O mukbang de vore do Tarrare
As pesquisas de tendências observaram que, durante a segunda metade dos anos 2020, o interesse no segmento de mukbang começou a crescer bastante especialmente entre o público mais jovem. Especialistas em mercado digital comentaram que parecia existir uma associação entre o crescimento do interesse neste tipo de conteúdo e a questão da crise climática e econômica, que coincidiu com um aumento generalizado no custo dos alimentos.
O mukbang, portanto, era um espetáculo híbrido entre o bizarro para engajar e a própria ostentação envolvida no banquete. Ano após ano, encher uma mesa de grandes quantidades de comida para comê-la de uma só vez foi sendo convertido também numa performance premium, um luxo que poucos seriam capazes de reproduzir.
O declínio generalizado dos empregos, especialmente após a automação das funções intelectuais e o crescimento da desindustrialização, também levaram parcelas cada vez maiores da população a procurar maneiras de ganhar dinheiro na Internet. E se o mukbang envolvia grande interesse, era justamente por isso um dos mercados mais saturados. Uma verdadeira guerra por atenção e engajamento entre os influenciadores do segmento levou a competição a níveis cada vez mais viscerais.
Dado este cenário, o canal de mukbang mantido por Tarrare já podia ser considerado relativamente famoso muito antes do seu vídeo mais infame. O influencer começou a crescer no vácuo deixado pela canal que anteriormente liderava o nicho, de Nikocado Avocado. Outrora dito o “rei” do mukbang, Nikocado perdeu boa parte de sua relevância a partir do final de 2024, quando revelou um processo de emagrecimento que afastou boa parte do seu público.
Foi na esteira desses eventos que Tarrare surgiu. O nome veio emprestado de um personagem histórico, já famoso na Internet pela bizarrice de seu caso — e tornado viral sobretudo a partir do vídeo a respeito de sua história produzido pelo canal Sam O’Nella Academy. O Tarrare histórico, um cidadão francês que viveu no século XVIII, deixou um marco insólito na história da humanidade por sua fome incontrolável e seu biotipo estranhamente adaptado que permitia que engolisse rolhas, pedras, animais vivos (como galinhas, gatos e cães) e até mesmo corpos humanos inteiros (coisa que costumava fazer invadindo necrotérios, chegando ao ponto de engolir um bebê em determinada ocasião).
À princípio, o influencer se inspirou na figura histórica sem necessariamente reproduzir de partida seus feitos mais repugnantes. A ideia de um canal de mukbang com alguém chamado Tarrare já era por si só boa o suficiente para que o influenciador atraísse atenção desde o começo (e a piada sobre a associação do personagem histórico ao mukbang já circulava online, quase como uma prova prévia de conceito). Mas a competição acirradíssima no mercado de atenção não permitiu que seu projeto decolasse logo de partida.
É possível resgatar do subreddit dedicado a Tarrare o primeiro post feito, em novembro de 2025, com a sugestão em tom de piada de que o canal de Tarrare devia reproduzir os feitos do Tarrare histórico para crescer. E a ideia viralizou rapidamente, tornando-se uma pressão constante ao influenciador durante boa parte do ano seguinte.
Em janeiro de 2027, o canal de Tarrare lançou uma campanha patrocinada por uma grande casa de apostas e um aplicativo de cassino. A casa de apostas era responsável por criar uma categoria de bets relacionadas ao conteúdo mukbang do canal, apostando em coisas como qual seria o próximo banquete de Tarrare e se ele conseguiria ou não comer certas coisas sem vomitar. O aplicativo de cassino fez uma skin personalizada com referências a diversos memes envolvendo o canal de Tarrare. Com o nome #MakeMukstory, a campanha era baseada em Tarrare se comprometendo a reproduzir os feitos de sua contraparte histórica na sua produção de conteúdo durante os próximos anos.
O canal de Tarrare explodiu a partir desse projeto. Até então, ele tinha conquistado cinco milhões de inscritos desde sua criação em 2025, o que já o posicionava como o maior do nicho mukbang na plataforma. Mas somente em 2027 Tarrare ganharia mais quatro milhões de seguidores, levando o total de seu canal ao impressionante número de de 9 milhões.
O MakeMukstory começou modesto, mas já com altas expectativas de até onde o influencer Tarrare teria coragem de reproduzir os feitos do Tarrare histórico. Seu vídeo engolindo uma rocha teve mais de 50 milhões de visualizações e foi o último que Tarrare teve coragem de publicar na íntegra em seu canal principal.
Tarrare temia que seu conteúdo em uma crescente exponencial rumo ao mais bizarro pudesse levar seu canal principal a ser derrubado. Isso seria particularmente preocupante dado que o mukbang era a principal fonte de renda do influencer e que, apesar dos grandes lucros, para se manter sustentável a manutenção de seu projeto envolvia também custos consideráveis. O vídeo em que Tarrare engoliu uma rocha foi bastante lucrativo, certamente, mas também eram consideráveis os riscos e foram altos os gastos com saúde privada consequentes (para remover a rocha do estômago do influenciador).
A bet que patrocinava a campanha junto a Tarrare mantinha uma operação em criptomoedas com sede nas Filipinas, país que durante a segunda metade dos anos 2020 tornou-se o principal paraíso fiscal com legislação quase inexistente para atrair servidores em operações de todo tipo que pudessem ser consideradas problemáticas. Dado esse cenário, um portal de conteúdo completo foi montado para a presença digital de Tarrare, uma mistura entre streaming ao vivo, vídeos gravados, minigames de cassino e apostas relacionadas ao universo mukbang.
Chamado de TarrareTube, o aplicativo/site se tornou a casa de todos os vídeos e streaming seguintes do projeto MakeMukstory, com somente os cortes mais inofensivos — normalmente criando tensão e sem as cenas mais viscerais — sendo publicados no canal de Tarrare com milhões de inscritos no YouTube. O escritório da TarrareTube funcionava no mesmo prédio que o do Jogo do Peixinho e o do imageboard 8kun.
No início de 2028, o vídeo de Tarrare engolindo um gato inteiro vivo — outro dos “feitos” que reproduzia do Tarrare histórico como parte de seu projeto — foi visto por noventa e cinco milhões de pessoas somente no TarrareTube. No YouTube, o vídeo mais visto a respeito não foi do Tarrare, mas sim um vídeoensaio de um youtuber que analisava e criticava o fenômeno — e que conseguiu com isso atingir 300 milhões de visualizações, ultrapassando até mesmo o maior vídeo do mesmo período lançado por MrBeast, ainda o maior canal da plataforma.
A tensão cresceu mais e mais conforme os vídeos seguintes mostraram Tarrare comendo outros animais — depois do gato foi um cachorro de médio porte, um vira-latas recolhido das ruas na capital filipina de Manila, e em seguida foi a vez de um porco. Com quase oito milhões de dólares (já convertidos da criptomoeda Tarr numa média de mercado, considerando variações que poderiam alcançar o triplo desse valor em dólares), a seção de bets do TarrareTube chegavam a 4 para 1 na aposta de que o Tarrare influencer não teria coragem de atingir os feitos mais infames de sua contraparte histórica — comer corpos humanos inteiros.
Mas Tarrare dobrou a aposta e foi além. Ao invés de comer um corpo, como tinha feito o Tarrare histórico pouco antes de morrer, o grande encerramento da campanha MakeMukstory envolveria o influenciador comendo uma pessoa viva.
Foi nesse momento que a presença digital de Tarrare explodiu. Se então seu canal já era o maior no segmento de mukbang, o encerramento visceral de sua campanha o tornou uma das celebridades mais relevantes da Internet como um todo.
Enquetes foram abertas por toda a Internet para tentar decidir quem seria a pessoa que Tarrare engoliria. Na plataforma X, uma enquete foi lançada pelo perfil do próprio Musk, com uma campanha em massa realizada por neonazistas junto a bots e uma intrincada rede de inteligência artificial envolvidos para fazer com que ganhasse a sugestão de que Tarrare devia engolir “qualquer um, desde que seja negro”. Com mais de oitenta milhões de votos, a opção proposta pelos neonazistas ganhou a enquete por uma margem apertada contra diversas outras opções, que incluíam o presidente dos Estados Unidos, o líder de uma banda sul-coreana de K-Pop, e a autora de uma série de ficções hot.
Mas por uma série de implicações legais, a pessoa escolhida foi uma mulher suíça de 23 anos com um longo histórico de dores crônicas e crises de depressão. Ela estava prestes a assinar um contrato com a Corsa, responsável pelos pods de suicídio na Suíça, quando a empresa fecho uma parceria com o TarrareTube para buscar alguém com um perfil apropriado que pudessen aparecer no vídeo que encerraria o MakeMukstory.
A moça suíça foi selecionada por três motivos.
Primeiramente, por se tratar de alguém que já estava em vias de morrer, o TarrareTube pretendia afastar algumas das controvérsias legais que poderiam estar envolvidas no vídeo. Um lobby forte realizado por Tarrare e sua bet parceira já tinham conseguido alterar a legislação filipina para permitir que homicídios consensuais fossem considerados legais (afinal, o que Tarrare faria ainda se enquadraria de alguma forma como um assassinato). O movimento jurídico foi facilitado justamente pela ideia neoliberal de consensualidade — e o simbolismo envolvido na colaboração com a Corsa reforçava essa noção.
Em segundo lugar, a mulher escolhida tinha uma família com sérios problemas financeiras e teria já dificuldades para custear a própria eutanásia com o pod da Corsa. Com o acordo, ela não só morreria sem ter que pagar, como receberia um acordo multimilionário que seria mais do que suficiente para prover a seus pais doentes e a seu filho com necessidades especiais.
E finalmente, o biotipo e o gênero foram fatores determinantes. Tarrare tinha 1,85cm de altura e pesava 178kg (faltando pouco para que ele ultrapasse também no peso a seu principal antecessor, Nikocado, que tinha alcançado a marca dos 186kg). Enquanto isso, a suíça escolhida tinha 1,45cm de altura e pesava meros 39kg, com um IMC de 18.55 que a deixava na linha tênue do “normal” logo acima da classificação de magreza. Os seguidores de Tarrare observaram que o influenciador já tinha ingerido porcos mais pesados do que isso. Além disso, o próprio fato de ser uma mulher agrava ao segmento masculinista, parte importante da fanbase do MakeMukstory. E finalmente, as feições joviais da mulher a aproximavam um pouco de uma criança, o que remetia e permitia uma associação indireta ao feito mais terrível do Tarrare histórico que, segundo relatos médicos, chegou a engolir um bebê.
O streaming com Tarrare e a moça suíça foi transmitido em janeiro de 2030. Intitulado “THE GREAT MUK VORE”, a transmissão foi acompanhada por mais de 5 milhões de pessoas, o que colocou o encerramento ao projeto MakeMukstory no top 15 das transmissões mais assistidas de todos os tempos. No Youtube, os cortes a respeito do evento também trouxeram grandes resultados, com Tarrare terminando a semana como o terceiro assunto mais comentado — acima das filmagens do último ataque de drones de guerra numa grande capital e também de um tiroteio num debate político na Argentina que deixou seis mortos e quinze feridos. Acima de Tarrare ficou o lançamento do clipe de um novo single de Taylor Swift e um vídeo de MrBeast com uma campanha de construção de casas acima do nível do mar para os afetados pelos alagamentos em Jacarta.
A suíça foi engolida de fato viva, nua e somente com tarjas para esconder seus mamilos e partes íntimas (agradando aos patrocinadores do evento e impedindo que o vídeo e seus cortes fosse censurado em determinadas redes sociais). Ela passou a maior parte do vídeo quieta e chorando de olhos fechados, mas os organizadores garantiram que ela não estava sedada. Tarrare a engoliu mordendo pouco e conseguiu colocá-la toda para dentro com certa facilidade, dizendo depois que tinha sido mais fácil do que engolir um dos porcos que tinha ingerido alguns meses antes. Somente quando já estava toda dentro do corpo de Tarrare que a mulher deu alguns gritos (abafados), provavelmente enquanto sufocava e finalmente falecia.
A campanha foi um grande sucesso de engajamento para Tarrare e para as empresas associadas. Num sentido publicitário, é um case interessante a ser estudado por todos aqueles interessados em marketing digital. A empresa Corsa anunciou um crescimento de mais de 140% na procura por seus pods de suicídio no trimestre da campanha e as apostas do TartarreTube movimentaram mais de cem milhões em ativos de criptomoedas. O próprio canal de Tarrare no Youtube atingiu o marco impressionante de trinta milhões de inscritos, ultrapassando todas as barreiras do que era considerado possível para um canal do segmento mukbang.
O ápice, contanto, foi seguido de uma rápida saturação. O próprio Tarrare tentou reproduzir seu engajamento com campanhas seguintes em que comia gatos, porcos, pessoas maiores e também crianças e bebês (como reação à principal crítica de seu público, que comentava que a suíça não representava fielmente ainda o feito o mais terrível que o Tarrare histórico tinha cometido). Mas começou a ultrapassar um pouco o que era interessante a seus patrocinadores que fossem vistos apoiando e nunca mais conquistou o mesmo engajamento — inclusive porque outros influenciadores do segmento mukbang logo começaram a reproduzir as mesmas categorias de produção de conteúdo. Logo, segmento de mukbang vore se estabeleceu como parte importante — e também saturada — desse mercado, trazendo competição acirrada para a proposta que à princípio tinha sido um monopólio vanguardista de Tarrare.
O influencer chegou até a lançar um perfil de conteúdo adulto (no qual contracenava sempre com moças magras, pequenas e jovens), mas perdeu oficialmente o posto de principal canal do segmento mukbang vore diante da produção massiva e automatizada feita pelo canal BestMukVoreAI, que inundou feeds ao lançar cerca de setenta vídeos por semana. Em 2035, numa guinada inesperada, Tarrare decidiu pivotar seu conteúdo para um canal de dietas e conteúdo religioso, emagrecendo mais de 115kg em um intervalo de poucos meses numa campanha associada a uma marca de remédios injetáveis de emagrecimento (principal concorrente da gigante Ozempic). Este foi o momento em que chegou mais próximo de alcançar o engajamento que seu canal teve no auge, alcançando novamente os milhões de novos inscritos e as dezenas de milhões de visualizações.
Aproveitando a oportunidade, o influencer lançou uma famosa marca de molho tártaro diet e abriu uma franquia de restaurantes. Depois disso, tornou-se um coach e eventualmente se elegeu como senador do partido neoliberal, defendendo a desregulamentação de criptomoedas e a liberdade de expressão na Internet.
