Os estranhos fenômenos urbanos em São Estevinho do Sul

Rodrigo Goldacker
18 min readAug 7, 2024

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Photo by Ân Vũ Trọng on Unsplash

Na mesma cidade, três grandes fenômenos se desenrolavam simultaneamente a marcar o clima, os ambientes e os eventos sobretudo dos bairros centrais. Por serem recorrentes e facilmente identificáveis na paisagem, esses três eventos tornaram-se parte importante da identidade urbana, apesar de serem fenômenos difíceis de localizar absolutamente.

Em São Estevinho do Sul, a população não era das maiores, mas estava longe de ser das menores também. Era suficientemente grande para ser o dobro da população de São Estevinho do Norte. A cidade também era duplamente mais rica do que sua contraparte nortista. E era ainda mais rica e maior do que São Estevão do Oeste, também.

Apesar do porte, que não era mínimo, mas que ainda não era nada ao nível de uma São Paulo, de uma São Bernardo do Campo, enfim, que uma cidade comum de nível médio paulista, ou mesmo de uma localidade bem densamente povoada e verticalizada como o Taboão, apesar desse porte mediano, São Estevinho do Sul apresentava níveis extraordinários de verticalização. Apresentava, além disso, uma enormidade de prédios meio vagos.

Era ao mesmo tempo uma sorte e um problema.

No sentido da sorte, em São Estevinho do Sul não havia falta de imóveis disponíveis, ao passo de que não havia sequer um morador de rua em toda a cidade. Não havia aluguéis, também, visto que a oferta de imóveis era tamanha que não havia entre os moradores quem não pudesse confortavelmente adquirir um imóvel a um baixíssimo preço — algo extremamente raro em todo o mundo, quanto mais no Brasil.

O problema era o mesmo que a parte boa: o excesso de imóveis vagos.

Como a oferta era desproporcionalmente maior do que demanda, e como seguia a crescer a oferta de imóveis disponíveis, havia um problema em crescimento exponencial de imóveis vagos e se degradando.

Havia bairros inteiros abandonados. Na maior parte dos prédios, os moradores ocupavam somente os últimos andares (exceto aqueles que tinham preferência em outros andares). No centro, ao lado do prédio da prefeitura, um empreendimento imobiliário de vinte e cinco andares estava todo vago do décimo sétimo andar para baixo — e por isso usaram de seu amplo espaço disponível para construir uma gigantesca biblioteca pública, uma faculdade, um cinema e um teatro.

Em São Estevinho do Sul, a maior parte dos grandes empreendimentos aconteciam nesses prédios vagos. Qualquer empresa podia facilmente abrir um escritório na cidade que ocupasse metade de um prédio, então algumas indústrias começaram a transferir parte de suas operações para lá. Além disso, o espaço começava a ser usado também para estocar servidores. Havia um bairro todo, chamado de “bairro do exa”, em referência ao exabyte, em que cerca de vinte prédios (incluindo uma condomínio de cinco torres de dezesseis andares cada) foram reapropriados exclusivamente para armazenar servidores.

A prefeitura de São Estevinho do Sul aproveitava como podia das oportunidades de sua estranha condição. Para citar um exemplo, avisavam frequentemente em eventos corporativos por todo o país e pelo mundo que estavam buscando novos contratos para expandir o modelo dos servidores em um próximo bairro, ainda mais ambicioso, que seria o “bairro do zetta”.

Mas a verdade é que o crescimento descontrolado era mais um problema para o município do que uma coisa boa. Era particularmente difícil policiar uma população média espalhada tão esparsamente por um grande centro urbano.

A economia era modesta demais para que os prédios vagos pudessem facilmente ser habitados por migrantes. O ambiente urbano tão verticalizado não demonstrava bem, mas a base econômica do município ainda era a mesma das cidades brasileiras de médio porte, ainda muito vinculada ao seu pequeno comércio, à indústria agrária, ao setor de serviços.

Mesmo as empresas que mudavam para lá encontravam limites no que conseguiam acessar de estruturas comuns a centros cosmopolitas. Os hospitais de São Estevinho do Sul, para mencionar um dos casos mais relevantes, eram todos bastante precários — era comum que os habitantes fossem até o município vizinho, esse sim que era o maior da região em estrutura e população, para passar num sistema de saúde melhor.

O responsável pela situação urbana era um só: um misterioso empreendedor conhecido popularmente por “homem dos prédios”.

Dele, era sabido somente que existia, embora pudesse talvez ser mais de um. E apesar da inclinação do seu nome, que denotava certa veia machista da cultura, a verdade é que ele também podia muito bem ser mulher, ou mulheres, ou um grupo misto. Centenas de incorporadoras e construtoras atuavam em São Estevinho do Sul, mas todas admitiam abertamente receber investimento para tal partindo de uma coleção impessoal de fundos financeiros que não eram obrigados a tornar pública a lista de seus patrocinadores.

Então o homem dos prédios podia ser mais de um, embora fosse improvável porque a existência de um único homem dos prédios com uma fixação tão esquisita e particular em São Estevinho do Sul já era algo bastante exótico.

Primeiro, o homem dos prédios era evidentemente alguém de vastos recursos e com um bom gosto arquitetônico. Todas as empresas atuando em São Estevinho do Sul seguiam um crivo exigente de qualidade, o que demonstrava uma curadoria competente e, mais do que isso, despreocupada com preços. Os condomínios eram sempre projetos piloto, modelos replicados mais tarde em cidades inteligentes e cosmopolitas por todo o globo.

Para além de rico e estranhamente obcecado por São Estevinho do Sul, o homem dos prédios também parecia alguém desapegado de seu dinheiro, ou pelo menos despreocupado com o prejuízo inimaginável que seu investimento absurdo em São Estevinho do Sul acarretava.

Tão saturado era o mercado, o centro da cidade tinha o metro quadrado mais barato entre todas as cidades brasileiras de médio porte. Consultores financeiros desaconselhavam veementemente o investimento em qualquer imóvel em São Estevinho do Sul, mesmo se fosse um imóvel de luxo, porque a tendência era de desvalorização e saturação crescente.

O segundo estranho fenômeno da cidade podia ou não ser associado ao primeiro.

Aliás, entre os três fenômenos havia essa mesma ambivalência. Talvez as pessoas epílogo tenham começado a surgir porque podiam facilmente encontrar moradia gratuita nos imóveis vagos do homem dos prédios. Ou talvez elas fossem só outro estranho fenômeno que acontecia independentemente, mesmo se simultaneamente. Talvez tenha sido reparando na chegada delas que o homem dos prédios decidiu começar a atuar. Em São Estevinho do Sul, nunca dava pra ter certeza do que acontecia só simultaneamente, mas ainda independentemente.

As pessoas epílogo eram um fenômeno mais presente e menos misterioso do que o homem dos prédios. Eram uma aberração estatística, e assemelhavam-se nos seus comportamentos, portanto eram mais observáveis ao mesmo tempo que menos concretos. As consequências do homem dos prédios estavam para todo lado que se virasse com obras atrás de obras e arranha-céus por cima de arranha-céus. Mas o homem dos prédios em si não se via. E quem se costumava encontrar volta e meia nos seus prédios vazios eram essas pessoas epílogo.

Essencialmente, as pessoas epílogo eram uma categoria dos moradores de São Estevinho do Sul com hábitos muito peculiares. Costumavam viver sozinhas em prédios que ninguém mais quis e se esforçavam enormemente em se manter distantes tanto umas das outras quanto de qualquer outro morador da cidade.

Eram via de regra pessoas silenciosas, que não gostavam de conversar com ninguém. Alguns deles eram mudos mesmo, ou tinham adotado algum voto de silêncio. Entre os que falavam, ou que tinham algum tipo de identificação, podia se notar que costumavam ter históricos problemáticos: vidas sofridas, laudos de doenças terminais ou de desequilíbrios psiquiátricos, dependências químicas, quadros severos de depressão...

Eram, apesar disso, resilientes e pacíficos. Achavam algum emprego que os sustentasse, normalmente serviços remotos que pudessem fazer sem ter que sair de casa. As pessoas epílogo não tinham amigos e não gastavam com frivolidades como restaurantes. Faziam compras de mês e não saíam para além do mínimo necessário. Quando começaram a chegar, gostavam de sair bem cedo para evitar movimento. Por causa delas, o comércio local se adaptou abrindo algumas operações de supermercados vinte e quatro horas. Como o espaço de São Estevinho do Sul era amplamente disponível, era possível montar praticamente um mercado vinte e quatro horas diferente para cada uma das pessoas epílogo ir sozinha, sempre de madrugada.

Quando eram vistas, e quando eram questionadas por censos, essas pessoas diziam que se mudaram para São Estevinho do Sul porque acreditavam que a cidade condizia com suas necessidades emocionais. Diziam estar mais felizes e em paz desde que tinham se mudado para lá. Agradeciam pelo tipo de rotina que podiam manter e sentiam-se estranhamente reunidas em sua comunidade que não precisava nem se comunicar para articular interesses, por exemplo, na pressão para um candidato a prefeito.

Quando eram avistadas, essas pessoas epílogo eram facilmente reconhecidas. Estavam sempre mal vestidas e andavam sozinhas, evitando outros o máximo que pudessem. Olhavam sempre pro chão e não encaravam ninguém. Andavam rápido, indo ansiosos para onde quer que fossem. Seriam mais facilmente avistadas de madrugada. E se fossem vistas de frente, por um momento num esbarrão inusitado, teriam olhos vagos e sofridos.

Foram apelidadas assim, de pessoas epílogo, por um poeta de São Estevinho do Sul que disse que elas pareciam pessoas que já tinham encerrado sua vida depois de algum trauma muito grande e agora vagavam por aí como epílogos de uma história de vida que já tinha acabado. E era uma descrição que, apesar de poética, descrevia suficientemente bem como eram essas pessoas mesmo. Viviam carregadas de passado, isoladas de tudo, e contribuíam para um clima soturno e surreal.

Quem visse a madrugada de São Estevinho do Sul encontraria prédios e mais prédios em sua maioria vazios, com poucas janelas com luzes acesas, e algumas poucas almas deslizando tímidas pela noite quieta para ir fazer compras num supermercado vinte e quatro horas.

As pessoas epílogo eram boas para o ambiente urbano. Movimentavam a economia, se não com aluguel, pelo menos com o consumo. Mas eram por natureza difusas. Viviam de propósito (e por propósito) distantes. Mesmo do pouco que se sabia a seu respeito, era sempre dos casos menos graves. Algumas das pessoas epílogo em São Estevinho do Sul não saíam de casa em hipótese alguma desde que tinham se mudado pra lá. Ficavam dentro de seus apartamentos e pagavam para que outros entregassem suas compras. Pediam para deixarem as encomendas num apartamento vazio diferente, andares abaixo dos delas, e só saíam de madrugada para buscar o que tinham recebido.

Em São Estevinho do Sul, a presença dessa comunidade levou o município para o topo de linha nos aplicativos de compras e entregas.

É importante dizer que nem todas as pessoas epílogo tinham condições financeiras tão boas. Algumas delas eram ainda o mais próximo que São Estevinho do Sul teria de moradores de rua. Mas havia empresas inteiras preparadas para explorar a força de trabalho das pessoas epílogo do São Estevinho do Sul, e até as pessoas epílogo mais despreparadas conseguiam facilmente um convite para algum trabalho remoto que pudessem realizar sem sair ou falar com pessoas.

Finalmente, o terceiro dos fenômenos estranhos da cidade podia ou não ter alguma relação com os outros dois. Muitos acreditavam mesmo que o profeta ateu tinha ido a São Estevinho do Sul por causa de sua alta concentração de pessoas epílogo, mas a verdade é que eles não costumavam interagir tanto.

Não é que o profeta ateu fosse especificamente capaz de “curar” as pessoas epílogo, nem parecia ser essa sua grande motivação. Eles existiam no mesmo lugar, mas não tinham verdadeiro vínculo— até porque as pessoas epílogo não interagiam muito com quase ninguém. Às vezes, o profeta se inspirava na observação dessas pessoas para meditar ou discursar — mas seu vínculo com elas acabava por aí.

Corriam ainda teorias de que o profeta ateu podia muito bem ser ele próprio o homem dos prédios, ou patrocinado para estar ali pelo homem dos prédios, ou pelo menos convidado a estar ali por isso. E nisso dizia-se que o profeta ateu podia ter sido atraído por São Estevinho do Sul por causa das excentricidades do município.

Mas a verdade é que ninguém conseguia cravar uma data exata para a chegada e disseminação do profeta ateu, nem para o fenômeno das pessoas epílogo começar. No caso do homem dos prédios, tentava-se demarcar a origem do fenômeno no momento em que o mercado imobiliário transicionou do que era esperado para uma cidade daquelas — mas esse processo tinha sido mais gradual do que parecia. As empresas dele foram chegando lentamente e gradualmente investindo mais e mais na cidade, o que dificultava cravar datas precisas para quando tudo tinha começado. Pelo menos seis prédios diferentes eram defendidos por diferentes linhas de historiadores como os possíveis “primeiro” do homem dos prédios.

O profeta ateu, portanto, existia também independentemente do resto dos estranhos fenômenos de São Estevinho do Sul — pelo menos enquanto não provassem o contrário. Existia lá simultaneamente ao resto, mas independentemente.

Ele nunca disse seu nome real nem de onde tinha vindo, mas seu jeito de falar e suas ideias tornavam possível formular algumas teorias educadas. Pelo sotaque e pelo que dizia, pelas referências culturais que tinha, parecia ser muito estudado, muito lido e de uma forte cultura cosmopolita. O chute mais comum era de que tivesse vindo de São Paulo, mesmo que não tivesse sotaque necessariamente paulistano. Era um sotaque desses metidos a neutro, mas que vibrava intercalando nuances que pareciam vir de vários lugares. Num momento ele parecia mais carioca, noutro mais mineiro, às vezes até baiano, mas nunca nada demasiadamente ao ponto de marcá-lo. Era como se sua identidade cultural flutuasse acima dos bairros mais movimentados das capitais e grandes metrópoles do país inteiro.

Os seus seguidores descobriam sobre ele por boca a boca.

Muitos deles pela Internet, embora o profeta ateu não possuísse ele mesmo nenhuma presença digital. Mas deixava que o gravassem conversando, dava entrevistas, ditava textos. Nunca tocava numa caneta, não usava tecnologias, nem tinha celular. Mas sabia que tudo isso existia, sabia como tudo isso funcionava e permitia que sua imagem fosse disponibilizada nesses espaços.

Vários trabalhos também tentavam consolidar quanto o fenômeno do profeta ateu de São Estevinho do Sul começou a se popularizar na Internet. As primeiras menções, poucos meses depois da primeira aparição registrada do profeta na cidade, o mencionavam ainda como uma lenda urbana, ou um boato. Quatro meses depois dessas primeiras discussões, viralizou seu primeiro registro em vídeo — uma conversa sobre filosofia existencialista com um padeiro enquanto observavam de uma sacada às pessoas epílogo indo de madrugada fazer compras nas ruas vazias.

O profeta ateu era exatamente o que seu nome descrevia: um profeta, mas de um tipo ateu. Ele dizia que sua missão era humilde e geracional: direcionar os ateus que tinham idade semelhante à dele para a morte. Conversava abertamente e com muita lucidez sobre a mortalidade e como era enfrentá-la sem fé. Educava seus discípulos em como viver e morrer de jeito digno e dizia que sua principal vontade era a de instituir uma comunidade para que definhassem juntos e em paz, mas sem sucumbir ao desespero ou sair em busca de alguma ilusão.

Pretendiam juntos viver e morrer sem fé. Enfrentariam o desconhecido de peito aberto, absolutamente isentos de qualquer expectativa.

O ateísmo do profeta ateu era mais intrincado e profundo do que aquele que normalmente se discute. E por sua linguagem simbólica, pela profundidade subjetiva de seus insights e pela estética belíssima da maneira como articulava suas ideias, havia mesmo nele algo de um discurso que parecia espiritual. Mas no profeta ateu nenhuma convicção existia, absolutamente nenhuma. Sua mensagem era uma exaltação à Incerteza, essa que ele descrevia em maiúscula, como uma deusa nua e cinza de olhos opacos.

Ele costumava sentar sozinho para meditar em andares amplos e vazios de prédios comerciais ociosos. Por horas, multidões reuniam-se silenciosamente ao seu redor, observando respeitosas sua meditação ou meditando também, até que o profeta ateu abrisse os olhos, levantasse e começasse a falar — coisa que, quando começava a fazer, podia passar horas fazendo. Daí, passavam para uma etapa de debates que também podia durar horas, dias ou até semanas. Às vezes, o próprio profeta ateu ia embora meditar em outro lugar enquanto a discussão que iniciara continuava. A primeira das bibliotecas coletivas do movimento começou ao redor de um evento desse tipo.

Com o tempo, seu público foi se expandindo para os mais novos e os mais velhos e sua missão com base nisso virou a de ajudar todos os vivos em sua jornada até o túmulo. Nesse ponto de sua popularidade, e por seu uso constante de parábolas e metáforas, e ainda por sua aparência no todo, o profeta ateu era às vezes chamado também de “Jesus ateu”, embora esse apelido mais controverso fosse desincentivado tanto pelo próprio profeta quanto pelos cristãos do município e pela prefeitura, que temia seu efeito negativo no turismo.

Para o profeta ateu, o caminho estava numa negação absoluta, numa negação à convicção enquanto ideal e possibilidade. Ele negava a tese, a antítese e a síntese, e nisso não deixava abertura para mais nada. Deus existir, para citar o mais relevante dos casos em sua visão de mundo, era negado enquanto a convicção de que sim, existe, do crente; era negado enquanto a convicção de que não, não existe, do ateu; e era negado até enquanto a convicção de que talvez exista do agnóstico. A própria convicção no conceito/objeto de “existir” era negado. O axioma mais fundamental, a convicção mais basilar, eram também negados. Não existia nome ainda pro nível de negação que o profeta ateu aplicava.

Por esse perfil controverso, ele atraiu tanto críticas quanto grande atenção. Num país tão religioso como o Brasil, ele recebeu muitas ameaças pelo país inteiro. Mas a verdade é que a maioria dos que o odiavam moravam longe de São Estevinho do Sul e se satisfaziam em odiá-lo à distância, pela Internet.

Além disso, a organização do profeta ateu no município era uma importante instituição religiosa — e também movimentava a economia. Pessoas do país e do mundo todo vinham morar lá por causa dele, ou visitar a cidade. Pelo menos quinze prédios do centro foram readaptados em centros de ensino, de meditação, de discussão filosófica — todos envolvidos no complexo de investidas culturais da instituição do profeta ateu em São Estevinho do Sul.

O município era conhecido por isso como a “capital dos ateus no sul global”, o que era só o terceiro dos estranhos títulos inusitados que São Estevinho do Sul recebia, junto a “cidade fantasma mais verticalizada fora da China” e “cidade do sul global com maior número de trabalhadores em home office”.

Estatísticas de todos os tipos buscavam estabelecer quais eram os efeitos dos estranhos fenômenos de São Estevinho do Sul em sua população. O homem dos prédios reduziu a ansiedade pelo aluguel, mas aumentou a preocupação com a degradação urbana. Entre os moradores antigos, sobretudo os católicos, a convivência com os discípulos do profeta ateu serviram para dividi-los em duas alas: uma mais conservadora, que desejava limitar a influência dos ateus no município, e outra mais progressista, aberta a iniciativas comuns como a criação de uma universidade e biblioteca conjuntas.

Os hábitos de consumo das pessoas epílogo tornaram mais comum os hábitos noturnos na cidade, o que contribuiu para o estabelecimento de uma vibrante vida noturna. No centro, peças de teatro e eventos musicais podia acontecer mesmo de madrugada, normalmente tomando grandes pátios de condomínios vazios. Espaços para pets eram comuns, tanto em praças quanto em prédios abandonados, e era frequentados tanto de dia quanto de madrugada, por animais de rua e por animais domésticos junto a seus donos. Havia tanto um “prédio dos cachorros”, com seis andares e um jardim do condomínio adaptados para cães, quanto um “prédio dos gatos”, em que circuitos de labirintos tomavam quatro andares inteiros. Em ambos, os espaços de brincar coexistiam com diversas lojas de produtos pet e veterinários 24 horas.

A cidade era uma combinação muito particular de influências bastante díspares.

Começava no passado de São Estevinho do Sul, que não era muito diferente daquele comum a tantos municípios brasileiros. Aqueles com as casinhas originais que estavam lá desde sempre, desde antes dos prédios começarem a subir pra todo o lado. Era o lado da cidade mais modesto e antigo, seu lado de província tradicional e religiosa, dos moradores originais da região. Era o lado das antigas brincadeiras com o nome equivocado do município, que “deveria” ser Santo ao invés de São pela norma habitual do acompanhamento de palavras com vogais. E diziam inclusive que esse detalhe era o primeiro dos sinais do quão estranha a cidade se tornaria. Moralistas diziam, mais ainda, que a estranheza da cidade era uma maldição ou punição pelo São em seu nome.

A essa gente mais enraizada e seu estilo mais provinciano, somava-se em contraste bruto a ambição impressionante tanto quanto insustentável do homem dos prédios, forçando de um jeito meio absurdista a cidade a um futuro que parecia tanto civilizatório quanto distópico.

E junto disso, a influência ainda dos silenciosos comportamentos de vida, de consumo e de trabalho das pessoas epílogo, que funcionavam como um ruído branco mórbido de fundo para todo o resto dos movimentos da cidade. E em contraste também disso, a movimentação dramática, articulada, constante, do profeta ateu com seus discursos, suas ideias, suas instituições, suas sessões conjuntas de meditação que faziam milhares de pessoas passarem dias em silêncio, sentadas e meditando, tomando andares e andares de prédios inteiros vazios.

Era um destino turístico muito, muito procurado. Muito atípico. E entre os que visitavam, era comum comentar os riscos do lugar: de querer ficar de vez, ou de não voltar nunca mais.

Podiam decidir ficar pela fácil oferta de moradia, se possuíssem trabalhos remotos e acreditassem que o estilo mais vagaroso da cidade podia ser bom para se viver. Podiam decidir ficar apaixonados pela efervescente cena cultural e intelectual, principalmente caso convertidos em seguidores ou apreciadores do profeta ateu. E podiam ficar também se reconhecessem em si algo do silêncio, da introspecção e do trauma das pessoas epílogo.

Mas não fosse um desses casos, e se fossem embora, provavelmente não voltariam. Entre os turistas que não ficavam para morar, havia uma opinião comum de que existia algo de incômodo em São Estevinho do Sul. A cidade era famosa, certamente, e um destino popular por suas particularidades impressionantes. Mas era também um lugar descrito como inquietante. O mundo todo parecia de alguma forma temer a possibilidade de se tornar daquele jeito, mesmo que existissem outros lugares pragmaticamente muito piores de se viver — mais violentos, mais caros, etc.

Nas estatísticas, era dito que a prefeitura de São Estevinho do Sul estava prosperando, mas tinha desafios preocupantes para seguir mantendo a rede elétrica por toda a extensão do município devido ao seu crescimento constante. Era sabido também que, entre os moradores, metade deles se dizia muito satisfeito de viver ali, com mais 25% dizendo satisfeito, 15% se dizendo neutro, 5% se dizendo moderadamente insatisfeito e 5% se dizendo muito insatisfeitos. As taxas de suicídio e de problemas mentais eram acima da média para municípios brasileiros semelhantes em economia e população, mas considerava-se nisso que a comunidade das pessoas epílogo era responsável pela distorção desse dado para cima.

No final de seu primeiro mandato, o prefeito prometeu melhorar esses números todos com uma reforma dos prédios ociosos do centro, melhora no atendimento psiquiátrico e psicológico na cidade com um novo centro de saúde mental, e mais eventos culturais para todos os públicos.

Para os discípulos do profeta ateu, anunciou uma temporada de peças no teatro da prefeitura inspiradas pelas obras de Camus ou em releituras das obras de Ibsen. E para os funcionários das empresas do homem dos prédios, anunciou um novo salário mínimo para a área imobiliária, com uma redução no custo do IPTU e de outros impostos sobre imóveis comerciais. Também anunciou um programa inédito em que São Estevinho do Sul se dispunha a adaptar prédios vagos em abrigos para receber pessoas em situação de rua de todo o país. Para as pessoas epílogo, ele fundou um modelo inédito de feiras do livro durante a madrugada, com horário marcado e só uma pessoa no pavilhão a cada três horas.

A proposta para as comunidades tradicionais — uma reforma da praça onde realizavam eventos religiosos como o São João — foi vista como o básico que todo o prefeito da região entregaria. Por isso, não se converteu em tantos votos. O que fez viabilizou mesmo sua reeleição foi o anúncio de um programa em conjunto com diversas incorporadoras do homem dos prédios para custear parte considerável dos custos com condomínio de todos os prédios com mais de 25% dos apartamentos habitados. O boleto dos que estivessem contemplados era dividido da seguinte maneira: 30% do valor ainda ao proprietário; 50% por parte das incorporadoras; e 20% das prefeituras.

A partir dessas pautas todas e dos novos públicos e interesses da cidade, ele conseguiu se reeleger derrotando o candidato tradicional de uma família antiga de são-estivenses-do-sul, o que desagradou não só as elites locais como as dos municípios ao redor. E nesse seu segundo mandato, o prefeito fez questão de comunicar que São Estevinho do Sul ganhou três prêmios internacionais por sua cena cultural, por suas propostas de cidade inteligente, bem como por seus ousados e grandiosos projetos arquitetônicos. Mas teve que se defender das acusações de que certos bairros, incluindo aquele que deveria se tornar o primeiro “bairro zetta”, seguiam abandonados. Um prédio abandonado caiu logo na entrada da cidade, o que aumentou mais ainda a pressão por uma revisão do planejamento diretor estratégico. Especialistas do mundo todo se reuniram na Urban Expo Estevinho, que na edição seguinte ao desmoronamento se tornou o maior evento do sul global para planejamento urbano.

Quem morava em São Estevinho normalmente gostava e se orgulhava de sua cultura e identidade em particular. Certos artefatos feitos para turistas faziam parte dessa construção comum de símbolos urbanos.

Um dos principais era um botton em que vinha escrito “Eu ❤ São Estevinho do Sul” (com variações em inglês e espanhol) junto a cinco ilustrações: da igrejinha tradicional na praça principal da cidade, de um prédio abandonado, de uma pessoa andando sozinha com rosto triste e mãos nos bolsos de madrugada, de um Jesus irritado pregando com um livro em que se lia na capa “Não-Bíblia” e de uma mini-pizza de microondas sabor picanha com queijo (considerada uma espécie de prato típico da cidade). O pequeno souvenir era tão popular entre moradores quanto entre turistas. Na queima de fogos de réveillon (que em São Estevinho do Sul eram infinitamente mais importantes que o Natal), era comum que todos usassem roupas cinzas, ao invés de branco, e muitos levavam este botton junto ao peito.

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