Pentelhos
1.ㅤ
Depois de uma história muito bonita de amor que começou ainda na infância e que persistiu durante vinte e dois felizes anos de casamento, ninguém entendeu direito o que levou à separação do casal Alcebíades e Juliana.
Isso valia tanto para colegas de trabalho quanto para amizades bem próximas e se estendia até aos familiares, fossem os tios, pais, ou mesmo os filhos dos dois. E embora toda essa gente que via de fora não soubesse, a verdade é que mesmo dentro do casal o mistério insistia do lado de Juliana: ela também não fazia ideia do que tinha levado seu marido a querer o divórcio.
Era só Alcebíades que realmente conhecia o motivo do que acontecia, mas era um motivo que o envergonhava e assombrava tanto que ele não teria coragem nunca de se explicar para absolutamente ninguém.
Foi só devido a essa convicção por parte dele, bem como pelo total desconhecimento dos motivos por parte dela, que o mistério conseguiu sobreviver à pressão social dos curiosos e fofoqueiros que rodeavam o fim daquele relacionamento feito urubus procurando por lascas de carniça. Mais importante, foi também o motivo do mistério ter sobrevivido às muitíssimo mais justas exigências por satisfação vindas dos familiares, especialmente dos sogros e dos filhos do casal. Durante mais de um ano, boa parte dos encontros familiares acabaram em terríveis brigas, quando os mais novos ou mais velhos finalmente perdiam a paciência depois de insistirem por horas na busca por explicação melhor do que as respostas vagas e vazias que o casal dava quando questionado.
O histórico do relacionamento também contribuía para esse sentimento de indignação. Uma coisa era a vinda já anunciada de um divórcio que partisse de pessoas que brigavam muito. Outra coisa era um término totalmente inesperado vindo de um casal tão unido e tão querido como eram Alcebíades e Juliana.
Era literalmente o romance de uma vida inteira. Quando tinha onze anos de idade, Alcebíades se mudou com os pais para um bairro diferente. Juliana, só uma semana mais nova, morava na casa ao lado. Os dois engrenaram rápido numa amizade infantil já naquela época, conforme as famílias de vizinhos foram se aproximando. Aos doze anos, foram parar ainda na mesma escola e na mesma sala.
Os pais tanto de um quanto de outro já desconfiavam que hora ou outra estariam namorando, visto o tempo que passavam juntos. Aos quatorze anos o que era um flerte virou mesmo um namoro. Aos dezoito já eram noivos, aos dezenove já tinham casado, aos vinte e um tiveram o primeiro filho e aos vinte e três veio o segundo.
Alcebíades era funcionário público e trabalhava como contador na administração regional do Morumbi, o equivalente da época para uma subprefeitura. Juliana era professora de Português numa escola de Santo Amaro. Os dois passaram em boas faculdades públicas logo depois de concluírem o colégio e tinham seguido nas mesmas carreiras durante a vida inteira: Alcebíades nunca tinha saído da administração regional, Juliana nunca tinha deixado de dar aulas na mesmíssima escola.
A vida foi tão estável e livre de grandes acontecimentos quanto poderia ser. Tinham comprado uma casa grande para eles e os filhos, tinham gatos e cachorros como animais de estimação, fizeram viagens em família para o litoral e para o Nordeste. Quando o divórcio veio, o filho mais velho acabara de se formar em Direito e o caçula estava no segundo ano do curso de Biologia na USP.
A razão para o divórcio não podia estar, portanto, em nada material: não havia uma demissão, um escândalo sobre uma falência, não havia absolutamente nada de notável, para mais ou para menos, nos empregos estáveis de classe média, nos filhos que nunca deram problemas na escola, na Vila Sônia, o bairro residencial sem muito movimento em que moravam, na casinha de quatro quartos e cinco banheiros da qual tinham conseguido quitar todos os pagamentos…
Para quem olhava de fora, como os colegas de trabalho e os vizinhos, a fofoca era muito interessante justamente por isso. Exceto o fato do divórcio, parecia haver um vácuo de qualquer coisa notável na vida daquela família. Sempre foram tão absolutamente desinteressantes em tudo, sempre tão distantes de qualquer escândalo, de qualquer emoção em suas biografias, que parecia dar contraste muito bruto uma separação que viesse súbita e sem causa sabida, brotando magicamente dessa mesma vida monótona que sempre tinham vivido.
Para quem olhava de dentro, como os filhos e sogros, saber mais nuances da vida emocional do casal também não dava pista das razões para se separarem. Os sogros sabiam que Alcebíades e Juliana eram totalmente apaixonados um pelo outro desde a infância. Nunca foram um casal de brigas ou desacordos e raríssimas vezes reclamaram um sobre o outro mesmo que nas coisas mais mínimas. Não eram teimosos, nem ciumentos, não falavam alto, não costumavam discutir. Eram um casal que vivia abraçado, que caminhava na rua de mãos dadas, que levava lembrancinhas como presentes um ao outro sempre que podiam. Dois anos antes do divórcio, chegaram até mesmo a fazer uma viagem romântica só os dois para Poços de Caldas, no interior de Minas Gerais.
Os filhos diziam para todos que nunca tinham visto os pais brigarem. As caixas de lembranças de Juliana carregavam fotos sorridentes dos dois juntos durante décadas, cartas carinhosas com declarações que recebera de Alcebíades desde a adolescência, ingressos que mantinha de vezes que foram ao cinema quando ainda estavam na escola… Não existia nenhuma suspeita de traição por nenhum dos dois, nenhum indício de violência doméstica. Eram um casal apaixonado e pacífico, daqueles que chegam a cansar e/ou irritar pelo tanto que aparentam ser perfeitamente destinados um ao outro.
E para além de todos que olhavam, o casal em si sabia que não havia nada de errado. Juliana não tinha nenhum incômodo com Alcebíades, mesmo depois de vinte e dois anos de casamento, que justificasse um divórcio. No que dependesse dela, ficariam juntos até morrerem. Agora com os filhos já mais velhos, ela sonhava em começar a aproveitar oportunidades de viajar com o marido pelo Brasil e pelo mundo. Alcebíades tinha sido seu primeiro e único amor, desde quando começaram a trocar pela primeira vez olhares mais demorados ainda crianças. Ele tinha sido um adolescente apaixonado e idealista, depois um homem responsável e carinhoso, e acima de tudo isso sempre fora um bom homem que a respeitara e compreendera.
Alcebíades também amava muito sua esposa. Apaixonara-se por ela e apenas por ela — e embora não contasse a mais ninguém, não era por falta de amor que a separação vinha. Juliana tinha sido linda jovem e continuava linda agora como mulher aos quarenta e um. Era também doce, suave e feliz, sonhadora, encantada com os pequenos detalhes de cada dia. Ele às vezes admirava a esposa em silêncio enquanto ela fazia coisas rotineiras, como morder o lábio concentrada e franzir as sobrancelhas enquanto lia um livro muito difícil, ou enquanto corrigia uma prova de algum aluno com letra muito ruim. Ele às vezes ria sozinho quando lembrava das declarações apaixonas que tinha feito a ela quando eram ainda adolescentes, do primeiro beijo desajeitado que tinham dado, da vez em que tentou escrever um poema exaltando o quanto adorava os olhos castanhos e os cabelos morenos da menina que Juliana tinha sido…
Lembrar da vida que partilharam o enchia de contentamento, de um sentimento de propósito. Tinham sido ótimos pais, namorados apaixonados, um casal unido que construiu uma vida confortável para ambos. Ele também amava Juliana ainda, tanto quanto ela o amava, tanto quanto sempre tinha a amado, mais do que qualquer outra pessoa no mundo, e sabia que provavelmente seguiria com esse amor até morrer.
Mas a vida de Alcebíades era uma vida entre metades. Essa era a metade que explicava seu casamento feliz até ali. Era a outra metade que explicava sua decisão pelo divórcio.
2.ㅤ
Como a maioria dos sobrados do bairrinho de subúrbio em que cresceu, a casa em que Alcebíades foi viver aos onze anos de idade tinha vizinhos dos dois lados. De um lado, seus vizinhos eram Juliana e sua família, lado este que proporcionou toda a tal história de construção do casamento e da família feliz. Mas do outro lado, morava outra família que ele entendia como muito responsável por aquela outra parte de sua vida, a parte que lhe proporcionou sua agonia e seu divórcio.
Os outros vizinhos eram um casal idoso de avós, sua filha única de meia idade que era mãe solteira e um casal de netos adolescentes, um rapaz chamado Felipe e uma moça chamada Paula. A janela do quarto de Alcebíades dava vista para o quintal do vizinho e, na lateral, para as janelas do quarto e do banheiro da adolescente.
Quando Alcebíades mudou, Paula já tinha dezesseis anos. Era uma moça alta demais e desengonçada, com dentes de coelho, olhos escuros e cabelos desgrenhados que, por não se decidirem entre o loiro e o castanho, pareciam meio cinzentos e sem graça. Alcebíades também se incomodava pela voz da vizinha adolescente, muito alta e meio desafinada. Frequentemente se distraía e ficava nervoso enquanto tentava fazer sua lição de casa porque Paula estava gritando para responder a alguém no andar de baixo da casa ao lado com algo como “já tô indo!”.
Não fosse o fato de ser sua vizinha, Alcebíades dificilmente teria reparado em Paula por qualquer outro motivo. Não era uma moça que achasse particularmente atraente, nem particularmente interessante, e de certa forma achava Paula até mesmo irritante. Ela o tratava de forma distante nas raras ocasiões que se topavam na entrada de suas casas, com os modos mínimos de vizinhos que cumprimentam meramente com acenos de cabeça.
Mas Alcebíades desconfiava da frieza dela já de partida. Por trás da expressão indiferente, ela parecia ter um olhar maldoso, ou talvez só debochado, que deixava o menino paranoico de que ela soubesse e até gostasse do que acontecia.
E o que acontecia era que frequentemente Alcebíades, desde os primeiros meses na casa nova, costumava espiar Paula nua. Começou sem querer: na primeira vez, quando tomando banho antes de ir para a escola, olhou pela janelinha do banheiro e viu que a vizinha estava com a janela do quarto dela toda aberta, de pé e nua, escolhendo roupas para ir ao colégio enquanto tentava desembaraçar seus cabelos.
O impacto de conhecer a nudez de surpresa não passou batido pelo Alcebíades de doze anos de idade. Sentia-se mal e sabia que fazia algo errado, mas sua vontade de ver era maior.
Na vida adulta, muitas vezes encheu-se de arrependimento por não ter desviado o olhar antes de prestar mais atenção em Paula. Não porque sabia que era errado fazê-lo: embora fosse, poderia ter perdoado sua curiosidade infantil. O arrependimento era por conta das consequências terríveis daquela primeira espiada. Se não tivesse espiado, se tivesse se educado a nunca olhar, teria vivido todo o resto de sua vida muito mais feliz, com menos culpa e, definitivamente, sem o divórcio com Juliana que décadas depois viria.
O menino Alcebíades já conseguia, apesar de sua infância, desde então perceber duas coisas: a primeira era que, mesmo na nudez adolescente, quase nada de Paula lhe atraía. Seguia tão desinteressado nela quanto sempre se sentira antes.
Quase nada, mas algo ainda, pois não era nada em totalidade. E o algo que passava era suficiente para arruinar-lhe.
A segunda coisa que percebia era essa: que um mero detalhe, um mínimo ponto de obsessão, era maior do que Paula, maior do que o desagrado de Alcebíades com a adolescente ser tão irritante quanto era, maior do que tudo nela que ele desgostava, maior do que todo o resto da personalidade e da existência de Alcebíades, maior que a outra metade de sua vida inteira, maior que o amor gigantesco que ele sentia desce o começo por Juliana.
Esse ponto, essa obsessão, era seu fetiche incontrolável, inescapável e inevitável. Um fetiche especificamente por pelos pubianos e, mais especificamente, pelo tipo dos pelos pubianos que via em Paula. Pelos pubianos volumosos e crespos, desgrenhados como os cabelos e cinzentos, de um tipo que refletia o brilho da luz. Pelos pubianos em tufos sob a virilha de Paula, em um desenho triangular que não invadia a lábia, mas se espalhava sobretudo pela parte ao redor e acima do clitóris. O resto do corpo de Paula, se estivesse sem pelos, para ele não importava. Paula como um todo, na verdade, para ele não importava nada. Mas eram sempre os pentelhos que chamavam sua atenção, desde menino. Tinham sido eles que primeiro o fizeram criar o hábito de espiá-la sempre que possível.
Tinham sido também os pentelhos que motivaram seu único roubo na vida. Alcebíades topou sem querer, ainda no mesmo ano em que começou a espiar Paula, com uma coleção de revistas adultas do seu pai. Estava fuçando descompromissadamente pelas gavetas do quarto dos pais numa tarde qualquer, enquanto bastante entediado, e acabou topando com as revistas. Não fosse Paula, não fosse suas frequentes olhadas na vizinha nua, Alcebíades teria feito o que enquanto menino achava que era correto: teria guardado as revistas no lugar, talvez no máximo tendo dado uma espiada.
Mas o que fez foi mais. Selecionou uma revista específica com mulheres específicas com o estilo específico de pentelhos que gostava. Roubou essa revista e a deixou guardada nas suas coisas, muitíssimo bem guardada.
Alcebíades sabia que seu pai poderia descobrir seu roubo, mas isso nunca foi comentado. E se a primeira metade de sua vida pelo resto da puberdade se definia pelo crescente amor por Juliana, aquela segunda metade da sua vida se definia pela obsessiva revisita àquela mesma revista e pelas espiadas obsessivas na nudez de sua outra vizinha.
Do lado de lá de sua vida, a primeira vez que Alcebíades sentiu amor romântico foi quando certo dia andou de mãos dadas com Juliana na volta da escola. Do lado de cá, a primeira vez que Alcebíades teve uma ereção foi espiando Paula da janelinha do banheiro, enquanto estava tomando banho. Do lado de lá, a primeira vez que Alcebíades tocou em uma mulher foi quando beijou Juliana pela primeira vez, na saída de uma festa junina da escola. Do lado de cá, a primeira vez que Alcebíades se masturbou foi olhando os pelos pubianos da revista que tinha roubado do pai. Do lado de lá, sua rotina adolescente foi desenvolvendo uma linda história de amor. Do lado de cá, sua rotina adolescente foi desenvolvendo um fetiche com rotina de masturbação no banho ao ver Paula na casa ao lado.
No começo, os dois lados da vida de Alcebíades estavam tão divorciados um do outro que não parecia que uma de suas metades impactaria muito na outra. Ele não pensava nem por um segundo em Paula ou em pentelhos quando estava num encontro de namoro com Juliana e não pensava em Juliana enquanto estava no banho excitado olhando Paula pela janelinha. Exceto raríssimos episódios de culpa, parecia sustentável manter sua vida assim.
Mas nos anos da juventude mais tardia, quando o namoro com Juliana já engrenara o suficiente para que o casal de adolescentes tivesse suas primeiras experiências sexuais, as rachaduras começaram a brotar.
A primeira vez de Juliana e Alcebíades veio depois de anos de muita conversa, com a construção de uma intensa paixão adolescente que não se aguentava, que não deixava os dois se desgrudarem um do outro. Era uma memória felicíssima para Alcebíades de seu relacionamento com Juliana, um dos momentos que consideraria como mais importantes e bonitos da sua vida: o olhar intenso um nos olhos do outro, a respiração ofegante, os jeitos tímidos e hesitantes dos dois enquanto começavam a explorar mutuamente seus corpos.
Seria uma memória perfeita, não fosse um único instante: quando pela primeira vez viu a nudez de Juliana, não viu os pentelhos que gostaria de ter visto. E por mais que não quisesse sentir isso, por mais que se sentisse horrível e sujo por isso, por mais que negasse que sentia isso, o que sentiu foi decepção. Nada mais em Juliana o decepcionava e sempre tinha achado que ela era linda em tudo — ou, agora entendia, em quase tudo. Mas ali, fez uma pequeníssima careta, que Juliana notou e a deixou assustada também por um mínimo momentinho, antes que conseguisse focar de volta no momento e deixar para lá.
Era a única parte que estragava a perfeição daquela memória em específico. Mas isso seguiria acontecendo mais frequentemente conforme os anos passaram: o segundo lado da sua vida, dos pentelhos, das revistas pornográficas, das espiadas em Paula, seguiu a estragar e invadir momentos românticos da sua vida feliz com Juliana.
Se Paula fosse a mulher de seus sonhos ao invés de uma vizinha insuportável, a situação seria mais fácil. A diferença de idades era grande demais quando adolescentes, mas depois de adultos poderiam ter se reencontrado em outro momento e tido algum relacionamento. E se qualquer outra mulher com pentelhos pudesse potencialmente ter com ele um amor tão intenso e bonito quanto aquele que tinha com Juliana, teria tentado também. Mas não era isso que Alcebíades queria: ele queria Juliana, o namoro e depois o casamento com Juliana, a vida junto com Juliana, os filhos com Juliana. Ele queria, também, que Juliana tivesse os pentelhos que Paula tinha, mas os acasos da biologia não fizeram a mulher por quem se apaixonara ser perfeita para seus gostos em absolutamente tudo: para Alcebíades, ela era perfeita em todo resto, exceto naquele pequeno detalhe, e ele se sentia até mesmo culpado por ser mal agradecido ao ponto de se incomodar com a única coisa que queria ter e ainda não tinha numa mulher.
E essa única coisa, esse pequeno detalhe, algo que no começo parecia possível de se relevar ou desconsiderar, foi tornando-se uma obsessão e uma fonte crescente de conflitos.
Enquanto a primeira parte de sua vida se desenvolvia com Juliana, a segunda metade se desenvolvia em sombras na frustração da estagnação, dos desejos não saciados, na obsessão fetichista que não se calava nunca, que prejudicava um pouco cada instante de intimidade do casal Juliana e Alcebíades, que frustrava o homem no quanto um desejo tão bobo, tão despropositado, podia prejudicar tanto sua qualidade de vida e ameaçar tanto sua existência que de resto era, segundo seus próprios critérios, absolutamente perfeita.
Se alguém tivesse avisado Alcebíades, logo quando ele se casou e ainda naquela felicidade dos vinte e poucos anos, que duas décadas mais para frente aquele casamento acabaria por causa da segunda metade de sua vida e mais especificamente por conta de pentelhos, ele não acreditaria. Riria da ideia, do absurdo de que algo fosse fazer com que ele desistisse da Juliana que ele tanto amava, quanto mais algo tão imbecil.
Mas os anos foram passando e a ameaça foi ficando mais crível. Nos últimos anos do casamento, era mais uma iminência do que uma possibilidade. Ou terminaria com seu casamento enquanto ainda era um casamento feliz e manteria ainda sua dignidade e o respeito da sua metade da vida que até ali tinha vivido tão bem, ou sua segunda metade invadiria a vida que tinha construído com uma amargura crescente, uma frustração sexual incapacitante. E daí seria o momento em que o desespero faria com que os piores erros dessem as caras: a masturbação que viraria vício, as traições que poderiam acontecer, o tratar mal Juliana para descontar os suas frustrações…
Alcebíades não queria fazer nada disso. Se podia encerrar bem a primeira metade de sua vida e mantê-la bela e inocente das sujeiras de sua outra metade, era um bom caminho. Tinha vivido a metade da sua vida, da infância passando por toda adolescência e maior parte da vida adulta, dedicado aos desafios e belezas do lado da sua vida que englobava Juliana. Para equilibrar as coisas, agora precisava dar um ponto final naquele lado de si e talvez dedicar a segunda metade de sua vida à sua outra metade.
Pensar isso parecia absurdo e ele mesmo se recriminava quando sentia-se ansioso pelas expectativas de atender seu fetiche após tantos anos se recriminando. Fingia um pouco que queria encerrar o casamento com Juliana só para se afundar numa melancolia celibatária que o punisse por seus desejos. Ao mesmo tempo, fantasiava com o divórcio pela vontade de, depois dele, achar se não Paula, certamente alguma mulher que tivesse a mesma e única característica de Paula que desde adolescente o incitava: os pentelhos.
Uma vez, tentou pensar numa metáfora para seu problema, quando considerou ir a um psicólogo para explicar o que acontecia e pedir ajuda. Desistiu da ideia do psicólogo por vergonha, a mesma vergonha que o impedia de contar a verdade para Juliana, mas pelo menos ficou com a metáfora.
Alcebíades via o lado de sua vida que tinha no casamento como um bonito vale cheio de florestas e uma casinha que tinha construído com Juliana, uma vida que tinha construído com Juliana e seus filhos naquela casinha. Aquela metade da sua vida era protegida por uma grande represa que mantinha do outro lado o mar, caótico e poluído, que era como entendia a outra metade da sua vida. O muro que separava as duas metades de sua vida precisava ser fortíssimo para impedir que o vale onde vivia com sua esposa fosse destruído, que tudo que tinha construído daquele lado fosse arrebentado pelas águas imundas do outro.
Mas agora esse outro lado estava fazendo pressão para invadir seu mundo e rachaduras começavam a aparecer. Se não fizesse nada, a vinda do outro lado seria violentíssima, pela pressão de tantos anos represado. E na metáfora, esse caprichoso mar de desejos se contentaria com um sacrifício único, especificamente de Alcebíades, se ele abandonasse a vida com Juliana e se jogasse sozinho do outro lado da represa.
Era uma metáfora digna, quase mitológica. Nela, Alcebíades conseguia fingir que era um herói se sacrificando para manter a casa da família em pé e todos os outros ainda vivos. Ele nunca percebeu a ironia de que estivesse usando essa metáfora para tentar racionalizar e justificar algo tão baixo quanto um fetiche por pentelhos.
Mas era essa uma das questões sobre Alcebíades: ele se achava digno, um digníssimo funcionário público com roupas sociais, bons gostos culturais, um casamento estruturado e funcional, erudição, esforço e competência no trabalho, uma boa educação para os filhos, bons valores, bons atos. Nada disso, nada do que ele entendia sobre si e sobre o mundo, se conciliava bem com a outra metade dele mesmo, com algo tão baixo quanto um fetiche por pentelhos capaz de acabar com um casamento.
Era por isso que o casamento precisava acabar.
Alcebíades precisava acabar somente consigo, destruir-se; se pudesse preservar a família e a sociedade de se afogarem na imundície com ele, se pudesse mantê-los ignorantes da sua baixeza, se pudesse continuar pelo menos mantendo sua dignidade, respeito e imagem diante deles, teria ao menos um legado feliz da vida que tinha construído até então e que agora tinha que abandonar.
3.ㅤ
O processo até o divórcio foi, na verdade, bastante gradual. É importante que sejamos justos com Alcebíades: ele tentou de tudo antes da separação.
Quando se casaram e foram morar juntos, Alcebíades sentiu-se aliviado por se ver distante da constante tentação da nudez de Paula. No mesmo dia em que fez sua mudança, jogou fora a revista pornográfica que tinha o acompanhado por toda sua adolescência. Ele estava pronto para mergulhar totalmente em sua vida com Juliana e abandonar por completo sua outra metade. Nos primeiros anos, isso deu certo: ele não pensava em Paula, nem nos pentelhos, nem na pornografia, nem em outras mulheres. Estava muito feliz vivendo junto com a esposa, tendo os filhos, crescendo profissionalmente.
Conforme os anos foram passando e os desejos foram retornando, ele criou até coragem para pedir certa vez que Juliana deixasse pelos crescerem. Ela ficou meio desconcertada com a ideia, mas tentou,m dado o nível de intimidade e abertura do casal. Alcebíades ficou decepcionado quando os pelos cresceram de uma forma tímida e mirrada: a biologia de Juliana não fazia os tufos que ele gostaria de ver. Mas ele agradeceu a ela pela experiência, sem contar de sua insatisfação, e quando disse que por ele tudo bem se Juliana voltasse a se depilar, ela suspirou aliviada e voltou à sua habitual lisura já no dia seguinte.
Daí para frente, as tentações foram gradualmente aparecendo conforme o mundo ia, com estímulos por coincidência, criando novas rachaduras na represa que bloqueava seus desejos. Às vezes, vendo um filme que tinha cena de nudez, os tufos apareciam e ele precisava tentar disfarçar sua ereção se Juliana estivesse abraçada ao seu lado. Às vezes, ele precisava se controlar na banca de jornal para desviar os olhos quando via uma revista pornográfica com uma moça exibindo orgulhoso grandes tufos de pelos pubianos. Na locadora, ele precisava se controlar para passar correndo e sem espiadas pela seção de filmes adultos. Ele tentou castrar suas vontades pelo olhar domado, pelo foco nas inúmeras belezas reais de Juliana, pelo resto da vida como um todo.
Mas não adiantou.
Nos últimos anos de casamento, Alcebíades tinha frequentemente sonhos eróticos com pelos pubianos. Já estava totalmente tomado por isso e a vida que vivia com Juliana nesse momento já era mais encenada do que verdadeiramente feliz. Estava esperando o filhos ficarem só alguns anos mais velhos antes de desestruturar a família com o divórcio. Estava também tentando criar coragem e em constante negação.
A única coisa que não foi capaz de tentar foi a conversa. Como mencionado, o plano do psicólogo foi abandonado por vergonha. Falar mais abertamente com Juliana também parecia impensável. Não porque Alcebíades acreditasse que a esposa fosse ser qualquer coisa menos do que compreensiva e amorosa: mas porque ele não queria que ela tivesse que sofrer com a ideia de que seu marido, o homem com quem tinha decidido viver a vida quase inteira, tratava-se de alguém tão sujo, tão baixo.
Novamente, mesmo nisso Alcebíades não protegia a própria imagem tanto por orgulho: ele já tinha pouco respeito por si mesmo no estado em que estava. Queria, antes, proteger Juliana, fazê-la feliz. E não só na própria imagem, temia que a esposa se sentisse criticada se ficasse sabendo que tinha algo nela que “faltava” para seu marido. Alcebíades estava plenamente ciente de que a falta ou o defeito, a ausência que ocasionava todo o problema, era algo inerentemente seu. Juliana era perfeita sim, em todos os aspectos, e o defeito era dele em não conseguir entender isso totalmente, em ter uma fixação que o impedia de contentar-se com a grande mulher que tinha. Não queria correr o risco de cutucar as inseguranças dela com a ideia de que ela não fora suficiente para saciar seus desejos.
E falar só significaria, voltando à metáfora da represa, encontrar uma maneira para que os seus dois mundos coexistissem e se integrassem melhor. Mas não era isso que Alcebíades queria: mesmo se o rio de seus desejos pudesse passar pelas belas paisagens da sua vida com Juliana sem destruir tudo, seria a convivência de uma bela paisagem com um fluxo nojento de água suja que deixaria tudo fedendo. Para ele, fazia mais sentido manter um lado de seu puro e belo e o outro corrompido e horrível. Se para isso ele precisasse sacrificar a estadia no lado belo de si, ao menos preservaria aquela beleza para todos os outros.
Se a sujeira era só sua, fazia sentido para Alcebíades que ele fosse o único punido pela sujeira existir, o único que tivesse que interagir com a sujeira, o único que precisasse conviver com ela, viver mergulhado nela, vê-la como algo que existe. Se pudesse proteger sua família de saber que a sujeira existe, o divórcio seria um sacrifício suficiente e propositado.
Além do mais, ele pretendia seguir participando da vida da família em todo resto que pudesse. Ele fantasiava uma vida em que sua relação com Juliana pudesse evoluir para uma profunda amizade, algo distante do que ele via como sua podridão sexual; e ele também esperava que manter seus desejos distantes dos filhos significasse que eles ainda o respeitariam e que ele poderia seguir participando da vida deles como antes.
Mas a realidade não conversou tão bem com essas expectativas de Alcebíades.
A começar porque o divórcio sem razão declarada pode ter servido para proteger sua reputação, mas foi muito traumático para todos os envolvidos. Se pudessem sentir mesmo que raiva ou nojo do pai e marido, se pudessem entender melhor seus motivos e julgá-lo a partir deles, filhos e Juliana teriam tido um caminho melhor para superarem e compreenderem melhor a disrupção familiar. Do jeito que foi, a neblina das incertezas fez todo mundo se sentir igualmente ansioso e responsável: os filhos achavam que podiam ser culpados pelo divórcio, Juliana reprisava cada momentinho do casamento em busca do que podia ter feito de errado, e existiam ainda as preocupações de que Alcebíades estivesse deprimido ou louco. A vergonha de Alcebíades em demarcar uma única realidade ruim fez com que todos ao seu redor tivessem que se confrontar com múltiplas realidades possíveis, muitas delas tão ou mais ruins do que a verdadeira.
O privilégio de saber a verdade, a única possibilidade concreta e real, Alcebíades guardou só para si. Na sua cegueira, na sua falta de diálogo, na sua vergonha e na sua obsessão, essa foi a maior violência que desferiu contra a família que o amava.
Mas essa violência, que marca o fim de sua primeira vida, por mais grave que tenha sido, foi a única que cometeu com outros. Na sua segunda vida, tudo que viveu após o divórcio, a decadência e degradação de si fez com que Alcebíades constantemente cometesse violências consigo: autossabotava-se, culpava-se enormemente, sentia-se a pior pessoa do mundo, morria de vergonha.
E entre todos esses sentimentos, às vezes encontrava a felicidade do desejo que tinha passado os primeiros quarenta e tantos anos da sua vida tentando reprimir.
Nesses pequenos momentos, tudo parecia valer a pena e fazer sentido. Nos momentos logo seguintes a esse, a culpa por ter sentido algo como prazer, mesmo que só por poucos segundos, já o jogava de volta na mesma melancolia.
Ao menos até que o próximo ínfimo episódio de prazer viesse.
Entre o relacionamento na infância e o casamento depois, Alcebíades viveu trinta anos com Juliana. Do divórcio até sua morte, viveu mais trinta e seis anos. A segunda metade de sua vida foi vivida sempre solteiro, apesar de frequentemente acompanhado. Até os últimos anos, Alcebíades ainda frequentava prostíbulos. Sua última amiga sexual, que conheceu em aulas de xadrez no clube, foi quando já tinha setenta e quatro anos.
Alcebíades passou essas três décadas e meia morando numa quitinete alugada. Sua relação com os filhos e a ex-esposa nunca se recuperou totalmente. Ele mantinha distância inclusive propositalmente, para evitar que sua antiga família soubesse dos casos sexuais que tinha, ou que, pior ainda, descobrisse sobre seus encontros sexuais pagos.
Para a família, a ignorância a respeito da vida de um reservado e solitário Alcebíades carregava algo de uma frustração funda, uma melancolia grande e um crescente distanciamento. O trauma havia rompido, junto à falta de compreensão e de comunicação, com algum cordão de empatia a conectá-los com o pai e ex-marido. Ele cumpriu todos os deveres familiares: foi às formaturas e casamentos dos filhos, foi aos aniversários e às festas de natal quando o convidaram. Mas algo estava irremediavelmente perdido.
Juliana nunca mais se casou, mas chegou a ter novos namorados. Estava com um deles na época em que Alcebíades morreu. Seu discurso no velório foi contido e superficial. Mesmo os filhos não tiveram tanto a comentar.
Alcebíades morreu sozinho em sua quitinete. Não deixou as senhas de seus dispositivos eletrônicos, o que significa que foram formatados e vendidos sem que descobrissem qualquer coisa terrível que poderiam ter descoberto em seu histórico de navegação. Alcebíades não deixou cartas preparadas, mas organizou suas finanças para deixar heranças bem distribuídas tanto aos filhos quanto à ex-esposa.
Em seu funeral, algumas de suas “quase-namoradas” da velhice apareceram. Ninguém que as viu passar pelo salão e prestar respeitos ao corpo sabia, evidentemente, que o que conectava aquele grupo tão díspar de mulheres era a particularidade de todas possuírem pelos pubianos muito semelhantes.
As más línguas, indignadas com a falta de uma conclusão satisfatória, nunca deixaram de comentar aos cantos e teorizar a respeito do que tinha levado ao divórcio. Queriam descobrir qual era de fato o segredo da família. Alguma traição era a hipótese mais aceita nas discussões à boca pequena que aconteceram no velório, mas não existia consenso a respeito de qual das partes, Alcebíades ou Juliana, teria sido responsável pela infidelidade. Pela falta de materialidade a essas teorias todas, a reputação pública de Alcebíades, até o momento de sua morte, resistiu relativamente bem, embora a falta da potência simbólica de sua vida anterior tenha contribuído para que avançasse mais lentamente a cargos profissionais de maior relevância. Em certo sentido, o divórcio retirou de Alcebíades um status de campeão da normatividade, um ambicioso ideal de sucesso a gerar inspiração como o mais pleno dos homens comuns, e o tornou um homem comum de fato, num sentido mais chato e vulnerável do que isso queria dizer.
De alguma forma, as duas partes da sua existência forma marcadas pelo mesmo dilema: misturas particulares e contrastantes entre prazeres e dores, entre alegrias e sofrimentos, entre frustração e satisfação. Ele morreu ainda incompleto, mas experimentou essa incompletude profundamente nas duas partes de si.
Se precisasse colocar numa balança, seria difícil para Alcebíades dizer qual período da sua vida tinha sido mais ou menos feliz, ou mais ou menos infeliz. O período dedicado à sua metade amorosa com Juliana era feliz e pleno, mas constantemente marcado por uma insatisfação nas coxias, um incômodo crônico que tinha seguido como ruído agudo de fundo a estragar um pouquinho de cada segundo de sua vida feliz durante o casamento. O período da metade dedicada aos seus fetiches era menos estável: vivia quase o tempo todo imerso em melancolia e tristeza, arruinando-se; mas às vezes, por aqueles segundinhos, tinha um prazer legítimo, sem incômodo crônico ou qualquer ruído de fundo, algo que na primeira metade de sua vida nunca tinha experimentado.