Segunda Dose

Rodrigo Goldacker
5 min readAug 17, 2021

A primeira foto é de 24 de março de 2020, quando eu ainda morava em um apartamento em São Paulo e estava entrando na minha primeira semana de “quarentena”, que na época todo mundo dizia que ia durar “uns dois meses no máximo”.

Eu tinha mudado para o apartamento (que era pequeno e sem varanda) porque gostava de andar no bairro e ia economizar as passagens de metrô, já que ficava na mesma rua em que eu trabalhava. Eu era redator numa agência que ficava num sobradinho com um quintal gostoso.

A vida era legal quando eu podia caminhar na praça ali perto, levar minha cachorra pra passear (e pro trabalho, aliás, coisa que eu fazia quase todo dia), ir para casa em 5 minutos a pé na hora do almoço e voltar pra trabalhar de tarde. Parecia fazer sentido, até eu ficar preso em casa. Daí o aluguel caro não compensava mais. Não ter nem uma varandinha começou a ficar bem mais incômodo. E minha cachorra também não suportava não poder mais zanzar por aí o dia todo.

Conforme os meses foram passando e eu fui percebendo que o mundo não ia voltar ao normal tão cedo, toda aquela vida que eu tinha construído foi deixando de fazer sentido.

A segunda foto é de hoje, dia 17 de agosto de 2021, quando tomei a segunda dose da vacina. Nesse intervalo eu terminei uma pós, comecei um mestrado, mudei de cidade (agora vivo numa chácara no interior) e mudei de emprego. E no geral nada disso parece importar muito e o que eu sinto é mais um certo cansaço, um desgaste de tudo, uma exaustão mesmo, por tudo que o mundo e eu passamos nesse tempo.

Esse tempo que passou foi cansativo, acima de qualquer outra coisa. 2020 foi um dos anos mais difíceis da minha vida por questões pessoais também (se acontecessem comigo as mesmas coisas que aconteceram, teria sido terrível mesmo se não tivesse uma pandemia acontecendo ao mesmo tempo). Eu trabalhei muito, estudei bastante — e foi só.

Não vivi muita coisa que não tenham sido preocupações, ansiedades e problemas. O pouco que me aconteceu de bom, não consegui sentir alegria por ter acontecido — tanto porque parecia uma exceção afunilada entre momentos ruins, quanto porque eu lembrava de todas as desgraças dos outros acontecendo “lá fora” pelo mundo.

Eu era mais esperançoso e ingênuo em março de 2020. Sou mais velho e receoso em agosto de 2021. Tomar a vacina é algo que eu tento olhar com cautela. Não quero criar muitas expectativas tão logo de que a vida vá voltar a ser como era.

Até porque aquela vida “como era” não era lá essas coisas também. Foi exatamente aquele passado a causa do que vivemos depois. Aquela lógica que parecia fazer sentido para a vida de antes não tinha mesmo tanto sentido.

O que tenho é um agora um pouco diferente. Eu cheguei vivo e bem (ao menos na saúde física) até o momento de tomar a segunda dose da vacina, sem ter me infectado antes que esse momento chegasse, e isso faz esse período todo parecer pelo menos ter um pouco mais de propósito pra mim. Se eu tivesse sido infectado pelo coronavírus uma semana antes de ser vacinado, teria ficado mais frustrado por todo o tempo da minha vida finita que passei com todas as restrições que tomei. Do jeito que foi, essas restrições parecem ter servido para algo.

Também posso dormir tranquilo sabendo que não infectei ninguém. Essa era uma grande ansiedade minha, principalmente por viver com minha avó. Eu também ficava receoso de, sem saber, deixar doente alguém que me atendia no mercado e que não teria os mesmos recursos que eu para lidar com a doença.

Mesmo agora, com todo o peso que carreguei e carrego, pelo menos parece que não foi em vão que me tornei mais cansado.

Em março de 2020, eu olhava sorrindo para o futuro achando que não seria “tanta coisa” o desafio que tinha pela frente. Eu me sentia vitorioso diante dos desafios (talvez até maiores) que tinha vencido nos anos anteriores e achava que merecia justamente um momento de vida mais tranquila. Mas o mundo não funciona assim, nem é feito para respeitar minhas vontades. Não interessa para a vida que eu já tivesse tido grandes episódios de dificuldades nos anos pregressos. 2020 não ia me poupar só por isso, como não poupou a ninguém.

Entrei em 2021 já mais crítico e cético, amargurado mesmo, sem ver muito sentido em tentar prever qualquer coisa. Se em março de 2020 eu achava mesmo que em “”alguns meses no máximo” minha vida e o mundo se resolveriam, eu entrei em 2021 sem nenhuma expectativa. Nesse sentido, fui até surpreendido — minha vez de ser vacinado chegou quando chegou e eu, pessimista como a experiência me fez nesses assuntos, achava até que ia demorar bem mais.

Mas em agosto de 2021 eu consigo olhar ao meu redor e, no meio de tudo, sentir que eu caminhei quase que às cegas para uma situação nova e em alguns sentidos até melhor do que aquela que tinha em março de 2020. Meu emprego novo é muito bom e ser um trabalho remoto eterno é algo gostoso e que eu não imaginava que pudesse viver. Além disso, viver desse jeito na tranquilidade do meio do mato onde vivo hoje é outra alegria grande que me trouxe muito mais qualidade de vida.

Se aquele meu eu de março de 2020 fosse teletransportado para a vida que tenho agora, ele ficaria muito feliz. Foi só o miolo que me desgastou e bagunçou inteiro.

Talvez demore algum tempo para que eu me recupere e consiga aproveitar onde estou. Talvez eu não me recupere totalmente e esse desgaste faça parte do meu envelhecimento. Só o tempo dirá.

O mundo, aliás, passa por um dilema parecido. Nosso século parece estar começando a se desgastar todo. Será que alguém vai aproveitar algo algum dia de novo? Será que o mundo e todos nós vamos algum dia nos recuperar de tudo que aconteceu e está acontecendo?

Por enquanto, não pretendo mudar ainda muito do jeito que estou vivendo. Tenho duas semanas pela frente até a vacina fazer efeito completo e mais alguns meses no mínimo até o Brasil estar satisfatoriamente vacinado. Só depois disso que vou comemorar um pouco. Pretendo fazer isso indo a algum restaurante, tenho muita saudade de fazer isso.

Mas a cada dia, quando sair de máscara para caminhar, já vou ficar menos estressado e ansioso pensando se não voltei doente, se não vou infectar alguém em casa. Vou dormir um pouco mais tranquilo e ter menos estresse toda vez que der um espirro.

Aos poucos, só por isso, já vou me sentir menos pesado e preocupado nas coisas básicas como ir ao mercado, sair pra caminhar, passar na farmácia. E pelo menos a rotina desse jeito vai ter um outro sentimento, menos ameaçador do que teve até aqui.

Quem sabe no futuro eu não volte a me sentir nem que seja só um cadinho mais leve e ingênuo de novo.

Se não do mesmo jeito, pelo menos um pouquinho.

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