Rodrigo Goldacker
8 min readJun 30, 2021

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Oi, Washington! Primeiro, valeu por ser uma das raras vivas almas que leram esse negócio todo.

Segundo, gostei muito das suas provocações e acho que seu comentário toca em alguns pontos que desenvolvi pouco, ou desenvolvi mal. Que estranho considerar que em um texto tão extenso ainda ficou faltando falar tanta coisa.

Por isso, vou aproveitar para responder suas provocações com algumas outras.

Antes, sobre o conceito do produto como fetiche: essa é mesmo uma ideia interessante. Quando eu mencionei de forma mais superficial a metáfora das empresas se tornando algo como se "espelhos" para tentar refletir o eu, era um jeito talvez mais primitivo ou confuso de tentar passar essa mesma noção do indivíduo tomando o discurso, de certa forma até inconscientemente, como parte de sua subjetividade. Nesse lugar subjetivo, o produto é desconsiderado nesses aspectos que você menciona da cadeia do trabalho e é entendido exclusivamente como símbolo, como aspecto de discurso e argumento. Ao comprarmos uma roupa de uma determinada marca, não consideramos só a qualidade concreta do produto (como a qualidade do tecido, por exemplo), consideramos também esses aspectos simbólicos: se a camiseta tem uma frase estampada, eu concordo com a mensagem? Só quem leva a cadeia de produção em conta são nichos específicos que também percebem esta cadeia como aspecto discursivo e simbólico (quem escolhe marcas por serem veganas, ou por não testarem em animais, ou por serem sustentáveis etc.)

No caso das meninas dançando ao algoritmo não saberem exatamente o que fazem: acredito que a maioria delas não saiba mesmo. Se souberem, não faz tanta diferença. Talvez só quem saiba é a dançarina que se esforça para ganhar público - essa talvez tenha estudado marketing digital de alguma maneira e entenda melhor essas estruturas que está tentando usar a seu favor. Mas o que todas sabem, independentemente de saberem do algoritmo ou não, é que existe a possibilidade (quando não a expectativa) de um público humano. No caso das que fazem suas dancinhas para tentar agradar a esse público humano, podem já seguir modas e tendências a partir do que entendem na esfera cultural, se não compreenderem totalmente a esfera tecnológica da plataforma que sustenta tal cultura.

Só na Internet dá para se criar infinitamente, seja levando em conta o prejuízo ou, como estou fazendo agora, não se preocupando com isso. A televisão não poderia me dar um canal só meu para que eu falasse o que quisesse, só para ser visto por uma pessoa ou talvez nenhuma. A Internet pode me dar meu canal só meu para ser lido por poucos ou ninguém. Eu acredito que os algoritmos impulsionem e fortaleçam muito essa lógica de “ouvir só o que me agrada”, mas não é uma tendência que nasceu agora. A mídia tradicional precisava levar isso em conta tanto quanto para criar filmes, seriados, programas televisivos, que funcionassem como produtos e que não dessem prejuízos. É como se os algoritmos fossem a extensão e a reprodução artificial dessa estrutura na Internet.

Eu mencionei no texto quase como uma nota de rodapé que mesmo tudo que escrevi é, certamente, consumo. Se não para mim, que não entendo exatamente como posso ganhar com isso, certamente para o Medium, a plataforma em que publiquei. Imagino que você não vá ao TikTok dessas garotas dançando buscar o mesmo tipo de consumo que realizou aqui, ao me ler. Então meu texto ainda é, nesses termos, de certa maneira um artigo de consumo nichado.

Pensando enquanto criador, meu texto seria produto de consumo a quem o lesse independentemente do que eu fizesse, a partir do momento que eu o publicasse em algum lugar online. Mas eu poderia ou não levar essa lógica de consumo em conta para tentar ou não criar um produto mais atraente. Se agradar um determinado nicho fosse meu objetivo, por exemplo, eu poderia ter estudado quais são os requisitos que o algoritmo costuma exigir para apresentar conteúdo a este nicho específico. Se quisesse criar algo que fosse visto por mais do que um nicho, teria que seguir outras regras para que meu produto fosse mais acessível (se fosse um texto ainda, sendo um texto bem menor; mas de preferência nem sendo texto, migrando para um formato audiovisual que é mais fácil de consumir).

Escolher o formato da arte é sem qualquer dúvida um privilégio na situação de construção de um texto como o que eu fiz aqui, ou seja, um texto que não preciso que me traga um retorno financeiro direto. Eu tentei abordar essa questão quando mencionei que só posso exercer este privilégio (que a Coca-Cola por exemplo não poderia) porque tenho um emprego que me sustenta para além dessa escrita que faço aqui. Mas a lógica do consumo acaba exigindo de nós todos que encontremos algo para vender - seja um produto, seja nossa força de trabalho. Se não estou vendendo esse texto especificamente, estou vendendo outras coisas.

Se alguém está tentando produzir conteúdo para se sustentar, não pode se dar ao luxo de escrever textões como esse sem expectativas sobre como torná-los mais eficientes para ganhar dinheiro. Um jornalista não pode escrever o que quiser, independente dos leitores e seus empregadores gostarem ou não, ou será demitido. As meninas dançando no TikTok, se não tiverem outra fonte de renda, não podem se dar ao luxo de escolherem exatamente o que vão fazer (citei algo similar no texto também no caso do desenhista de dragões que não pode simplesmente mudar suas vontades artísticas se precisar de dinheiro, tendo que manter-se fiel ao que caracteriza seu produto).

Eu gostei muito de você ter dado o exemplo do Banksy porque ele traz toda uma outra reflexão sobre formato e sobre mídia. Considere que em certo sentido ele é mais sortudo do que eu fui aqui: a mídia que o Banksy pode usar são muros e paredes, coisas públicas que, em teoria, não são espaços nos quais sua arte estaria inerentemente atrelada a uma lógica de consumo. É diferente do meu caso ao publicar no Medium, já que aqui para ser visto eu já estou me submetendo a ser um produto do Medium, a plataforma que me veicula. O Banksy não é um produto dos muros e paredes em que faz sua arte.

É por isso que parece tão estranho e antinatural que arranquem as obras do Banksy de seu lugar, os espaços públicos, esses muros pouco lucrativos, e as direcionem a estas galerias onde serão vendidas. No meu caso aqui no Medium, ou mesmo no caso das moças do TikTok dançando, ninguém precisa nos arrancar de um lugar público e levar para um privado para sermos vendidos, já somos “prontos para consumo” logo de partida.

Reitero que a lógica de produto sempre dará um jeito de permear qualquer coisa. Se por milagre ou mágica o Banksy conseguisse fazer artes em muros que não pudessem ser arrancadas de lá, ainda fariam toda uma cadeia de produtos ao redor das artes (como de fato fazem): textos de blogs e jornais comentando o artista, livros sobre ele, documentários sobre ele, reproduções em camisetas, bottons, etc.

E pela maneira como o sistema em que vivemos foi construído para exercer seu poder, todos nós precisamos nos submeter a essa ordem de consumo em algum nível, já que todos precisamos ter dinheiro. Isso vale até para os ricos, já que são ricos justamente por terem dinheiro (que normalmente conquistam vendendo a força de trabalho terceira). Mas mesmo eles precisam ter algo para vender. Sem os trabalhadores que exploram, seriam pobres. Se quisessem se livrar do dinheiro e fazer tudo de graça, seriam pobres.

Ainda assim, é nossa a opção entre deixar todos os espaços e atos de nossa vida serem permeados por essa lógica de produto ou não. Se precisamos vender alguma coisa, não precisamos vender tudo o tempo todo. Eu tenho um emprego que me dá sustento e por essa posição de privilégio posso vir aqui publicar esse textão do jeito que quis. Não só isso, eu tenho um emprego que me dá o privilégio de que exista na minha vida suficiente tempo livre para investir nos meus projetos pessoais. Um youtuber que tira sustendo dessa atividade não pode se dar ao luxo de fazer um vídeo do jeito que quiser no canal dele. Mas o youtuber pode escrever e publicar coisas em outros lugares sem se preocupar com dinheiro, se o canal já está dando certo. Ele pode desenhar também, ou dançar, sem que se preocupe com essas coisas darem retorno financeiro.

Tanto eu quanto o youtuber poderíamos desconsiderar esse privilégio que temos, apesar de já termos dinheiro de outra fonte, se cedêssemos à ideia de que tudo que fazemos precisa seguir uma lógica de produto. Eu poderia mesmo no meu Mediium ficar obcecado por produzir algo que fosse acabar sendo lucrativo, o youtuber podia exigir de si que seus desenhos ou danças dessem dinheiro também.

Para o sistema, isso é interessante: se toda a oferta é produto, torna-se mais homogênea, já que segue sempre a mesma lógica, e fica mais fácil de controlar e reproduzir. Fora isso, se é produto, dá para controlar a oferta com mais facilidade. E se contribuirmos ativamente para essa lógica, reforçamos essa filosofia ao nos esforçarmos em criar coisas que são mais eficientes apenas enquanto produtos.

Voltando ao meu exemplo com o Medium e esse texto que escrevi. O Medium vai dar um jeito de me tornar produto? Com toda certeza! Mas eu não estou facilitando para ele. Não estou tentando me adaptar a ser a versão mais eficientemente "produteira" de mim. Eu poderia estar escrevendo textos curtos sobre assuntos que são tendência e o Medium ia ganhar mais engajamento com isso, mais espaço nos resultados de busca do Google, mais usuários... O Medium mesmo ia me recompensar nesse caso ao recomendar meus textos para mais pessoas com seus algoritmos.

A questão é: eu preciso mesmo que o Medium me recompense dessa forma? Preciso que esse texto aqui seja também um bom produto, sendo que já tenho outros produtos que vendo em outros espaços?

Era mais ou menos por aí que eu queria argumentar. A discussão toda parte mesmo dessa posição do privilégio que é a ideia de um "tempo livre", mesmo que seja o do fim de semana (que foi quando escrevi essa bíblia, aliás), no qual sejamos capazes de fazer coisas que não precisamos construir com a ideia de serem vendidas.

Nesse sentido, quanto mais dinheiro e mais tempo livre temos, mais privilégio temos em poder escolher o que fazer, como você mencionou. Poder escolher ser visto ou não faz parte disso também (porque ser visto é parte da exigência para ser produto, se precisamos assim fazê-lo para ganhar dinheiro). E eu acho que quem tem esse privilégio de não precisar ser produto o tempo todo deve exercê-lo, quebrando essa lógica e propondo outras, criando outros discursos, outros espaços que funcionem seguindo outras lógicas. Devíamos também buscar jeitos de expandir esse privilégio, inclusive. Se a menina que dança no TikTok na verdade quer fazer desenhos, eu acho que ela devia ter a dignidade de poder fazer isso sem se preocupar se vai ou não ficar sem dinheiro com essa mudança.

A maneira como a Internet está construindo essas lógicas tem muito a ver também com a situação de precariedade da vida real. Se a menina dançando no TikTok tivesse outras opções para ganhar a mesma quantidade de dinheiro ao abrir um negócio ou ter um bom emprego, ela talvez abandonasse as dancinhas com mais facilidade, caso quisesse fazer outra coisa. Conforme estamos trocando (ou sendo obrigados a trocar) empregos e fontes de renda dignas por esses sonhos de dinheiro via Internet, estamos criando esses tipos de restrições. Não é só uma questão sobre agradar o público e o algoritmo ou não para quem depende disso para pagar as contas.

Enfim, eu acabei me empolgando na resposta, mas foi porque eu gostei muito mesmo dos seus comentários e da oportunidade que tive em cima do que disse de articular um pouco mais de alguns pontos que acabaram ficando mais rasos no meu textão.

Agradeço mais uma vez pela sua leitura e seu retorno, Washington. De verdade. Não só escrevi sem muitas expectativa de leitores, como também escrevi sem expectativas de receber um retorno desse tipo.

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Rodrigo Goldacker
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