bem assim.

Das milhares de pessoas que passaram os olhos por meu nome, talvez uma dezena (e estou sendo otimista nesse número) tenha ido atrás de saber um pouco mais sobre quem de fato eu era. E se as poucas que me buscaram toparam com meus textos que muitas vezes são densos e falam sobre desmistificação e experiências amargas, provavelmente não gostaram muito do que encontraram.

“Cada um lê e interpreta como quiser”, algum infeliz certa vez disse.

Até agora falamos muito sobre as questões mais íntimas da escrita, mas quis contar essa historinha para começar a falar daquele que é talvez um dos maiores desafios de ser escritor e que vai se tornando cada vez mais difícil conforme você tem mais palavras para serem lidas: aprender a lidar com o absoluto descontrole diante da figura do leitor.

O outro é sempre um fenômeno imprevisível. Não interessa qual é o jeito que pretendo que você me leia. Você vai ler do jeito que quiser e dane-se a minha intenção.

Isso pode ter implicações muito mais sérias do que simplesmente ir parar em uma hashtag brega. Apesar de ter deixado ressalvas sempre que possível para evitar que meu conteúdo fosse sequestrado (por ideologias políticas, por teóricos da conspiração, por discursos de ódio…), esse é um risco do qual nunca me livrei totalmente. Algum texto meu pode, sem eu fazer a menor ideia disso, ser bom para alguém; o mesmo texto pode destruir a vida de uma segunda pessoa. Isso inclui até a mim: algo que eu escrevi pode arruinar minha vida a qualquer momento, por um motivo ou por outro (e eu já me expus muito em meus textos); mas algo que escrevi pode também mudar minha vida para melhor a qualquer hora.

Como controlar? Se até os escritos de pacifistas podem inspirar terroristas, que poder posso ter sobre minhas palavras?

Bem, a verdade é que esse é um poder bastante restrito. Sempre tento deixar clara minha visão ao escrever qualquer coisa e como pretendo ser lido, ainda que ciente de que serei interpretado mesmo assim. Sempre faço ressalvas específicas quando me deparo com um tema em que sei que a ambiguidade pode ser mais problemática.

E sempre que percebo que fui confuso, eu me retrato. Especialmente em textos mais técnicos ou análises, estou constantemente adaptando e evoluindo minhas definições e termos para torná-los mais acurados. Por exemplo, escrevi um ensaio político em 2017 (esse) que teve boa parte dos seus termos sequestrados por politicagens nos anos seguintes. Agora, estou escrevendo uma continuação para, entre outras coisas, conseguir me posicionar outra vez como queria originalmente. Se as palavras mudam seus significados, eu posso mudar minhas palavras.

Mas para fazer isso preciso estar vivo, ou produzindo, ou ciente de certas desleituras. Existem possibilidades de interpretação que estão completamente além até mesmo de minha imaginação, logo não sou capaz de prevê-las, ou de lidar com elas. Algum dia, ademais, estarei morto e sabe-se lá como serei lido a partir daí. Tenho certeza que o israelita anônimo responsável pelo Livro de Jó não fazia a menor ideia de onde iria parar.

A parte boa desse caos todo é que nem sempre ele precisa ser apocalíptico. Já escrevi coisas despretensiosamente que acabaram sendo muito positivas para os outros. Não compartilharia nada, mesmo que provavelmente fosse continuar escrevendo, se não acreditasse na possibilidade dos meus textos serem úteis, gerando algo positivo a quem os lê.

Assim, eu ao menos sei (e espero que meu leitor desconfie disso, como de tudo) que ao escrever não desejo prejudicar ninguém. Nesse sentido, acabo sendo um pouco como o velho Kant, baseando-me mais na intenção ética da minha ação de escrita, já que não posso controlar seus resultados. Esse posicionamento pode até ser um pouco idealista, mas nem tudo é perfeito. Nesse ponto ainda não encontrei solução melhor, pelo menos até agora.

5. Lidar com seus leitores

Gif retirado daqui.

Quem te leu, quem te lê.

Existe algo ainda mais difícil do que lidar com a massa de desleituras de desconhecidos sem rosto: lidar com leitores individuais, um a um, decidindo quando e quanto dar abertura e como interagir com eles. Poucas coisas me desafiaram mais do que aprender como assumir uma postura responsável e sustentável nesses vínculos tão complexos quanto esquisitos com leitores.

Como eu já escrevi de tudo, já tive leitores de todos os tipos. A maioria deles é silenciosa: tem os que estão sempre aí, mas eu nem sei que existem. Tem os ocasionais, que só leem uma coisa ou outra, e tem aqueles que buscam um tema e topam com algo que produzi, mas não se interessam pelo resto do que faço, nem comigo enquanto autor.

Há ainda os raros leitores fieis (os mais próximos do “leitor ideal” que defini faz um tempo nesse texto aqui) que me acompanham há muitos anos. Por fim, existem os leitores que me “descobrem” e ficam muito animados por um tempo com aquilo que faço.

Esse último com certeza é o perfil mais complicado. Um leitor que me descobre pode se tornar fiel, volta e meia. Mas quando estes interagem comigo, passa a depender muito de minha postura se isso vai acontecer ou não.

Escrever é carregar uma responsabilidade mais poderosa do que parece. Quem o faz às vezes subestima o efeito que pode ter sobre os outros. Contudo, insisto que é o leitor quem sabe o quanto foi ou não foi atingido por algo que fizemos. Você pode acreditar que algo que fez é grandioso e merece grande reconhecimento, mas receber indiferença. E você pode acreditar que algo que fez é bobo e banal, mas acabar marcando alguém profundamente.

Eu escrevi durante toda minha juventude e nem sempre tratei esse poder como devia. Algumas vezes, conquistei a leitura de pessoas que se apaixonaram por meus textos, não por mim, e sem entender essa diferença saí com elas em encontros. Sempre deu errado. Preso em minha própria tolice performática, percebia que estava desconfortável com a posição, sentindo que eu enquanto ser humano não era enxergado; mas quando quem me lia acabava encontrando o ser humano por baixo do escritor, também não dava certo: era comum que simplesmente perdessem o interesse.

Hoje sou casado e a mulher com quem decidi viver não é nem nunca foi uma leitora assídua daquilo que escrevo. Tenho certeza que isso foi fundamental para que nosso relacionamento funcionasse. Ela conseguiu me ver como pessoa, não como escritor, de um jeito que leitores normalmente não conseguem.

Mas, indo além de alguns relacionamentos malsucedidos, aqui também existem algumas consequências bem mais sérias.

Alguns de seus leitores podem ser pessoas realmente frágeis. Eles podem ter grandes traumas, grandes dores, grandes questões, grandes instabilidades e grandes inseguranças. Na sua escrita, podem encontrar a esperança de que talvez algum dia tudo isso passe. Ou podem encontrar um alívio momentâneo, ou a sensação de que não estão sozinhos porque alguém já passou por algo parecido com aquilo que vivem.

Nesses casos, acima de qualquer outro, ser escritor e lidar com seus leitores é extremamente delicado. É se ver jogado quase que no lugar de um psicólogo, ou de um confidente íntimo, muitas vezes sem nem conhecer quem é a pessoa que está te projetando nessas posições e sem necessariamente ter o preparo ou a estrutura para assumir estes papeis.

Especialmente quando escrevi sobre minha jornada de vida, sobre minhas reflexões e sobre psicologia, acabei por atrair a leitura daqueles em situação de sofrimento. Apesar de isso ter acontecido durante toda minha vida como escritor, só nos últimos anos busquei ser responsável, tentando (e nem sempre conseguindo) lidar com a dinâmica escritor/leitor de uma forma mais saudável.

Antes, o que eu sentia era um afago no meu ego. Era gostoso ver que pessoas valorizavam tanto o que eu tinha escrito e que podia ter um impacto tão grande na vida de alguém. Quando me idealizavam ou romantizavam, a minha tendência era de incentivar isso cada vez mais, atraído por fantasias ególatras de criar um culto à minha figura.

Só mudei porque isso deu muito errado muitas vezes. Percebi que essa relação não fazia bem nem aos outros, nem a mim. Foi uma ruptura tão difícil que durante alguns anos tive medo de escrever e de interagir com quem me lia. Depois, a reação que tive para enfrentar tal temor foi a de agir ativamente no contrário da romantização, buscando esfarelar qualquer idealização a meu respeito.

Hoje, já não tento ativamente quebrar a imagem que ninguém tem de mim, enquanto continuo a não incentivar qualquer coisa. Eu também me frustrei e desgastei muito quando me envolvi tão intensamente com essa proposta de me desmistificar para os outros. Parece ser até cruel tentar privar um leitor de interpretar algo da maneira que lhe faz bem.

Existe uma questão profunda aí sobre a ilusão de identificação que já trabalhei em alguns outros textos e que pretendo ainda abordar de novo no futuro. Eu sou quem sou, com meu conjunto particular de traumas e curas, alegrias e dores. Quando falo da dor enquanto entidade abstrata, posso aproximar pessoas das mais distantes e que talvez encontrem na minha dor um eco ou espelho das suas próprias. Mas isso é sempre ilusão: não existe contexto idêntico.

Eu estou restrito a observar o mundo a partir da minha perspectiva e das minhas experiências. Não posso compreender como os outros são e vivem, mesmo se (talvez principalmente se) eles jurarem que se encontraram em algo que escrevi.

Quando publico um texto, ele se torna“do mundo” em todas as imprevisíveis interpretações e impactos que poderá ter. A partir daí, decidi evitar me intrometer.

Sou só o escritor. Para os leitores, as palavras são bem mais deles do que minhas, já que são eles que vivem suas experiências com elas. É com minhas palavras e não comigo, afinal de contas, que quem me lê quer estar. Então é com elas que deixo que vivam, reflitam e se encontrem. Ou com elas que se desagradem e defrontem.

Essa também não é uma solução perfeita. Uma vez mais, até o momento é a melhor que tenho.

6. Aceitar suas limitações

“Por que você deixou que eles te cortassem ao meio?”, desenho de David Shrigley, retirado daqui.

Quando comecei a escrever, acreditava que as palavras tinham ao menos um superpoder: a capacidade de descrever qualquer coisa.

Meu erro era um idealismo simples: para mim, palavras tinham essa espécie de “onipotência restrita”. Elas não seriam capazes de ser qualquer coisa, mas seriam capazes de dizer qualquer coisa, mesmo se fosse a coisa mais distante possível daquilo que eram.

Pode parecer bobo, mas lidar com a frustração dessa visão romântica foi o maior desafio com a escrita que encontrei. Eu me vi em uma situação de perder/perder: ou é a limitação das próprias palavras que impede que eu consiga expressar determinadas coisas (e por isso eu tenha que às vezes me limitar aos terríveis e saturadíssimos clichês do “indefinível”, “indescritível”, etc.); ou é a minha limitação que me impede e o tal do “indescritível” nada mais é do que um atestado de minha incompetência.

Por muito tempo, fiquei mais inclinado a acreditar que, como tudo nesse mundo, a escrita também não goza de nenhuma onipotência, nem que seja restrita. Aos poucos fui entendendo que as palavras, a quem tinha dedicado boa parte da minha vida na esperança (vã) de garantir que seria compreendido, não seriam capazes de me entregar essa compreensão completamente. A escrita é maravilhosa enquanto a experiência que é, mas não é aquela escrita endeusada que projetei lá no começo.

Mas em outros momentos preferi acreditar mais na hipótese de minha própria culpa. Se fosse esse o caso, era eu o responsável pelo problema e talvez pudesse, com muito esforço, evoluir até conseguir comunicar o que queria.

Hoje, acredito que é um pouco das duas coisas: a escrita tem suas limitações e eu também tenho. Nada é assim tão ilimitado quanto eu gostaria que fosse.

Assentara-me no topo de uma colina nas fronteiras de uma vila. Vivia a vida a brincar de destrinchar os achados cada vez mais maravilhosos que recebia dos voos dela. Já tinha mais para explorar do que teria vida para fazê-lo e mesmo assim novos achados não paravam de aterrissar. Fiz muitos bons amigos neste período, aqueles muito sábios na empatia, capazes de se sensibilizar um ínfimo comigo, mesmo sem entender o que eu era ou acreditar no valor dos tesouros que eu dizia possuir. Quando me visitavam, tentava doar algo para eles. A compreensão que tinham, contudo, era uma experiência limitada e distante. Por isso, recebiam joias que me pareciam tão valiosas como se fossem lembrancinhas e, ao chegarem em suas casas, muitas vezes as jogavam no lixo.

O que eu podia fazer além de ao menos tentar compartilhar meus achados puros, já que assumira meu fracasso em traduzi-los?

Do meu conto Minha alma foi embora.

Os anos vão passando e vou me deparando mais e mais com coisas que não sou capaz de descrever. Minha mente vaga por visões e ideias que muitas vezes sei que não vou conseguir explicar. Eu sou capaz de expressar decentemente muito mais hoje do que quando comecei a escrever, mas “muito mais” nunca é suficiente.

Alguns dos momentos mais importantes da minha vida seguem envoltos em auras de silêncio. Escrevi páginas e páginas, até mesmo um livro inteiro, tentando romper estas neblinas. De novo, nunca é o bastante. Algumas barreiras são intransponíveis às palavras. Podemos ir, nus e quietos, ao outro lado. Mas não podemos trazer nada de volta além de nós mesmos mudados.

Quando vivemos na “casca” superficial da vida, todos nós conversamos com palavras ocas sobre fenômenos que não experimentamos. Já quando estamos nas profundezas desses fenômenos, as palavras parecem pequenas demais. De um lado, há cascas excessivamente grandes para conteúdos demasiado pequenos. De outro, há o sofrimento oposto: quando o conteúdo transborda os limites do que a casca das palavras pode conter, ele se torna simplesmente incomunicável.

Do meu texto Três coisas que acontecem com quem passa tempo demais dentro de si

Isso pode parecer uma balela do tipo que faz eu merecer ficar outra vez do lado de uma coach quântica. Mas é justamente o contrário: admitir que palavras têm limites e que não adianta endeusá-las talvez seja um dos mais terríveis processos de desmistificação que já enfrentei, especialmente por ser um grande apaixonado pela escrita. Dediquei minha vida às palavras e queria poder ungi-las deste estado sacro e poetizado de potencial absoluto e infinito, mas não posso.

Elas seguem sendo só palavras. Palavrinhas…

Há verdades que parecem falsas nas palavras.

Não só existem verdades que as palavras são eternamente incapazes de alcançar como existem outras verdades que, quando ditas, soam como se fossem mentiras. O reducionismo das frases de efeito e memes motivacionais pode fazer com que qualquer ideia, por melhor que seja, pareça estúpida. A saturação de alguns conceitos, o modismo e a associação (pessoas ou grupos podem sequestrar algumas verdades no meio das imbecilidades que propagam) tornam difícil expressar algumas coisas, mesmo que as experiências por trás delas sejam legítimas. Ao subestimar sabedorias do passado, presente e futuro, uma época carrega sempre três tipos de estupidez.

Um escritor pode assumir para si a missão de salvar uma maneira de expressão que está esquecida, saturada ou corrompida. Pode buscar resgatar belezas perdidas em oceanos de imbecilidade de seu presente. E pode também se dedicar a tentar definir o máximo possível do que é indefinível, fazendo parte de seu presente caminhar para frente.

Mas mesmo se fizer isso, precisará aceitar seus limites. Se tiver sucesso, nunca será um sucesso absoluto: sempre haverá algo mais distante ainda para tentar traduzir em palavras, sempre existirá uma das “verdades falsas nas palavras” sendo corrompida em reducionismo saturado em algum lugar, sempre existirá alguma beleza empoeirando no esquecimento de ontem, ou inalcançável no horizonte de amanhã.

Aceitar que o indescritível existe é aceitar a própria pequeneza diante da grandeza e do mistério de tudo. É confrontar-se diretamente com a incerteza, o caos e o limite do familiar ao humano. Do outro lado, aceitar as expressões saturadas e aquelas ainda não compreendidas é fazer as pazes com o próprio Zeitgeist. É se confrontar diretamente com as restrições, tabus e limitações culturais, estéticas e humanas da sociedade em que se vive, é encontrar o centro deste tal “familiar humano” que sofre de suas particulares mazelas.

Não só sobre ontem, hoje e amanhã, escrever é muitas vezes sobre estabelecer o que é interno e externo, o que é íntimo ou público, o que é o eu e o que é o outro. Nesse contexto, durante muito tempo minha escrita foi visceral, preocupada em encontrar os meus pontos mais frágeis e doídos para deixá-los escorrer sangue por minhas frases. Gostava muito dos textos que esse método produzia. Mas era tudo tão exaustivo...

Não diminuo o poder desta modalidade de escrita. Junto com a terapia, talvez tenha sido a ferramenta mais poderosa para que me entendesse melhor e mudasse. A escrita que rasga a alma é inestimável, tanto que me dediquei quase que exclusivamente a ela por anos.

Mas essa paixão que tive não foi livre de problemas: o cansaço de sempre me debruçar somente sobre os temas mais difíceis; a responsabilidade que já citei sobre os leitores desse tipo de conteúdo; as desleituras, julgamentos e todos os contras de se expor…

Para compensar, tive que aprender a desenvolver também outras vozes (voltando ao segundo ponto desse texto) mais leves, até bobas. E hoje encontro também alívio em escritas mais singelas.

Eu queria escrever sobre tudo e descrever tudo que nunca foi descrito antes. Queria resgatar todas as descrições belas que se perderam nas tolices da cultura de meu tempo, ou ajudar a trazer as novas belezas que são vítimas dessas mesmas tolices. Eu queria enfrentar o reducionismo dos discursos superficiais, a manipulação dos desesperados nos mitos de cada culto (inclusive os seculares e ideológicos), queria dizimar o ruído para assim acabar com o abismo de incompreensão entre quem escreve e quem lê. Eu queria ter forças para escrever sobre tudo de pesado todo dia, sangrando letras sem ficar anêmico e fraco. Queria ter forças também para escrever sobre tudo de maravilhoso todo dia, sem que os momentos difíceis de minha vida me afetassem. Eu queria ser capaz de controlar os resultados que tudo que faço terá nos outros e no mundo, garantindo que esses resultados fossem sempre os melhores possíveis.

Mas eu não posso fazer nada disso. Eu tenho limites.

Posso até tentar resgatar o que acredito ser belo que se perdeu, ou tentar fisgar novas belezas que meu tempo não aceitou ainda, mas não sei se vou conseguir ou se, por não romantizar o presente, não corro o risco de ser visto como alguém que romantiza o passado ou o futuro. Eu até posso enfrentar o reducionismo, a manipulação e o ruído, mas nunca vou vencê-los completamente.

Eu não posso acabar com o abismo entre minha “leitura de escritor” e a sua, de leitor. Não posso sangrar todo dia, nem escrever só coisas pesadas sem parar. Estou há meses trabalhando em um ensaio sobre temas terríveis e estou o fazendo com calma e cuidado. Quando não aguento mais, vou fazer outra coisa. Também não posso escrever só alegrias o tempo todo: às vezes, não estou tão feliz assim, oras. Eu não posso controlar os resultados do que escrevo e como serei recebido por você, por outros leitores, ou pelo mundo.

Enquanto escritor, eu busquei encontrar o infinito nas palavras. Não foi isso que encontrei, mas achei outra coisa. A escrita me deu a oportunidade de me entender melhor enquanto humano, conhecendo meus próprios limites, minha própria finitude. Escrever é também um longo processo para aprender a se respeitar.

De tudo, aceitar e respeitar estes meus limites foi para mim o mais difícil. Mas hoje isto já não me incomoda tanto. Consigo ter um novo tipo de bem-estar e uma relação mais saudável com a escrita porque não me sacrifico mais por nenhuma romantização. Quando me foco nas palavras, é por um amor mais real e concreto do que aquele de antes. Agora, conheço e aceito melhor aquilo que amo.

Não consigo fazer tudo com a escrita. Mas tento fazer tudo aquilo que quero e acabo fazendo tudo aquilo que posso.

E isso já é coisa pra caramba.

Por quê?

Talvez você tenha chegado ao fim desse texto se perguntando coisas como: para que tudo isso? Vale a pena ficar pensando em todas essas questões e lidar com tantas dificuldades só pra escrever? De que adianta?

Para essas interrogações todas, cada escritor em cada fase da vida pode ter respostas diferentes.

Se esse texto fosse sobre os desafios de um escritor que está começando, eu falaria mais sobre a difícil tensão entre entregar o que o público está esperando (se rendendo a modismos, ou aos sensos comuns, ou aos tais reducionismos) e entregar aquilo em que se acredita. Há certos oportunistas cínicos que não têm posições e somente modulam o que os outros querem ouvir, por exemplo. Eu também poderia falar mais sobre as inseguranças de se comparar com outros autores, não só consigo, e sobre como aceitar suas influências sem se prender a imitá-las. Mas acredito que esses problemas se resolvem com o passar dos dias e este era um texto sobre desafios mais perenes da escrita, daqueles que imagino que só encontrará quem se render sinceramente e durante um certo tempo ao exercício com as palavras.

Hoje, minha ambição ao escrever é de uma redundante ontologia: escrevo para escrever. Escrevo muito porque amo escrever e amo escrever porque escrevo muito. Também amo escrever por ter estabelecido meus próprios valores para nortear aquilo que escrevo, o que para mim enche a atividade de sentido e de propósito. E se tem uma coisa com que me sinto profundamente bem-resolvido, é minha relação com a escrita.

Nem sempre foi assim. Mas fui me envolvendo durante os anos cada vez mais com as palavras porque, cada vez mais, elas me trouxeram retornos inimagináveis. Aprendi a ouvir mais os outros. Ao lidar com cada um desses desafios que listei (além de muitos outros, daria para fazer um livro só disso), cresci enormemente. Viver com palavras para mim é sempre uma oportunidade e um privilégio.

Se você quer se envolver com a escrita a longo prazo, não posso te dizer que vai ser simples. Se fizer isso só no tempo livre, vai ser difícil ter a dedicação e a paciência necessárias. Se fizer profissionalmente, vai precisar aprender a preservar a alegria criativa diante da rotina. Você lidará com incompreensão e desvalorização profundas a respeito do que está fazendo. O caminho para mim (que sou bastante sortudo e privilegiado) nunca deixou de ser difícil e imagino que para você será tanto quanto, possivelmente mais (especialmente se você for vítima de algum tipo de preconceito, ou se por qualquer outra razão sofrer com falta de acesso).

O que posso te dizer é que, pelo menos para mim, nada mais faz tanto sentido e nada mais vale tanto a pena quanto as palavras. Exceto com as pessoas e comigo, com nada mais aprendi tanto. Sei que enquanto estiver vivo continuarei escrevendo. Sei que enquanto escrever acabarei topando com dificuldades. Sei que isso não vai me impedir de insistir na escrita.

Escrever nunca fica fácil. Mas se torna, cada vez mais, profundamente recompensador.

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Rodrigo Goldacker
Rodrigo Goldacker

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