Ensaio das expectativas míticas 04

QUARTA PARTE (NOTAS FINAIS)

Rodrigo Goldacker
76 min readNov 17, 2023

Comecei a escrever este ensaio no dia 28 de dezembro de 2022 e agora estou prestes a finalizá-lo na primeira semana de agosto de 2023. Neste longo período, existiram certas fases em que escrevi mais e outras nas quais escrevi menos, com os principais intervalos acontecendo a separar cada uma das três partes principais do texto até aqui, e com algumas pausas mais eventuais também para fazer revisões básicas naquilo escrito antes. Ainda assim, como tanta coisa foi dita, há comentários que eu gostaria de adicionar como ressalvas ou avisos, questões que não consegui integrar direito no encadeamento dos assuntos como apareceram no desenvolvimento até agora. Estas notas finais contém, portanto, algumas dessas ressalvas mais rápidas, quase como detalhes para complementar alguns argumentos, ou para antecipar algumas das críticas possíveis.

Além disso, existem alguns assuntos que simplesmente desisti de me aprofundar porque esse ensaio ficou muito maior do que deveria ter sido originalmente e porque precisei viabilizar o que era prioritário, ou correria o risco de não terminar nunca. No caso dessas notas, decidi reuni-las quase como esboços para evoluções futuras em assuntos que acreditei que meu próprio conhecimento ainda é superficial demais para aprofundamento, ou em assuntos que acreditei que ficariam complexos e abstratos demais para tentar abordar por agora.

E além disso tudo, nessas notas também pretendo apresentar algumas reflexões finais, questões que não eram suficientes para desenvolver um capítulo inteiro, e outros pequenos comentários de rodapé para o ensaio como um todo. Portanto, já deixo avisado que essa quarta parte do ensaio vai ser mais curta, espero, e mais bagunçada na sua organização: os tópicos não conversam uns com os outros em temática e nem em tamanho. São reflexões soltas, sem coesão entre capítulos, só para aquietar minha vontade de abordar absolutamente tudo nesse livro que eu gostaria de tratar, mesmo que só um cadinho.

Imagino que não exista tanto segredo na adição de uma seção de notas antes de fechar um livro, então penso que esta introdução está mais do que suficiente. Acho que estou mais direto e sucinto também como efeito da ansiedade por terminar logo, o que pode contribuir para melhorar um pouco a leitura de quem está me acompanhado até aqui e que já sofreu com minhas empolgações prolixas em momentos anteriores.

Vamos lá:

Photo by National Cancer Institute on Unsplash

Nem todos os amálgamas são contraditórios

Esta é uma ressalva rápida sobretudo à segunda parte deste ensaio, especificamente quando eu me aprofundei nas dinâmicas e nos processos dos amálgamas, usando principalmente de exemplos dos amálgamas políticos para descrever cada coisa.

Na ocasião da escrita daquela parte do texto, eu me foquei muito em explicar e trabalhar a situação dos amálgamas em que há contradições, como quando dois discursos contraditórios com políticas econômicas diferentes são unidos num amálgama associativo, por exemplo, do que se entende como “direita” (o caso dos neoliberais e dos antiglobalistas), seja como um endosso retórico estratégico para outras questões em que há concordância, seja por uma estratégia frente a um adversário comum. O que deixei de mencionar, e vale a ressalva, é que nem sempre esses amálgamas precisam ter elementos contraditórios quando estabelecem seu endossos ou alianças estratégicas. É possível que o façam, e foquei nesses casos para demonstrar exatamente que os amálgamas não se formam apenas por similaridades retóricas ou semelhanças entre visões de mundo, mas é possível também que amálgamas sejam coerentes como narrativas que, se não complementares, faz sentido que tenham se amalgamado sobre um determinado grande conjunto mítico e narrativo. Faz sentido, por exemplo, que a defesa dos direitos de diversidade sexual tenha se amalgamado à luta antirracista, quando estas duas lutas diferentes perceberam na opressão normativa da sociedade vigente um adversário em comum. A interseccionalidade, como proposta nas esquerdas progressistas e nos movimentos sociais, me parece o exemplo mais destacado de uma defesa autoconsciente de um determinado amálgama que faz sentido tanto estratégico quanto em situação de coerência de propósitos — e essa coesão do movimento e a autoconsciência do amalgama são parte da razão para a interseccionalidade incomodar e preocupar tanto a seus adversários políticos.

Nem todos os amálgamas são tão autoconscientes, articulados e bem-resolvidos quanto aquele que existe no estudo da interseccionalidade, vale lembrar, mas mesmo assim é importante destacar que o fato de que amálgamas podem ser mais contraditórios, incoerentes e/ou menos articulados não quer dizer que exista alguma exigência absoluta para que eles sejam assim sempre. O critério por amálgamas mais autoconscientes e críticos de suas alianças, inclusive, é importante para a discussão política como um todo e é uma pedra no sapato dos jogos de poder político que estabelecem amálgamas não por coerência retórica, mas por conveniência política.

Photo by Luan de Oliveira Silva on Unsplash

Sobre psicopatas e militares

Esta é uma reflexão solta que quero trazer a partir de dois exemplos sobre os quais já pensei bastante, no que diz respeito à diferença entre uma estabilidade e um conforto na esfera das expectativas míticas de alívio terapêutico, frente a uma estabilidade e um conforto mais concretos, decorrentes de um discurso desmistificado.

O primeiro dos exemplos é o dos psicopatas, mais especificamente no caso dos assassinos em série.

De certa forma, o conceito do psicopata é uma invenção recentíssima na história humana, visto que a psicologia e a psiquiatria são áreas de estudo bastante recentes. Durante um desproporcionalmente maior período de existência das sociedades humanas, não se soube definir o que é um psicopata. Embora hoje em dia a cultura massificada e o entretenimento ainda enturvem bastante o conceito, existe menos controvérsia nas discussões técnicas sobre os critérios mais básicos que se associam ao termo. Um psicopata, via de regra, é alguém que, por uma mistura de biologia do cérebro e/ou traumas, é incapaz de sentir empatia e pode ou não assumir comportamentos violentos, como o de matar. Psicopatas são manipuladores, mentirosos, e sabem dissimular sua psicopatia para construir máscaras sociais que utilizam na interação com outras pessoas para atingir determinados objetivos.

A ideia de assassinos em série foi construída por um trabalho conjunto entre teoria acadêmica e investigação de crimes, já no século vinte, a partir de alguns poucos casos de assassinos seriais já presos até então. A partir do novo conceito e os estudos de padrões de comportamento e de ação em entrevistas com os presos por crimes desse tipo, foi possível descobrir cada vez mais assassinos em série atuando em todo o território dos Estados Unidos. Foram estudos como esses numa mistura de criminologia com psicologia que conseguiram, por exemplo, estabelecer recortes como os que escutei uma professora da minha esposa repetir algumas vezes em aulas remotas de uma faculdade de psicologia: a ideia de que nem todo o psicopata mata, e que nem todo assassino serial é necessariamente psicopata. Esse enriquecimento das definições, esses debates nas minúcias dos critérios de diferenciação, é coisa bem nova.

Pela primeira vez na história, portanto, a partir do século vinte os psicopatas e os assassinos em série saíram das sombras e foram para o imaginário coletivo. Pela primeira vez na história, os estudos e conceitos disseminados a respeito de como se comportam tornaram a vida desses psicopatas e assassinos em série um pouquinho mais difícil, com chances de que sejam identificados e pegos.

O ganho de consciência a respeito da existência de assassinos em série e psicopatas no geral foi importante para nossas sociedades se tornarem menos vulneráveis. Jogando no Google, qualquer um pode encontrar uma lista de “comportamentos de um psicopata” para tentar decidir se os critérios se enquadram, por exemplo, num namorado que esteja extorquindo dinheiro e fazendo ameaças de violência física. Num sentido prático, mais assassinos foram impedidos de fazerem mais vítimas graças aos estudos e a popularização dos conceitos. Materialmente, o mundo é um lugar um pouquinho só mais seguro, agora que sabemos o que são psicopatas e assassinos seriais, em comparação com o que era o mundo quando éramos ignorantes a respeito.

Mas não é assim que nos sentimos sobre isso. Se materialmente a consciência pode ter feito do mundo um lugar melhor, a chegada dos psicopatas e dos assassinos seriais ao nosso imaginário popular piorou muitíssimo a nossa vida mental. Eu cresci frequentando bancas e livrarias e foram incontáveis as vezes que vi livros e revistas aproveitando da pauta apelativa e sensacionalista dos psicopatas com ideias como “saiba como reconhecer o psicopata perto de você”, “descubra porque psicopatas estão sempre em posições de liderança”, “será que seu vizinho é um seria killer?” e outras variações. Além disso, sabemos hoje com detalhes algumas das piores atrocidades que seres humanos podem fazer no mundo, como algumas das torturas mais terríveis e desumanas que certos assassinos seriais cometeram com suas vítimas.

O risco de ser vítima de um psicopata ou de um assassino serial era algo que ninguém se sentia ansioso por saber que pode acontecer, antes que soubéssemos que esse risco e os conceitos existem. Até então, só quem se tornasse efetivamente a vítima dessas pessoas teria que sofrer. Hoje, para tentar evitar o sofrimento com estratégias mais refinadas de contenção de riscos, sofremos todos coletivamente de uma paranoia coletiva.

Em outras palavras, uma pessoa comum antes, se não fosse vítima de um psicopata ou de um assassino em série, poderia viver uma vida melhor por não saber que esta possibilidade existe. Hoje, uma pessoa comum necessariamente vive um pouco pior por conhecer esse risco, por ter que temer isso para si e sua família como possibilidade real, mesmo que remota.

Dei o exemplo bobo do psicopata e do assassino em série porque sempre reflito nos termos desse caso em particular, mas a mesma coisa vale para várias outras situações: saber mais sobre o câncer, sobre como qualquer um pode desenvolver tumores a qualquer momento a partir das mais básicas das atividades, como tomar sol ou comer determinados alimentos, é importante para menos pessoas morrerem de câncer, mas há um sacrifício implícito na consciência, na precaução — e o sacrifício feito é, normalmente, de algum alívio terapêutico mítico que uma visão mais segura e simplificada do mundo até então fornecia.

Para além dos casos em que uma realidade dura ficou desconhecida simplesmente por não ter sido descoberta ainda, existe um efeito semelhante no caso de realidades que foram propositalmente mantidas desconhecidas por censura. E daí chegamos ao segundo exemplo que eu gostaria de trazer.

Imagine que você é um adulto na casa dos trinta e poucos anos que mora na cidade de São Paulo durante o auge da ditadura militar. De manhã, você acordou e foi trabalhar ouvindo o rádio, onde as notícias eram todas bastante positivas. Se você viu anúncios na rua, ou se viu televisão no almoço, você foi embebido numa visão de mundo em que o Brasil era um país justo, onde tudo estava se tornando melhor, em que a criminalidade estava acabando, a meritocracia era possível, e um bom governo militar estava fazendo tudo do melhor jeito possível para arrumar o país e nos proteger da ameaça comunista.

Com toda essa positividade ao seu redor, com esse espírito de crescimento e essa motivação do governo para o esforço do trabalho, você talvez tenha trabalhado mais e melhor, pelas esperanças de contribuir para seu glorioso país e para o seu futuro. Você talvez até estude muito, depois do trabalho, porque acredita que estudar muito é o caminho para crescer na vida num país onde o estudo é tão valorizado.

Você pode ter voltado para casa, depois de tanto trabalhar e estudar, ter dado um beijinho na sua esposa e ter relaxado assistindo algum filme bobo, ou algum noticiário que também não te desafiou em nada. Pode ter sido um dia ótimo para você, justamente, pela ignorância: porque a mídia era controlada, você não saberia que talvez naquele mesmo dia os militares mataram mais jovens depois de sessões de tortura e os enterraram em valas comuns escondidas, que a corrupção estava comendo solta nos altos escalões do governo, que a economia estava prestes a implodir, que a criminalidade seguia na mesma, que a possibilidade de ascensão social no país estava se deteriorando, nem que a desigualdade estava aumentando.

Tudo isso seguiria verdade, mas você, sem saber de nada disso, dormiria feliz.

Hoje em dia, quando eu vejo pessoas com nostalgia da ditadura, eu penso um pouco que, olhando sob essa perspectiva, a nostalgia faz sentido. Não há um dia sequer numa sociedade um pouco mais livre em que uma atrocidade divulgada pelos jornais não nos assombre, em que uma nova maracutaia dos políticos não nos deixe indignados, em que um economista não diga algo que nos deixe ansiosos sobre o futuro. O estudo mais técnico e honesto sobre o Brasil divulga hoje que o país não é justo, que é desigual, que a ascensão social é um sonho irrealizável para muitos, e que se você está na base da cadeia, talvez estudar e trabalhar muito não seja o suficiente para garantir dignidade para si e sua família. Hoje as informações circulam e, porque circulam, incomodam. Talvez, diante de uma versão mais crua do Brasil, você se sinta menos motivado em trabalhar duro, sabendo que isso contribui mais pra a mais valia do seu chefe do que para seu futuro, ou se sinta menos motivado a estudar bastante para crescer na vida, sabendo que não é necessariamente verdade no Brasil que mais estudos tragam mais dinheiro.

Quando as pessoas que viveram a ditadura militar dizem que se sentiam mais seguras na época, ou que o país era melhor, eu imagino que seja um pouco disso que elas sintam. Se elas, especificamente, eram mais felizes naquele momento porque tanto lhes era impossibilitado de conhecer, talvez suas vidas seguissem mais tranquilas. Se não fossem especificamente algum dos jovens torturados e enterrados depois em valas, algum exilado ou familiares destas vítimas, os brasileiros da ditadura podiam viver mais leves e contentes, enquanto hoje em dia precisamos compartilhar todos do incômodo de saber que esses assassinatos políticos aconteceram, e de outras maneiras acontecem até hoje, no nosso Brasil.

Obviamente, não contei tudo isso para defender que não exista conscientização sobre câncer, que não se fale sobre psicopatia, ou que se estabeleça uma nova ditadura com censuras. Mas acho que análises desse tipo são importantes para entender melhor o apelo mítico dessas narrativas que, propositalmente ou não mais ignorantes de certas evidências, são atraentes justamente porque nos protegem de certas coisas e constroem uma imagem de mundo que parece mais positiva.

Como dissemos algumas vezes durante o ensaio, estabelecer conforto e motivação são algumas das funções dos mitos — e para essas funções, a narrativa censurada do governo ditatorial é mais eficiente do que a abertura ao dissenso de uma democracia. Como vimos ainda, a evidência e a abertura ao que é mais secular são somente critérios possíveis, não essenciais, de um discurso mítico por si. O apelo mítico, portanto, necessariamente precisa de regulação para que as evidências sejam obrigatoriamente aceitas em certas discussões, como as que são veiculadas na mídia ou na academia, mesmo quando seria mais confortável ignorá-las. É injusto esperar que, somente no sentido de sua persuasão e conforto mítico, uma narrativa que leva em conta mais evidências desconfortáveis seja capaz de competir com outra que ignora tais evidências justamente para construir mais conforto.

A tentação de um mundo mais simples e com menos problemas, evidentemente, vai sempre existir. Sempre vai existir alguém que, porque não suporta acreditar que o câncer existe como um fenômeno do mundo, vai se render a um curandeiro, ou a algo como a Ciência Cristã, para dizer que pensamento positivo, orações ou pseudociências são capazes de vencer tumores ou, mais ainda, que esses tumores nem existem, são só ilusão.

Novamente, a perspectiva dessas dinâmicas míticas contribui e muito até mesmo para a discussão com os negacionistas. Por exemplo, pode ser mais viável atacar a visão de mundo de um nostálgico da ditadura militar se levarmos tudo isso que comentamos em consideração: seja ao optarmos por apresentar evidências que desmontem especificamente o “dia perfeito” do passado, mostrando especificamente como as censuras impediram certas informações de circularem, seja antes disso procurando outras narrativas menos perigosas do que a apologia à ditadura militar para tentar oferecer soluções graduais, como tentar estabelecer um conforto, mesmo que simplificado e rudimentar, para outros aspectos do passado ou do presente.

Nesse sentido dá para tentar argumentar que embora a ascensão social no Brasil seja ainda ruim, talvez seja melhor hoje do que foi na ditadura, mesmo que na época não parecesse, e que talvez faça mais sentido trabalhar hoje do que fazia naquele tempo. Ou então, se desistirmos de uma discussão verdadeiramente lógica, dá pra tentar deslocar a nostalgia para algum aforismo como “não era a ditadura, eram as pessoas do passado que eram melhores mesmo”, o que, se segue incorreto, pelo menos estabelece uma nostalgia mais inofensiva, ainda com conforto semelhante — e entregando talvez até mais autoestima, se quem ouve for essa pessoa do passado que pode se sentir superior.

Mas é importante ressaltar que mesmo estas ideias são um pouco precárias e provisórias, tentando estabelecer mais direcionamentos para uma desconstrução gradual de certas negações, do que uma solução definitiva. Disso, só acho importante destacar a metodologia e o propósito: ao invés de se indignar com o equívoco e confrontá-lo exclusivamente no campo dos fatos e ideias, existe ao menos como possibilidade este outro caminho, talvez mais eficiente, de tentar construir também uma alternativa emocional, mesmo se ela for menos verdadeira. O apego com a verdade total, frente a um mito destrutivo, me parece algo a abandonar para focar na postura de pragmatismo mítico que mencionamos durante o ensaio, em que se tenta pelo menos escolher o menor dos males para facilitar parcerias. Se algum vovô estiver disposto a acreditar que o Brasil dos anos 70 era “melhor” devido aos dons mágicos de sua geração especificamente, eu prefiro que ele acredite nisso do que na nostalgia do governo militar. E especialmente se ele for resistente a abandonar os dois equívocos, e não vá simplesmente abandonar a apologia à ditadura para uma visão lúcida, então a “nostalgia da geração”, como uma coisa difusa que daria para explorar bem em publicidade e entretenimento, me parece uma ótima opção para ir mudando seu foco aos poucos.

E para fechar esta nota, queria deixar ainda uma última reflexão sobre o grande dilema do mito frente à motivação. É muito difícil construir motivação sem um fundo mítico, ainda mais em larga escala, ainda mais para projetos que, via de regra, vão ser mais ineficientes do que se é necessário acreditar que serão para ter o esforço necessário de empregá-los.

Eu fui um jovem sonhador que acreditava que os estudos me levariam muito mais longe, e muito mais rapidamente, do que me levaram. Essa motivação em grandes retornos futuros foi o que me motivou a estudar da maneira aprofundada que estudei em certas fases da minha vida. Meus estudos não foram inúteis, longe disso: trouxeram-me a uma posição de certo conforto e foi melhor ter estudado do que teria sido não fazê-lo. Mas se alguém tentasse me motivar lucidamente quando era adolescente a estudar muito dando como promessa a realidade que tenho hoje, eu não acho que isso teria sido suficiente para ter me feito estudar como estudei. Para a adolescente que fui, a vida que tenho hoje seria medíocre demais para justificar tanto esforço. E sem o sonho como gasolina para impulsionar o movimento até pelo menos essa realidade medíocre, provavelmente eu estaria numa situação pior ainda.

O sonho é, portanto, uma espécie de equívoco mítico necessário. Os únicos interessados em desconstruir o sonho completamente são aqueles que acreditam que a frustração absoluta de uma visão lúcida dos fatos possa alavancar uma revolução — e eu honestamente não sei até onde acredito que esse é o caminho. O “não sei” dessa última frase não foi retórico, foi mesmo honesto, eu ainda não estudei e pensei sobre isso o suficiente para decidir.

Fato é que, numa escola de periferia do Brasil, vender o sonho de que os estudos serão capazes de levar os quarenta alunos de uma turma qualquer a uma vida digna, caso eles se esforcem muito, pode ser mais eficiente para fazer com que eles estudem, frente a contar a verdade de que mesmo com muito estudo, provavelmente poucos ou nenhum deles vai melhorar de vida dependendo só de seus esforços, desconsiderando as circunstâncias da desigualdade no país. Fato também é que, numa escola em que todos os alunos sejam convencidos facilmente demais dessa historinha do “vencer pelos estudos”, não vai haver a pressão coletiva para uma melhora material das condições de ascensão meritocrática e de redução das desigualdades, o que seria muito conveniente para o governo ficar mais preguiçoso.

De certa forma, talvez seja menos mitificada e mais próxima da verdade a visão de mundo de um jovem periférico que, desesperançoso e desiludido de que o sistema educacional precário e o sistema injusto do país podem levá-lo a enriquecer, decida sair da escola e se envolver com o crime organizado. É talvez até verdade que, sob uma perspectiva desiludida e lógica, em certos lugares do Brasil seja mais viável, mesmo que mais perigoso, ascender socialmente pelo crime do que pelo esforço honesto. A desilusão simplesmente não oferece esperança, nem alternativa, e o Brasil já é cheio de jovens sem perspectiva de futuro e nem esperanças de que essas perspectivas existem. A mudança material que transforma essa realidade e viabiliza o sonho é fundamental, sim, mas essa mudança também depende de que o sonho siga vivo. Uma geração precisa primeiro ir à escola, confiando e tendo esperanças de que isso vai valer a pena, antes que se possa oferecer um caminho justo para que os estudos transformem a vida dessa geração. E, de novo, ao mesmo tempo não basta só comprar o sonho, sem a mudança material envolvida. Uma geração que compre profunda e ingenuamente o sonho dos estudos, mas para a qual não se ofereçam caminhos justos depois, vai no máximo manter a estagnação da sua precariedade, se não servir para influenciar a geração seguinte a desistir do caminho dos estudos de vez.

Existe um equilíbrio complicado aí, um meio termo difícil de atender entre narrativas míticas suficientes para agir como base motivacional, frente a um contato com a realidade que impeça que a motivação estabeleça uma alienação individualista capaz de castrar o esforço coletivo. Encontrar esse ponto perfeito, em que não se destrói o coletivo pela motivação do sonho individual, e em que não se destrói a motivação do sonho individual pelo coletivo, é um dos maiores desafios de pensar na relação entre fatos e mitos em qualquer contexto, para qualquer sociedade.

Racionalmente, faz todo sentido considerar que aspectos coletivos influenciam o individual, mas não pensamos só racionalmente — de novo, demandas emocionais mais urgentes, demandas de sonhos mais diretos do que as realidades abstratas, complexas e de longo prazo das lutas coletivas, são a base do que se constrói como os discursos míticos palatáveis vendidos pelo status quo. Procurar uma alternativa emocional para essas urgências, que dê conforto tanto quanto razão, é fundamental para qualquer projeto que busque uma transformação sem ruptura, se algo assim for possível. É importante concorrer com as narrativas vigentes não só na lógica e nas complexidades, mas também no conforto emocional e na alternativa de visões mais simplistas, para quem precisar delas. E mesmo um movimento popular engajado depende tanto quanto, se não muito mais, de esperanças mitificadas que gerem paixão e motivação, do que apenas de evidências puras desconcertantes e incômodas.

“Resolver” a necessidade por conforto emocional, ou por visões simplistas, depende de um processo longo demais e que depende de uma desigualdade muito menor do que aquela que já existe. É um processo que depende ainda de um discurso menos alienado do que aquele que já circula. Só assim, com a urgência material resolvida, é que dá para começar a pensar no luxo de negar demandas, de exigir que pessoas deixem de construir conforto a partir de mitos. Até lá, estabilidade vai continuar dependendo de considerar esse desejo pelo sonho, pelo mítico, e atendê-lo minimamente — e qualquer um que quiser efetuar mudanças vai precisar ser competente em entregar (ou ao menos não antagonizar) tais mitos e sua potência de esperança.

Os penduricalhos associativos de um pedófilo

Photo by Gemma Evans on Unsplash

Esta é outra reflexão solta, semelhante à anterior no sentido em que usa de algumas ideias que discutimos ao longo deste ensaio para tentar oferecer algumas leituras aprofundadas sobre um determinado evento. Nesse caso, porém, é um evento em particular que eu gostaria de abordar, um caso real e recente do Brasil que serve para demonstrar particularmente bem pelo menos duas coisas: primeiro, como os amálgamas associativos se aproveitam retoricamente de tragédias; segundo, como os “indícios” que parecem vinculados à identidade podem ser manipulados.

Vamos então, resumidamente, ao caso: em junho de 2023, um homem chamado Daniel Moraes Bittar foi preso em flagrante em Brasília por sequestrar uma criança com a intenção de usá-la como escrava sexual. A menina foi levada para o apartamento dele dopada, dentro de uma mala, e foi encontrada algemada numa cama. O caso é perturbador por si só, mas o que fez essa situação cair nas graças de um certo uso político foi a filiação política do pedófilo em questão, que era declaradamente petista.

Durante as semanas e meses seguintes, a história de Bittar foi explorada nas redes bolsonaristas com um único propósito: explicitar a associação dele com a esquerda e, no geral, para aproveitar dos atos de um indivíduo em particular para “sujar” a reputação de um amálgama inteiro. Poucas coisas poderiam conversar melhor com as narrativas conspiratórias de um grupo radical do que um pedófilo que esteja associado ao amálgama oposto.

A estratégia não é exclusiva desse caso e vários bolsonaristas aproveitaram a “oportunidade” para comparar a cobertura do caso de Bittar a um caso que aconteceu meses antes, no qual dois homens bolsonaristas mataram várias pessoas em um bar devido a um desentendimento por um jogo de sinuca.

No que diz respeito às associações e aos prejuízos aos amálgamas, realmente há pouca diferença, embora a discussão dos homens na sinuca fosse mais apropriada de se realizar em questões políticas porque, afinal, a pauta armamentista era importante ao grupo político associado — com talvez um massacre por um motivo banal como um jogo de sinuca servindo melhor do que qualquer outra coisa como argumento contrário à liberação total das armas. Em todo caso, de forma semelhante ao que aconteceu quando portais escolheram ou não chamar os atiradores desse caso do bar de “bolsonaristas”, a depender de seus vieses, também dessa vez alguns portais aproveitaram ou não a “oportunidade” de estampar nos títulos de suas matérias algo como a alcunha “pedófilo petista”.

O que esse parágrafo que você acabou pode ter deixado claro, e talvez até te incomodado, é que essa discussão toda diz muito pouco sobre o fato concreto de um pedófilo ter sequestrado uma criança: o fato vira fato político, veiculado e exposto por sua potência retórica e, reforço, pelo dano associativo a um amálgama que ele permite. Se o pedófilo fosse bolsonarista, certamente haveria quem na esquerda fosse acabar cedendo à mesma tentação de “aproveitar” do caso para associá-lo ao amálgama da direita que gostaria de criticar. Diante de qualquer tragédia que aconteça, é sempre comum que nas redes sociais uma das primeiras coisas que aconteça seja uma pesquisa para tentar descobrir qual era a posição política do responsável. Toda tragédia é uma “oportunidade” para uma generalização retórica das mais baixas.

Para uma direita desarticulada e em crise como a que temos em 2023, algo como um “pedófilo petista” é atraente demais para se deixar passar — e foram os bolsonaristas os últimos a deixarem o assunto morrer. Quando estou escrevendo isso, na metade de agosto, as dez últimas menções a Bittar no que era o Twitter (e agora chama X) são todas de pessoas de direita destacando sobretudo fotos de Bittar em comícios petistas durante as eleições.

Esse uso dos amálgamas associativos, e do exemplo de caso para tentar prejudicar o amálgama como um todo, é algo que acredito que já detalhamos suficientemente nesse ensaio e que também acredito que mesmo os mais leigos percebam acontecer em algum grau. Ainda assim, esse nível de leitura é um tanto quanto superficial e não explica sozinho o motivo para que eu esteja escrevendo sobre esse caso em particular.

Quando as redes sociais de Bittar foram descobertas, não se descobriu somente que ele era petista: além disso, Bittar se apresentava nas redes sociais como um ativista contra a pedofilia, fazia parte de um grupo de voluntários que ia à ala infantil de hospitais para contar histórias, escrevia poesias, compartilhava as leituras que estava fazendo e conseguia, no geral, manter uma imagem pública de alguém progressista, culto e, talvez mais importante de tudo, inofensivo. O caso de Bittar foi um choque público mais geral, para além da oportunidade que trouxe aos bolsonaristas, justamente porque existia uma contradição e um contraste tão grandes entre quem Bittar conseguia se apresentar sendo e quem ele era de fato.

No começo desse ensaio, usei do exemplo de Hitler para dar uma ideia do que seria um “Outro absoluto”, em estado de divórcio completo da identificação e de repugnância para além de qualquer diálogo, alguém que qualquer um tentaria afastar de qualquer associação e que, por isso mesmo, teria uso político fácil ao tentar ferir adversários sugerindo que qualquer associação existisse. Ao lado de Hitler, existe no imaginário popular outra imagem tão repugnante e desumanizada quanto, acredito que até mais: esta do pedófilo. Talvez a única coisa tão conveniente para os bolsonaristas quando o surgimento de um pedófilo petista seria se Hitler, retornando do túmulo, garantisse que agora se sente de esquerda e vota em Lula.

Existe toda uma discussão, que não cabe nesse ensaio porque não tenho a profundidade necessária para fazê-lo, sobre o quanto a imagem superficial do pedófilo no senso comum é ou não correta tecnicamente para a psicologia e a psiquiatria. Por aqui, é suficiente dizer que a imagem costuma ser esta, de uma desumanização total ou quase total, de um estado de Outro em situação de repugnância profunda. Escolho focar nessa imagem porque é justamente contrastada a ela que qualquer coisa que um pedófilo possa ser vai incomodar, porque sempre existirão associações possíveis.

Para além de comentar o petismo, outros comentários comuns nas redes sociais de Bittar diziam respeito justamente à sua leitura e escrita. Cheguei a encontrar comentários que, de certa forma, associavam a poesia como um todo e até a leitura como atos que, se não garantiam, ao menos serviam como indícios de “pessoas ruins” como Bittar. Afinal, se o pedófilo é construído como o maior dos vilões, e se este pedófilo lê, então a atividade de leitura precisa ser também questionada em seu potencial de ser vil. Se este pedófilo escreve poesia, talvez a própria poesia tenha algo de terrível.

Estas figuras de desumanização última aproveitam-se do fato de que tentamos afastá-las de nossa associações o máximo possível. Ficamos surpresos quando um pedófilo é descoberto e não equivale ao que esperávamos que ele fosse porque, na verdade, não esperávamos que um pedófilo pudesse ser, ou parecer ser, nada para além de ser pedófilo: seria mais confortável para nossas associações míticas se pudéssemos manter essas figuras de repugnância o mais distante possível de nós, sem compartilharmos com elas nenhuma característica ou interesse. Eu, como alguém que gosta de poesias e as escreve, ficaria mais confortável se Bittar detestasse poesia, ao invés de valorizá-la e até escrever as suas.

O caso de Bittar me fascinou e incomodou justamente porque haviam várias associações a ele que me deixavam inquieto. Como eu, Bittar era um homem branco com gosto por leitura e produção de poesias e contos; suas “opiniões” pareciam minimamente lúcidas ao comentar questões políticas e ao criticar inclusive a pedofilia. Para piorar, no meu caso em particular havia até mesmo um vínculo a uma memória emocional: Bittar morava num apartamento em Brasília num bairro que parecia muito com o pedaço de Brasília onde passei várias vezes minhas férias de infância quando ia visitar meu avô. O fato dele ser de Brasília, de frequentar o círculo cultural de Brasília em coisas como aulas de teatro, tudo isso fez Bittar servir para “sujar” um cenário querido de muitas memórias minhas. Se eu tivesse que explicar, seria quase como descobrir que um assassinato horrível aconteceu na casa onde se passou a infância.

Mas para além disso tudo, o caso trazia uma importante lição, que foi inclusive o que me levou a escrever esta nota em particular: até onde sabemos, com exceção na hipocrisia sobre o ativismo da pedofilia, é impossível ter certeza do quanto ou não a imagem pública de Bittar fosse honesta ou performática.

Talvez ele autenticamente gostasse, por exemplo, das poesias, e se for esse o caso há um grande dilema que se constrói intuitivamente, entre desumanizar um pouco as poesias para aproximá-las de Bittar, ou de humanizar um pouco Bittar para aproximá-lo das poesias. É importante destacar que esse dilema acontece na dinâmica de operação mítica, mais do que nos processos técnicos de uma análise lógica, mas ainda assim é o tipo de dilema que uma associação do tipo acaba permitindo.

Existe, porém, outra possibilidade: aquela em que mesmo o gosto por poesias era inautêntico e tudo em Bittar, ou a maior parte dele, acabasse construído artificialmente como estratégia para estabelecer sua imagem social. Nesse caso, o esvaziamento da poesia e de qualquer ato é maior ainda: ao invés de serem esses grandes penduricalhos associativos que ajudam a construir a opinião que podemos ter de alguém, todas essas características retornam ao seu estado de soltura, de absoluta falta de coesão. Então, é a ciência de que há um equívoco na tendência de tentar agrupá-las que permitiria a pessoas como Bittar aproveitarem-se de nossos preconceitos e nossas vontades associativas míticas para assim construírem uma imagem social “inofensiva”.

Porque este é um caso real em isolado para o qual ainda há muito em aberto, quero extrapolar Bittar em específico, que pode ser psicopata ou não e pode ou não gostar de poesia, para pensar num exemplo de alguém que seja certeiramente psicopata e que certeiramente não goste de poesia, nem de qualquer coisa, mas que possa usar dessas coisas todas para estabelecer uma imagem pública.

Ser de direita ou ser de esquerda, gostar de poesias ou não, ser ou não ativista contra a pedofilia: via de regra, qualquer uma dessas escolhas não quer dizer nada sobre alguém. Mas não é assim que nossas mentes funcionam: agrupamos essas características em amálgamas, estabelecemos associações, criamos estereótipos, preconceitos, vieses. Tentamos observar estas características como subprodutos do que uma pessoa de fato é, como dicas, indícios ou pistas que apontam para a realidade profunda daquela pessoa.

Criamos aproximações e nos identificamos quando as características de alguém são semelhantes às nossas, julgando que isso deve querer dizer que, se temos subprodutos semelhantes, nossa subjetividade interna deve ser semelhante também. Assim, para alguém de esquerda, que gosta de poesias, que ache que ser ativista contra a pedofilia é algo bom a ser feito, talvez ver um terceiro que reúne todas essas características sirva para estabelecer uma ilusão de identificação, uma situação de perceber-se no outro. Se eu gosto de poesias e você gosta de poesias, isso parece apontar para uma semelhança em quem somos. Quando tentamos explicar que nos achamos parecidos a alguém, normalmente listamos esses penduricalhos associativos: ele gosta das mesmas músicas que eu, o livro favorito dele é o mesmo que o meu, nós dois amamos comida japonesa, etc.

É desse tipo de equívoco que um psicopata pode se aproveitar. Sem de fato se identificar com nada, um psicopata pode assumir a figura de um pastor, pai de família responsável e figura amigável e importante de sua comunidade, como fazia por exemplo o assassino em série conhecido como BTK, ciente de que esses penduricalhos associativos servem para torná-lo imperceptível no meio dos comuns. São características reunidas e simuladas para apontar de forma manipulada para uma determinada profundeza, um ser que geraria esses subprodutos, que não está de fato lá.

A narrativa das características de Bittar, retornando ao exemplo dele, apontava para um homem consciente, responsável, progressista, amigável… Mas essas características eram construções a partir de vieses da qual Bittar, talvez conscientemente ou não, podia se aproveitar para apontar para uma versão de si que não existia de fato. Era uma ilusão social, uma ferramenta dos significados sociais, essa versão de Bittar enquanto pessoa amigável e inofensiva, reunida a partir de uma série de características que, quando reunidas sob um viés, pareciam dar a coesão de um indivíduo que na verdade era uma ficção.

Exemplos como esses, e dos psicopatas no geral que se aproveitam dessas nossas leituras viciadas das pessoas, servem para lembrar de algo importante e que costumamos intuitivamente esquecer pelo conforto de nossas identificações: no fim das contas, todas as características que associamos para tentar construir projeções nossas ou dos outros estão sempre tão soltas, sempre tão ausentes de coesão — e é justamente por isso que podem ser manipuladas. Se ser um ativista contra a pedofilia fosse realmente uma associação em situação de lei para “ser uma boa pessoa”, um pedófilo não conseguiria, por alguma lei mágica, apresentar-se como ativista contra a pedofilia.

Os “subprodutos do eu”, essas características que tentamos vincular às nossas identificações e que nos ajudam a construir quem somos e como lemos os outros, não são subprodutos de fato: não são consequências que necessariamente estão vinculadas a uma causa do nosso ser. São, na verdade, penduricalhos, coisinhas que podemos ou não escolher apresentar para tentarmos construir certas imagens de nós mesmos a terceiros. Quem entende como os significado sociais funciona e sabe como manipulá-los pode aproveitar sempre dos achismos para se vender como quiser, se souber emular as características certas. Não há imagem que não possa ser fabricada.

Em teoria, alguém pode ser um espelho absoluto de todas ou quase todas as suas características indiciais, ser semelhante a você em todos os gostos, interesses, opiniões, maneiras de se apresentar, e na verdade ser absolutamente diferente no eu que se vincula às características. Não há nada que você possa fundamentalmente apontar como “seu”, que você percebe em si e que você identifica como uma prova do que você é, que talvez um pedófilo, ou Hitler (ou qualquer outra pessoa jogada nessa categoria do Outro absoluto monstruoso e desumanizado) não possa compartilhar contigo.

Perceber e refletir profundamente sobre isso tem duas funções importantes: a primeira de contribuir para uma diluição da barreira absoluta a separar eu e Outro nesse estado da repugnância, desconstruindo desumanizações profundas. Afinal, se o psicopata ou Hitler podem ser pessoas “de família”, gostar de poesia ou serem vegetarianos, se podem compartilhar de hábitos e comportamentos que nós temos, então isso dilui um pouco da barreira que satisfatoriamente nos mantinha divorciados dessas figuras de repúdio.

A segunda contribuição é talvez até mais importante, embora não dilua a barreira do eu e do Outro, porque relativiza e reduz a potência dos penduricalhos. Se o psicopata ou Hitler podem ser pessoas “de família”, gostar de poesia ou serem vegetarianos, ao invés disso servir para humanizar as figuras monstruosas de repugnância, talvez sirva para desconstruir a potência que estes comportamentos tinham para nos diferenciar: é a quebra do vínculo associativo, como mencionamos na longa seção dos amálgamas da segunda parte desse ensaio, quando ser algo como “vegetariano” deixa de ser suficiente para se sentir alguém bom, caso alguém considerado como ruim, feito Hitler, possa ser dito ainda como vegetariano também.

Nenhum ato em isolado, e na verdade nenhum conjunto de atos, características ou opiniões, são suficientes para construir um retrato absoluto de ninguém. Não há como adivinhar uma índole.

Quero dar um outro exemplo sobre isso, um pouco mais leve do que esses últimos: meu pai me disse, certa vez, que não faz negócios com quem leva filho criança para uma reunião porque quem costuma fazer isso são principalmente estelionatários. A linha de raciocínio do meu pai era corretíssima: estelionatários aproveitam-se dos significados positivos associados a ser pai, e à ideia de família, para parecerem identificáveis e inofensivos. Sendo meu pai também um pai, ele pode se sentir mais próximo de um homem que se apresente também nessa mesma posição. Essa tentativa de identificação forçada é um indício para meu pai porque ele aprendeu, num processo de tentativa e erro, a ficar de olho em como manipulações associativas desse tipo podem acontecer no mundo dos negócios.

Meu pai é um homem que defende a família como valor, mas é capaz de perceber que existe uma nuance a garantir que nem todas as pessoas que se apresentam como também defensoras desse valor são necessariamente honestas: o valor pode ser apresentado como emulação, como manipulação, e isso esvazia o estereótipo generalizado de que, necessariamente, se apresentar como um bom pai signifique verdadeiramente ser um bom pai, ou que mesmo ser um bom pai signifique ser bom em outras esferas da vida.

Para mim, no caso de Bittar, seria mais confortável que ele não tivesse nenhuma associação com as poesias. Mas dado que ele tem, a segunda alternativa mais confortável para mim seria a de que ele tenha uma relação desonesta com a poesia, construindo essa imagem pública pelos usos sociais do gosto literário. O pior dos cenários, para minhas associações, é um cenário em que alguém repugnante como Bittar tenha ainda uma relação profunda e honesta com as poesias, da maneira como eu sinto ter. É uma quebra de viés incômoda para mim, esta em que alguém pode ter um vínculo com a escrita artística e ainda ser uma pessoa horrível. Eu me senti pessoalmente atacado pelo caso de Bittar justamente por isso: parecia que ele estava de fato “sujando” associações e características às quais eu tinha construído apego e algum argumento de mitificação romantizada.

De novo, há algo a se aprender com as pessoas horríveis e com as relações que elas possam ter a coisas com as quais nos relacionamos, seja se essa relação por parte delas for honesta ou não. Quando não é honesta, ensina sobre a manipulação das associações míticas, das ilusões que os amálgamas permitem, e como quem é consciente disso pode nos vender um “mapa de si” que não condiz com o terreno de quem se é, por mais convincente que pareça. Quando é honesta, ensina que essas características antes de tudo nunca foram setas que apontam para nada, que não permitem verdadeiramente criar um autorretrato de quem as contenha, e que nenhum conjunto de características está isento de aparecer tanto nas piores quanto nas melhores pessoas, independentemente da maneira para categorizar “melhor” e “pior” que tentemos configurar.

A identidade estabelece construções justamente porque lidar com essa incerteza e esse aspecto imprevisível e amorfo do que somos acaba sendo impossível de fazer em larga escala, no dia a dia, e frente a precariedades urgentes. Não temos como estar desconfiando o tempo todo de tudo, então tentamos usar desses indícios para estabelecer aproximações e generalizações que façam com que nos sintamos mais seguros. Talvez em 99,9% dos casos seja verdade que uma pessoa que é ativista contra a pedofilia, progressista e apaixonada por cultura, livros e escrita, seja de fato uma pessoa civilizada e incapaz de atrocidades. Só lembramos do 0,1% que essas generalizações não abarcam quando casos como o de Bittar acontecem — e o choque vem, também, de lembrar que o fundo das generalizações ainda é um pouco vazio, mais uma ferramenta arbitrária que precisamos assumir para uso cotidiano, do que algo que realmente carrega uma verdade técnica e profunda.

Conjuntos de características podem apontar para muita coisa, mas nunca são fatos dados. São interpretações se muito aproximadas, quando não equivocadas. O que somos não necessariamente se comunica por nenhum gosto, opinião, narrativa, adjetivo, enfim, nada que possamos tentar usar de exemplo para justificar quem acreditamos ser. E como esses exemplos não se vinculam realmente como subprodutos consequentes do que somos, por mais que tentemos insistir que é o caso, quando o que somos contraria o que os exemplos diziam é comum que surja um choque. Parece, por um momento, que não são os exemplos que constroem as leis e portanto demonstraram que certa lei equivocada foi incapaz de explicar e prever algo que de fato aconteceu: parece, na verdade, que é a própria realidade do que aconteceu que está errada, que algum exemplo “não deveria ter acontecido”, de tão convincentes que eram as leis.

A tendência lógica, a tendência erótica e a quebra do último axioma

Photo by Grianghraf on Unsplash

Quando comecei a escrever esse livro, acreditava que esse tema receberia um capítulo inteiro para desenvolvê-lo. Desisti da ideia e transferi esse trecho para uma versão resumida aqui nas notas finais por três motivos: primeiro, porque estava já cansado e queria terminar esse ensaio logo. Se eu fosse realmente me dedicar a um aprofundamento do que vou discutir agora, talvez esse aprofundamento necessitasse de um outro livro inteiro. Ao mesmo tempo, o tema dessa discussão em particular é ainda mais abstrato, com uma estética de algo ainda mais desnecessariamente hermético, mesmo quando comparado com o que já veio antes. — e essa falta de acessibilidade foi o segundo motivo para que eu decidisse resumir.

Além disso, por ser também um tema tão abstrato, eu admito que gostaria de um aprofundamento maior antes de me sentir confortável para compartilhar detalhes de certas ideias. Isso também leva tempo. No sentido em que é abstrato, esse tema é um em que ainda considero também que minha articulação segue ainda um tanto superficial — e o terceiro motivo foi este.

Ainda assim, dadas essas ressalvas do estado provisório, acho que podemos passar para o que quero dizer mesmo.

Em diversos dos processos que viemos discutindo durante este longo ensaio, uma dinâmica de ações acontece: instâncias em que elementos se unem ou se separam de uma maneira que parece muito próxima das estruturas dialéticas. Em certo sentido, a dinâmica basal entre unidades atômicas do que estamos discutindo envolve uma vinculação ou desvinculação entre dois objetos — uma característica (no mínimo, um adjetivo; na sua complexidade posterior, uma narrativa inteira, ou o que definimos ao se vincular como um mito) que é associada ou desassociada a um eu ou um outro (na identificação ou na desidentificação), sendo a dinâmica para estabelecer pontes desse tipo uma potência e um comportamento da identidade na construção de sua narrativa de si, o que neste ensaio foi definido como um mito do Eu.

Como uma parte essencial destas dinâmicas que discutimos ao longo de todo esse ensaio, este processo de uniões e separações também carrega suas próprias características, permitindo inclusive algumas construções e reflexões mais complexas a partir de sua situação básica.

Aqui, vou emprestar algumas nomenclaturas de Jung novamente, deixando uma ressalva simples de que trago meu próprio “giro” numa leitura particular de algumas dessas ideias, mas é útil a referência para deixar evidente a qual discussão mais geral estou referenciando. Assim, entendemos como um símbolo, uma descrição metafórica talvez, que a tendência de união nos processos de identidade (presente no vincular-se a uma nova identificação, bem como nos processos de interagir e conectar-se com o Outro) pode ser entendida como erótica, a partir de uma leitura do Eros como símbolo de união. Em contraposição, há uma tendência de separação, esta que diferencia e desidentifica, que afasta o eu do Outro, que particulariza conceitos e casos, e esta tendência podemos chamar de lógica, a partir de Logos como símbolo de separação, talvez melhor caracterizada inclusive como distinção.

Como essa é uma discussão das mais abstratas, vale a pena trazer um exemplo do que isso quer dizer.

Costumeiramente, a mente consciente é mais lógica e racional, sobretudo quando reage às imposições dos discursos seculares que desejam uma hipertrofia e domínio totalizante desta potência. Se está chovendo, por exemplo, uma relação lógica entre a chuva e sua causa vai considerar uma dinâmica causa/consequência no sentido mais estrito, com a demanda de que exista uma explicação lógica, a partir de algum critério secular científico, para que a causa seja associada à chuva como consequência. Nesse caso, as causas para a chuva são definidas como um conjunto limitado de possibilidades que precisam atender a rígidos critérios lógicos e metodológicos para se estabelecerem como tal, como causas da chuva que acontece. Este conjunto limitado das causas lógicas se diferencia e distancia de qualquer outro conjunto de explicações, estabelecendo uma especificidade do fenômeno particular que descreve, como uma tendência para a definição detalhada do caso. Assim, o conjunto de causas sob a ótica meteorológica que levam a uma chuva em regiões quentes subtropicais é diferente do conjunto de causas que levam a uma chuva em regiões frias de tundra.

Em contrapartida, a construção dos significados que chamamos de coincidências não atende a critérios seculares semelhantes. Ao notarmos uma coincidência, mesmo que não acreditemos que ela reflete a realidade das causas de um fenômeno, o que propomos é uma vinculação mais abstrata entre uma realidade subjetiva e um fenômeno que parece se aliar simbólica e esteticamente a esta subjetividade, mesmo que tal harmonia racionalmente não se explique. A coincidência de um dia de chuva para um funeral, por exemplo, não carrega força na lógica meteorológica, mas carrega um potência simbólica. É uma associação que comunica pouco sobre a concretude objetiva das causas para uma chuva, mas que expressa muito sobre os desejos e subjetividades humanas.

Quando falamos durante este ensaio em uma perspectiva que olhe para a realidade do apelo mítico de certos discursos, estávamos falando sobre uma realidade mais erótica, voltada inclusive ao irracional e ao inconsciente. Enquanto a explicação lógica da chuva atende a demandas importantes de ordem prática, ela não entrega os confortos estéticos e terapêuticos da percepção de uma coincidência envolvendo a chuva no funeral de um parente querido.

Jung chamava esta maneira de construir pensamentos — voltada menos para os critérios práticos e mais para as realidades subjetivas — de sincronicidades, e a percepção delas era parte importante da maneira como Jung percebia a possibilidade de entender melhor, interagir e transformar esta realidade subjetiva aos poucos. As coincidências eram uma destas sincronicidades que Jung explicava, mas não só: a interação proposital com símbolos (retomando o exemplo, como no caso da propensão a uma experiência simbólica e até espiritual/transcendente com uma pedra tal fazia Jung, mesmo ciente de que esta experiência pouco comenta sobre a realidade lógica da pedra como fenômeno a ser compreendido secularmente). Outra dessas sincronicidades era a construção de interpretações sobre desejos sociais reprimidos expressos em pseudociências ou discursos políticos em situação híbrida entre estética racional e base de desejos inconscientes (como nas teorias de conspiração, ou nas pseudociências como a alquimia).

É uma leitura em que estas narrativas não são vistas como logicamente convincentes, e são mantidas propositalmente distantes sequer da consideração racional. Mas são vistas como matéria-prima para processos de outro tipo, estes dialéticos entre uma identificação que separa (o eu consciente, inclusive, que se refina aos poucos a partir de critérios cada vez mais específicos e de nicho) frente uma confrontação compensatória com a abrangência do Outro, que aos poucos vai decalcando novas identificações tanto quanto vai erodindo as identificações antigas.

Apesar de funcionar principalmente nessas vontades inconscientes e irracionais, eu acho importante ressaltar com um exemplo que a tendência erótica também pode ter um caráter de critério rigoroso e científico, quando vista como uma perspectiva que prioriza os conjuntos mais do que os casos. Vou dar um exemplo bobo sobre os dois objetos mais aleatórios e contrastantes possíveis para explicar isso um pouco melhor.

Um bolinho de maçã versus a morte térmica do universo

Muito bem, estes são nossos objetos. De cara, a escolha deles é proposital pela estética do absurdo e da distância: há um contraste evidente em diversos graus de grandeza entre um objeto pequeno e cotidiano, algo tão inofensivo quanto um bolinho de maçã, e a promessa de um futuro de absoluto encerramento do universo tal a proposta por algumas das vertentes da ciência.

A percepção destas diferenças e contrastes é um exemplo de pensamento lógico. Diferenciamos os objetos em categorias de acordo com diferentes critérios e características, posicionando-os em conjuntos particulares com aquilo que entendemos correlato. É esquisito ouvirmos sobre um bolinho de maçã e a morte térmica do universo em um só fôlego porque esperávamos que o bolinho de maçã aparecesse acompanhado de objetos que fossem mais próximos de si, como uma tortinha de limão, ou um biscoitinho de chocolate, enquanto esperávamos também que a morte térmica do universo aparecesse acompanhada de outros conceitos de seu campo na física teórica e nas imbricações profundas da filosofia, como a discussão sobre o Big Bang, a hipótese da dispersão de energia, a ideia de entropia, etc.

Mas apesar de pouco usual, um pensamento erótico que priorizasse a perspectiva de conjuntos possíveis não estaria equivocada nem mesmo aqui: existem sim ainda conjuntos em que um bolinho de maçã e a morte térmica do universo coexistem, ou podem coexistir. Se considerássemos a hipótese de que a morte térmica do universo será um evento a de fato acontecer, então nesse caso o bolinho de maçã e a morte térmica do universo coexistiriam, só para começar, no conjunto universo dos fenômenos concretos, da natureza que se passou, passa ou passará no palco do real, dos eventos “de fato” na história da existência. Se considerarmos ambos como hipóteses, ainda coexistem também, mesmo se não forem reais (aqui podemos considerar um bolinho enquanto ideia e a morte térmica enquanto teoria não comprovada) no campo da linguagem, das ideias compreensíveis, das ideias expressas e nomeadas em português e em outras línguas como o inglês, alemão, etc. No conjunto universo de um dicionário, por exemplo, ou de uma enciclopédia, é compreensível a expectativa de que estejam presentes tanto menções a bolinhos de maçã quanto menções à morte térmica do universo.

Outro exemplo útil de considerar é o das nomenclaturas científicas. No sentido da definição das espécies e subespécies, a construção do pensamento é estritamente lógica, buscando estabelecer um conjunto mínimo, uma lei particular, que se adequa ao menor conjunto possível de seres: a espécie esta, em contraste à espécie outra, e as mais sutis das variações (tamanho um pouco maior ou menor, pelagem desta cor ou daquela) já podem ser suficientes para garantir uma subcategoria, ou uma divisão das espécies. Compartilhando certas características essenciais, há centenas de variações de cães, por exemplo, cada uma delas com sua própria nomenclatura, e mesmo isso considera a realidade de que há ainda outras infinitas categorizações de cães que escapam a esta detalhada nomenclatura: os cães “sem raça”, por exemplo, e mesmo a variação genética dentro de um mesmo padrão de raça/pedigree.

No outro extremo, é a mesma lógica científica por trás das minúcias de variação nas raças de cães que é capaz de categorizar algumas das maiores abrangências possíveis — todos os mamíferos, todos os seres orgânicos, uma dimensão inteira, uma galáxia, ou em última instância um universo, ou até conjunto de universos, que a tudo que conhecemos englobe e interconecte.

O pensamento erótico, portanto, não é fundamentalmente irracional por priorizar conexões, nem por se alinhar mais constantemente a desejos inconscientes e subjetividades. Se a coincidência é um exemplo de pensamento erótico irracional, a percepção de conjuntos a unir características é um exemplo de pensamento erótico que, paradoxalmente, mantém sentido lógico.

Há uma infinidade de aplicações muito interessantes dessa abordagem que percebe tendências eróticas e tendências lógicas nas coisas. Mais do que um conjunto de ideias por si, esta é uma leitura que facilita e muito a reflexão sobre as mais diversas coisas.

Um exemplo bom: há uma ótima leitura sobre as ideias de ego, id e superego em Freud a partir das ideias de tendência erótica e tendência lógica. Nesse sentido, é possível considerar a sublimação de Freud como um correlato o pelo menos um processo semelhante ao processo de individuação. É uma leitura ousada e que deixaria acadêmicos, psicólogos e psicanalistas puristas, tanto defensores de Jung quanto de Freud, um pouco nervosos comigo; mas a vontade nesse tipo de aproximação não é de estabelecer sinônimos, mas sim de perceber rimas estéticas. Num esboço sobre essa aproximação, seria possível categorizar o Id em Freud como uma potência sobretudo erótica, incontrolável e em estado de ser que ou busca conexões, ou ignora a separação entre eu/Outro (inclusive quando busca se impor ou refletir na realidade externa); o superego seria, por sua vez, uma entidade sobretudo lógica, que diferencia eu/Outro; e o ego, como entidade de síntese aproximada à identidade enquanto funcionamento, seria responsável por estabelecer critérios e expectativas sobre como as interações entre estas duas realidades podem operar de forma mais harmoniosa, com a sublimação (ou a individuação) sendo uma das possibilidades para construir esta viabilização da interação.

Há alguns anos, escrevi um poema que quero retomar agora:

Terceira
Ser ou não ser?”, quis saber Hamlet,
O Logos que separa; antítese, tese, zero, um;

Ser e não ser!” respondeu Abraxas,
O Eros que une; síntese, dois.

Uma terceira coisa, em algum lugar,
Silenciosa,
Com sua terceira opinião misteriosa;

Acima de qualquer outra coisa, o que a percepção em termos de Eros/Logos entrega é uma dinâmica de jogo dialético, no sentido mais profundamente abstrato do que esta dialética permite e pretende. É talvez uma didática metafórica para as engrenagens mais basilares desta dialética, na raiz dos seus axiomas mais fundamentais, e por isso pode num só fôlego remeter ao pensamento apolíneo frente o dionisíaco, em Freud, tanto quanto pode remeter a uma simbologia mitológica de fato, como a leitura de Abraxas (seja nos gnósticos ou já em Jung) como deus da síntese absoluta entre Deus/diabo, seja na percepção estética de Hamlet como um arquétipo potente da figura trágica lógica em sua essência, simbolizada justamente pelos dilemas, proposições que separam um/outro.

Esta é uma discussão muito abstrata e muito complexa que, como disse, eu não tenho a pretensão de aprofundar totalmente por enquanto. Mas acho que para este capítulo das notas fazer um mínimo de sentido, é importante destacar por qual motivo eu acho que esta discussão é importante e carrega potencial: se é no aprofundamento da leitura Eros/Logos que se atinge de forma mais acessível e didática (por mais hermético que isso pareça) o axioma fundamental da dialética, é também nesse aprofundamento que este axioma dialético pode ser questionado, talvez rompido, ou talvez superado.

A dialética tem uma potência estética muito forte. É talvez a dinâmica de pensamento mais pervasiva da nossa sociedade desde Hegel (e desde Hegel só de forma mais explícita e consciente, porque na verdade vem de bem antes) porque é tentadora demais, no sentido estético e mítico mesmo, como explicação da realidade. Uma das explicações mais básicas e humanas da nossa experiência é justamente a separação eu/Outro que depende do axioma dialético.

Sem a necessidade de retomar toda estrutura desse ensaio para aprofundar a explicação do motivo, eu considero que este axioma possui uma característica mítica muito forte: ao definir as fronteiras do eu, é talvez um das mais iniciais maneiras de negociar com a precariedade; ao construir critérios de refinamento desse eu em processos dialéticos de união e separação a partir de identificações e desidentificações, é também a essência do refinamento no discurso do mito do Eu; e ao propor e incentivar sínteses, é também o propagador das individuações e sublimações posteriores, rumo a uma narrativa do eu progressivamente mais convincente.

É portanto talvez uma desidentificação última, o sucesso final dos processos de individuação e dos mitos que os rodeiam, sobretudo os mitos anti-míticos que discutimos mais para o final deste ensaio, a autofagia existente no momento autorreferente em que a dialética se volta contra ela mesma, tomando a si mesma como objeto de tese a ser contraposto a seu oposto e posteriormente sintetizado em algo outro. Sob esse exercício a dialética não pode portanto, por sua própria estrutura, ser fim em si mesma: demanda já por essência seu próprio contraponto e sua posterior superação. Nessa dinâmica, ainda, promete e exige que o eu também, dito tese e contraposto ao Outro, em última instância se supere enquanto construção tal como é para progressiva e sucessivamente dar lugar a outra coisa.

Esta “outra coisa” pode ser nomeada de “eu individuado” ou desidentificado”, o Jesus dos mitos de individuação, mas um mínimo de criatividade retórica já permite ir além para nomear este objeto de outra coisa, uma existência pós-eu, não porque o mito do Eu, ou mesmo o próprio eu, se reneguem ou superem, mas porque passam a existir como parte de um conjunto maior, em que não são mais uma neurose de alienação, mas parte de um todo transcendente em outra escala.

A dialética e o eu, quando superados desta maneira, permitem uma visão muito interessante deles mesmo enquanto ferramentas, o que facilita a navegação em regiões nas quais não há inclusive consenso na construção dialética presente.

Mais um exemplo para explicar essa situação:

Mal como ausência de bem

Apesar de sua prevalência em discursos de todo tipo e nas escolas de pensamento no geral, é importante destacar que a dialética antagoniza algumas estruturas míticas importantes ocasionalmente, o que a leva a ser percebida como algo a ser resolvido. É o caso, por exemplo, do dilema sobre o “mal como ausência de bem”, um argumento teológico e filosófico que tenta “resolver” a necessidade dialética por um Abraxas (este símbolo que sintetiza o absoluto do mal e o absoluto do bem) a partir de uma “trapaceada” em que se renega o mal de uma existência em si, de uma ontologia ou substância, para garantir que portanto não há processo dialético a ser estabelecido: se não há antítese ao “bem” de Deus, logo não há síntese entre mal e bem a ser feita.

Evidentemente, esta é uma leitura em situação de disputa. Católicos vão ser muito apegados a essa defesa e vão apontar qualquer indeciso à leitura de seus textos de referência, sobretudo em Santo Agostinho, que defendem esta interpretação e protegem sua teologia de um processo dialético que a desmonte. Este exemplo é importante para demonstrar como há disputas sociais e uma autoconsciência e autopreservação míticas para com a dialética — mitos nunca vão sugerir ou prometer uma dialética absoluta porque isso vai contra sua própria sobrevivência. Se mitos estão se vendendo como estáticos, o dinamismo dialético vai sempre tentar posicioná-los como transitórios.

Se os elementos dialéticos estão sempre associados a mitos (porque possuem uma espécie inerente de apelo mítico, seja na rigidez da separação eu/Outro, seja no dinamismo das constantes revisões a partir de rodadas de síntese/individuação rumo a novas definições desses objetos separados) ao mesmo tempo em que antagonizam mitos estruturalmente, é importante ressaltar e enfatizar que:

  • a dialética não se apresenta na realidade, como um fenômeno natural ou uma ordem das coisas, tal tentam fazer parecer alguns de seus defensores, mas acontece enquanto fenômeno de leitura e percepção na esfera e escala da nossa estrutura psíquica, de nossa linguagem simbólica e de nossa construção de significados, tal propôs Jung;

Esta é uma importantíssima definição. A dialética opera de forma semelhante ao que discutimos sobre alquimia: existe psiquicamente, e sua força psíquica e prevalência a faz importante de considerar como fenômeno que molda pessoas e consequentemente molda o mundo; mas tanto quanto não há uma física da transformação do metal em ouro como prometia a alquimia, também não há uma divisão clara da realidade em teses, antíteses e sínteses. Esta é uma ferramenta de pensamento, quando vista pragmaticamente, e uma expressão de desejos subjetivos, quando expressa na promessa de uma construção do eu.

E isso leva a uma conclusão que é tanto uma possibilidade real para a estrutura que estamos montando, quanto uma afirmação que parece hermética para além do possível, quanto também a consequência última inevitável de todos os processos dialéticos de identidade que estamos discutindo desde o começo deste ensaio, quando levados à sua última instância:

O eu como um axioma que se pode romper

Vou começar este trecho como vários exemplos.

  1. As dinâmicas do trauma costumeiramente envolvem um foco narrativo da identificação a um passado que resulta numa incapacidade de conceber um escopo abrangente de futuros. O apego ao passado (apego aqui não no sentido de algo positivo, mas de uma fixação) gera uma limitação das possibilidades: o sofrimento do trauma acontece muitas vezes na percepção de que o passado afeta o futuro e o rouba de algumas de suas importantes potencialidades. O acontecimento traumático de ontem passa a não só definir a inviabilidade de felicidade no passado em que aconteceu, mas um legado que insiste em roubar a felicidade de viabilidade no hoje e no amanhã.
  2. Num sentido estritamente lógico e conceitual, há um pouco de arbitrariedade e convenção na maneira como separamos eu e Outro. Se considerássemos a unidade da célula, por exemplo, poderíamos ser vistos não como indivíduos, mas já como coletivos: menos um “eu”, um “Rodrigo” enquanto individualidade, e mais um coletivo no sentido de uma cidade de células, na arbitragem física do corpo. Há uma certa arbitrariedade convencional na separação entre indivíduos, ou mesmo entre espécies, que interagem de maneira muito simbiótica. Por exemplo, até onde é possível considerar que as bactérias de minha fauna intestinal são ou não são agentes independentes, já que tanto delas depende minha sobrevivência quanto vice-versa?
  3. No extremo oposto da mesma lógica, é igualmente conceitual a ideia de que uma cidade não possa ser vista como seu próprio indivíduo, formada por suas infinitas células nas pessoas que a habitam. A diferenciação em escala do eu/Outro, do grande/pequeno, costuma usar a consciência como base (experimento consciência no nível do humano, não no nível da célula, da bactéria intestinal, ou da cidade de São Paulo), mas esse é um critério construído tão válido, porque tão convencional e arbitrário, quanto seria qualquer outro. A individualidade, o indivíduo, é uma proposição, uma construção convencionada da linguagem, mais do que é uma realidade em si.

Dado isso, há uma série de fundamentos, critérios de base para a convenção que adotamos. E esses fundamentos também possuem seus próprios fundamentos, que por sua vez possuem seus próprios fundamentos, que por sua vez possuem seus próprios fundamentos… Conforme a filosofia se aprofunda na crítica da metafísica, os níveis destes fundamentos desconstroem-se um a um e deixam nu e cru o axioma basal: uma convicção que, embora não se comprove, é mantida tanto por sua estética de consenso e obviedade quanto porque é uma peça fundamental para toda a construção de pensamento que dela parte.

Esta é uma visão pragmática do mito, no sentido que defendi durante este ensaio todo, que fazemos constantemente, um pouco sem perceber, no mito do eu mais básico que partilhamos como um dos maiores consensos culturais: a existência do eu, não como experiência, mas como conceito dado como óbvio ou fundamental para toda construção de percepçao, como construção narrativa mítica que promete explicar algo.

Em termos metafóricos, eu usei por muito tempo algumas imagens de associação a cores que ajudam a explicar esse nível de distinção:

  • Associemos o dilema tese/antítese ao maniqueísmo preto/branco;
  • Associemos a ideia de síntese à junção das cores, que daria cinza.
  • Tomando este cinza por uma nova tese, por um novo objeto para si mesmo, fica a consideração: o que seria a “asíntese”, oposta à síntese estabelecida como objeto no próprio processo que a concebeu? Qual seria a cor que contrastaria ao cinza?

É uma linguagem metafórica que hoje me incomoda usar porque percebo sua característica hermética e densa, que pouco combina com a promessa de acessibilidade que este ensaio possui. Mas acho importante trazê-la para deixar evidente também que é justamente devido a esse excesso de abstração que este assunto aparece condensado e resumido aqui nas notas finais, não como um capítulo encorpado inteiro.

O que posso deixar de mais concreto nesse sentido é a percepção que mantenho, para a qual falta articulação mais aprofundada, de que se o eu é um produto dialético, então este pode ser rompido enquanto construção quando se questiona seu axioma de base, o próprio sistema do qual surgiu.

Se existe uma situação última dos processos de individuação, não é o indivíduo idealizado do mito anti-mítico, nem do mito de individuação (ambos ainda mitos na escola dos mitos dialéticos), indivíduo este que ainda existe como eu, obedecendo e participando das mesmas rodadas de confrontos e compensações incessantemente. Se existe situação última, é esta aqui: aquela em que as próprias regras do jogo são superadas, em que as dinâmicas da identidade se abandonam, novamente não porque deixam de acontecer, nem porque são renegadas, mas porque passam a acontecer não mais alienadas em si, protegidas pelos muros de suas neuroses, mas sim como partes de um conjunto universo maior que as integra, numa coexistência harmônica, a outras formas de existir e perceber que sejam menos individualistas, no sentido de propor um eu, e menos dinâmicas, no sentido de existirem sem a necessidade constante da tensão entre tese/antítese, identificação e desidentificação. Nessa leitura, a sublimação ou individuação finais não acontecem como resultados de um processo fluído e progressivo das dinâmicas de conflito eu/Outro: acontecem como estados em si mesmos, sempre presentes, sejam ou não ignorados, e que não impedem em última instância mais nada, quando notados a partir de uma perspectiva que os experimente acontecendo em paradoxo, ao mesmo tempo que em harmonia e integração, às pequenas dinâmicas das identificações do mito do Eu. É o estado da misteriosa “terceira coisa”, a imagem do poema sobre as dinâmicas dialéticas que fiz: algo que não antagoniza o que veio antes, algo difícil inclusive de definir, que existe num estado que é ao mesmo tempo redundância e conjunto dos elementos menores que neste estado se integram, quanto outra coisa por si, com características particulares que suas partes no detalhe não contém.

Ufa. Eu falei que isso ia ser abstrato. Peço desculpas pela empolgação e agradeço pela paciência na leitura desta nota em particular. Imagino que os que acharam essa discussão entediante ou intrincada demais vão entender e concordar com a decisão de ter mantido isso como uma nota para concentrar meu exagero e capricho num lugar só, ao invés de espalhar o exagero por um longuíssimo e complicado capítulo inteiro.

O cristianismo enquanto segredo romano às vistas de todos

Photo by Fabio Fistarol on Unsplash

Esta é mais uma nota rápida, quase anedótica, para complementar e enriquecer um dos exemplos que usamos no ensaio. Em certo momento, comentamos a famosa história que serve como símbolo da integração do cristianismo ao império romano: a vitória do imperador Constantino em uma batalha utilizando símbolos cristãos após um sonho premonitório, no que me parece uma releitura curiosa da mitologia cristã para integrá-la melhor à tradição romana de buscar uma “mãozinha do divino” no sucesso em batalhas importantes.

Como comentamos em detalhes o exemplo da transição do império romano para o cristianismo, inclusive nas resistências que esta transição gerou às elites tradicionais romanas ainda apegadas ao paganismo, acho interessante comentar melhor o caso do Arco de Constantino porque ele simboliza muitíssimo bem esta etapa de transição mítica.

Construído como um monumento para homenagear justamente a vitória de Constantino mencionada, em que supostamente houve intervenção direta do Deus do cristianismo como patrono da vitória romana, era de se esperar portanto que este monumento fosse explicitamente cristão, certo? Afinal, foi feito em honra a uma vitória que, segundo a tradição, foi consequência direta da ação do Deus do cristianismo, ao ponto de servir como pontapé para a mudança da religião oficial de todo o império.

Mas a verdade do monumento é outra: se há menções ao cristianismo, elas são todas abstratas e ambíguas — menções do tipo que poderiam passar despercebidas pelos romanos pagãos do período que fossem admirar o monumento. Como uma obra de estado num período de transição, faz sentido: se o monumento serve para agradar todo mundo e elevar a autoconfiança romana num período divisivo, a universalidade da mensagem depende do quão vaga esta mensagem pode ser para não incomodar ninguém. Mais do que isso a missão do monumento, que é sobretudo político, é menos a de priorizar e valorizar o cristianismo — é mais a missão de priorizar e valorizar o próprio Constantino enquanto líder.

Assim, na inscrição principal do Arco de Constantino, a mensagem é a seguinte:

Ao imperador césar Flávio Constantino, o maior, piedoso e abençoado augusto: pois ele, inspirado pela divindade e pela grandiosidade de sua mente, libertou o estado do tirano e sua facção com seu exército e pelo justo uso da força, o Senado e o Povo de Roma dedicaram este arco decorado com seus triunfos.

O negrito do trecho é meu para reforçar a ambiguidade e ambivalência: “divindade”, explorada assim em termos tão abstratos, é suficiente para ao menos parecer remeter ao Deus do cristianismo, quando lida sob a perspectiva daqueles contextualizados na narrativa da vitória de Constantino devido a um sonho com Deus; e “divindade”, dessa forma tão vaga, serve ainda como uma frase vazia que não contextualiza suficientemente para remeter com clareza ao cristianismo no caso de um desavisado romano, afeito ao paganismo, que não reconheça ou não queira considerar a história do sonho cristão de um imperador romano.

A “grandiosidade de sua mente” também é uma ideia interessante e importante do texto no monumento. Para mim, parece suficientemente próxima para talvez remeter ao famoso sonho de Constantino, algo que teria acontecido em sua mente em decorrência da divindade mencionada logo antes. Ao mesmo tempo, é uma expressão suficientemente vaga para poder ser lida num sentido mais político, em que Constantino esteja se gabando sem necessariamente precisar do apoio de qualquer divindade.

Este é um monumento político que está associado diretamente a um evento que, se na época era também bastante político, consolidou-se na história devido a sua importância religiosa. Pouco diferencia, em termos políticos, esta vitória em particular de Constantino de outras das dezenas de vitórias romanas. O motivo de comentarmos Constantino em específico, e o motivo inclusive para que eu tenha o feito nesse ensaio, não é sua situação política ou militar, mas sim sua importante contribuição para a história religiosa do mundo. Por isso mesmo, é interessante notar como o monumento em homenagem ao “evento que tornou o império romano cristão” é um monumento que propositalmente evita mencionar qualquer religião devido à situação de transição dos poderes religiosos institucionais no contexto histórico em que foi construído.

Imagino que, à época da sua construção, o monumento tenha sido suficiente para agradar cristãos romanos que começavam aos poucos a sair das margens e da perseguição do império para figurar, mesmo que ainda de forma velada, no discurso central do estado, oficializando esta presença em algo tão fundamental quanto um monumento. Imagino também que para os romanos do período no geral o monumento ainda servisse para cutucar seus orgulhos pelo império de forma mais geral, como outra das grandes vitórias romanas a celebrar, e para estes romanos talvez pouco importasse um deus ou outro ser mencionado implícita ou explicitamente como o patrocinador de tal vitória. E finalmente, para os pagãos do período o monumento pode ter sido vago o suficiente ainda para que talvez pudessem se confortar de que a “divindade” mencionada na inscrição poderia ainda dizer respeito aos seus próprios deuses, ao seu meio de operar, às instituições religiosas das quais participavam e que eram a tradição naquele momento já milenar da religiosidade pagã romana.

No encontro de todas essas possíveis leituras, o monumento é um grande sucesso e um exemplo magistral de algo que defendi nesse ensaio em vários momentos: o posicionamento estratégico dos discurso e das alianças míticas, procurando espaços de intersecção que viabilizem esse tipo de mensagem construída em caráter mais universal com potenciais leituras para vários grupos diferentes.

Ainda nisso, o monumento concretiza e exemplifica todo o processo de tensões institucionais a partir de religiões decadentes que comentamos ao abordar como crises míticas e a ascensão de novos mitos alteram as dinâmicas do poder e geram conflitos e desgastes na transição deste poder entre instituições (nesse caso, das instituições religiosas romanas pagãs que iam perdendo relevância conforme crescia o poder das instituições romanas cristãs).

O monumento é do jeito que é, vago e tentando agradar gregos e troianos, por ter sido construído no olho do furacão dessa transição, quando já era arriscado demais desagradar explicitamente aos cristãos, mas ainda era também arriscado demais desagradar demais aos pagãos. Fosse construído um século antes, o arco provavelmente teria mencionado deuses romanos explicitamente, sem nenhuma vergonha de fazê-lo; fosse construído um século mais tarde, o arco provavelmente teria mencionado o Deus dos cristãos explicitamente. É a especificidade de seu período que faz esse monumento tão especial e simbólico sob a perspectiva da história das religiões e, no sentido que tratamos nesse ensaio, sob a perspectiva da história das instituições míticas. A “divindade” vaga mencionada na pedra é um fascinante caso em que deuses em batalha ainda não submeteram suficientemente seus adversários ao ponto de conquistar o monopólio do discurso oficial.

Não há livre mercado mítico

Photo by Markus Spiske on Unsplash

Esta é uma nota relativamente simples, mas é talvez a ressalva mais importante entre as que estão aqui presentes. É tão importante que fico até um pouco encafifado por ter deixado algo tão fundamental tão pro fim deste ensaio.

Durante várias seções anteriores, discutimos como alguns mitos poderiam ser “mais” ou “menos” eficientes enquanto narrativas, fosse em larga escala, para nichos específicos, ou para pessoas em particular, a partir do quanto eram apelativos, do quanto funcionavam no sentido de proporcionar conforto terapêutico, pertencimento e uma solução para alguma precariedade. Esta discussão toda sobre mitos mais ou menos eficientes pode ter dado a impressão de que estávamos discutindo sobre uma situação em que houvesse algum tipo de “livre mercado das ideias” operando em relação a mitos, uma competição absoluta em concorrência livre e direta para todas as possibilidades míticas existentes.

Com uma forte ênfase para compensar o fato de talvez a principal falha no corpo principal do ensaio ter sido não mencionar isso explicitamente mais cedo, preciso deixar a ressalva: não é este o caso. Não há livre concorrência entre os mitos. Como tudo, os mitos que circulam também são atravessados muito diretamente por questões de poder: um mito que é veiculado exaustivamente porque atende aos interesses de algum grupo de poder que o veicula não é necessariamente o mais eficiente enquanto mito para seus receptores: precisa ser, nesse caso, o mito mais eficiente enquanto ferramenta para quem o está transmitindo.

A meritocracia, que discutimos exaustivamente enquanto exemplo durante o ensaio, aqui também serve como ótimo objeto para deixar esta questão clara. Enquanto proposta mítica, a meritocracia é eficiente? Com toda certeza. Vende um sentido de justiça, um propósito para o trabalho, dá sentido para os esforços do dia a dia, gera esperanças de um futuro melhor pelo próprio mérito. Quem compra a meritocracia se sente mais motivado para trabalhar e pode se sentir mais esperançoso de que esse trabalho trará frutos. A meritocracia também é uma narrativa mais palatável, acessível e simplificativa do que muitas de suas alternativas críticas que, quando mais racionais e próximas da realidade, são também mais incapazes de entregar confortos da mesma maneira. Já falamos de tudo isso antes.

Mas isso quer dizer que a meritocracia é uma ideia tão influente nas sociedades capitalistas unicamente porque tem tamanha potência mítica? Longe disso. A meritocracia é veiculada porque é interessante para as instituições e elites que esta ideia circule. Uma sociedade que acredita na meritocracia é mais estável, com trabalhadores que sorriem e se enchem de esperanças enquanto são explorados, e esse mito contribui para que se reduzam as chances de revoluções, greves, etc.

Outra consequência das grandes crises míticas que discutimos nesse ensaio, porém, é que está ficando mais difícil fazer com que se compre a mensagem que é interessante para quem veicula os discursos. Por isso, um processo que se refina cada vez mais é o da mitificação do discurso para tentar escalonar seus efeitos. O discurso do Brexit foi construído com um patrocínio milionário de grupos de interesse e com a implementação pioneira de tecnologias de comunicação distópicas, mas também foi construído com uma estrutura enquanto mito que era muito eficiente: oferecia respostas simples, incitava preconceitos e ressentimentos já existentes, usava de linguagem emocional e apelativa, prometia conforto e esperanças de um futuro melhor, construia pertencimento a grupos convictos, etc.

Há um equilíbrio delicado entre o quanto um discurso possui de potência por si e o quanto de um discurso depende das estruturas econômicas ou do Estado para ganhar tração. Os fascismos, por exemplo, são como fogo de palha: capazes de ganhar força nas menores das lacunas porque enquanto mitos são muito potentes. Enquanto isso, vender o sonho meritocrático (já saturado, como descrevemos tão bem durante o ensaio) fica cada vez mais difícil — e mais caro —numa sociedade que está progressivamente se tornando mais questionadora para com esta ideia. Via de regra, quanto mais potente for um mito para um grupo de poder, mais fácil e barata é sua implementação em larga escala. O vice-versa também vale, com mitos potentes sendo mais difíceis e caros de se impedir que circulem, caso seja o que se deseja fazer.

Os mitos derivados da matriz marxista são um bom exemplo nesse sentido. Para os grupos de poder em sociedades capitalistas, não há interesse nenhum em permitir que qualquer mito marxista se dissemine (tanto quanto não lhe convém a disseminação do marxismo como método crítico mais secularizado). Ainda assim, o marxismo inclusive em suas leituras míticas insiste em seguir existindo, mesmo com uma campanha constante e cara para tentar contê-lo em todas as frentes de comunicação possíveis. Andando por São Paulo, anarquistas e marxistas apaixonados, com camisetas de alguma figura importante de seus movimentos, bottons, quando não tatuagens, já me ofereceram várias vezes folhetos feitos em papel barato com conteúdo marxista revolucionário, alguns inclusive bastante radicais, coisas que eu nunca teria ouvido na televisão (e algumas delas talvez não seriam de bom tom serem ditas mesmo nas universidades mais à esquerda imagináveis). Enquanto isso, ninguém nunca me parou na rua para oferecer apaixonadamente um panfletinho defendendo a meritocracia. Imagino que seja pelo menos em parte também porque essa defesa nas ruas é menos necessária, já que o discurso meritocrático é o hegemônico presente em todos os meios de comunicação. Mas insisto: conheci mais marxistas apaixonados do que conheci defensores apaixonados da meritocracia.

Ainda assim, eu acredito que o mito marxista seja um exemplo de mito que não se dissemina mais ainda tanto por uma questão de poder (falta de interesse de grupos poderosos em patrocinar esta ideia) quanto por certas de suas características míticas mesmo que alienam outros grupos. Há sempre essa balança a ser considerada na análise de um mito: o quanto do sucesso (ou falta de sucesso) deste mito se deve à ausência ou presença de uma estrutura poderosa que o dissemina ou censura, e o quanto se deve às características inerentes deste mito serem apelativas ou não?

No caso de mitos com influência do marxismo, eu acredito que sejam ainda mitos de nicho, capazes de despertar profundas paixões em poucos, mas tenho sérias dúvidas de que todo mundo fosse virar marxista mesmo se todos os veículos de comunicação decidissem se esforçar para tentar convencer a população disso (e deixo a piada: vale o teste, se quiserem tentar, só pra gente ter certeza). E eu digo até que a abertura do marxismo a uma dinâmica mais fluída de crítica e evolução (inclusive com uma parceria associativa mais constituída à esfera secular) prejudica seu apelo mítico. Um discurso que se revisa constantemente parece mais frágil, frente a um que segue rigidamente convicto; um discurso que oferece causas mais complexas e em escala macro para os problemas é menos palatável do que um discurso que posicione tudo na esfera direta e simples do ato individual.

Para além disso tudo, não é de minha opinião que devêssemos realmente implementar algum tipo de “livre mercado das ideias” para mitos porque um mito que incita paixões não é necessariamente uma coisa boa — e seria muito menos em um ambiente de “livre concorrência” onde os mitos mais totalizantes e agressivos fossem progressivamente esmagando seus concorrentes numa disputa pela lei do mais forte. A sociedade que sairia disso seria provavelmente uma de um extremismo inigualável e de um profundo fundamentalismo religioso, só para começar. Algum fascismo está sempre a só um “neoliberalismo mítico” de distância de se estabelecer oportunista como poder vigente.

Defendi durante todo esse ensaio que é preciso regular mitos quando for possível, que é necessário à esfera secular estabelecer parcerias estratégicas com alguns deles, justamente para impedir que este livre mercado ocorra desenfreado. Porque sou idealista e talvez infantil e bobo, eu gostaria que aquilo a motivar estas regulações fosse mais do que os interesses particulares de alguns poucos privilegiados em suas salas de reunião, que estas regulações fossem propostas e geridas de forma mais transparente e com o objetivo de melhorar a situação de vida das pessoas. Mas a regulação em si não é um problema: é necessária.

Quando falamos do restaurante em Nova Iorque no texto principal do ensaio, sinto que esta ressalva faltou particularmente para explicar melhor que, para além de toda a maleabilidade mítica que os discursos capitalistas permitem, há sim também esta situação do patrocínio. Numa escala social, os mitos que mais circulam não são os que são exclusivamente mais eficientes — são os que aliam algum nível de eficiência com algum nível de interesse em veiculação e patrocínio dos grupos de poder. O capitalismo enquanto sistema se mantém num equilíbrio destas duas forças: a do patrocínio e da potência apelativa de seus mitos. Um dos efeitos da crise mítica sendo o desgaste destes mitos, o patrocínio precisa aumentar para que, com cada vez mais esforço, as ideias tenham menos sucesso em estabelecer os mesmos convencimentos. A médio prazo, como vimos no ensaio, esta superexposição também atua em detrimento do próprio mito, que passa na verdade a ser prejudicado por sua circulação em larga escala e a saturar. Então o patrocínio e o interesse podem ser suficientes para manter um mito em circulação por curto ou médio prazo, mas dificilmente serão suficientes, se não há força mítica associada, se não há demanda da precariedade atendida, para que este mito se estabeleça de forma duradoura e siga operando a longo prazo. Não há dinheiro neste mundo, nem autoritarismo nesse mundo, que seja suficiente por si só para um mito se consolidar durante longos intervalos de tempo.

Um último exemplo bobo para ilustrar isso, só porque gosto da história. Nos reinados dos faraós do antigo Egito, a religião era parte fundamental do Estado — uma religião tradicionalmente politeísta, rígida, com pouquíssima variação ao longo de séculos e mais séculos. Um faraó em particular, Aquenáton, foi uma exceção curiosa: ao assumir o governo, ele resolveu revolucionar a religião, implementando um modelo monoteísta em que o único deus que sobrou foi Aton, o deus-Sol. Durante seu reinado inteiro, Aquenáton usou toda a estrutura e poder que possuía para impor sua religião monoteísta aos egípcios. Durante mais de quinze anos, todos os egípcios foram obrigados a se dizer monoteístas e participantes da religião de Aquenáton.

Mas Aquenáton morreu, o politeísmo tradicional egípcio voltou logo como se nada tivesse acontecido e Aquenáton mesmo foi apagado da história durante milênios devido ao ressentimento de seus sucessores — sua vida e sua religião só foram redescobertas já no século XIX, devido a escavações, e sem estas ele teria permanecido eternamente esquecido.

Esse é um caso particularmente ilustrativo, mas há infinitos outros que não vale a pena descrever exaustivamente. Basta dizer que sociedades autoritárias construíram projetos semelhantes para impor mitos na base da força em várias ocasiões — e muitas delas fracassaram não por faltar esforço no patrocínio ou na repressão, mas porque o mito propagado não tinha força suficiente. Se há demandas míticas não atendidas, se há precariedades que seguem sem solução, um mito fraco não se sustenta. E para além dos exemplos históricos, minha experiência trabalhando com publicidade me conta a mesma história. Não há orçamento que seja suficiente para veicular uma ideia ruim. Aquenáton poderia ter investido toda sua fortuna em Google Ads e posts patrocinados e mesmo assim seu monoteísmo não teria ganhado tração na cultura egípcia de seu período.

Não quero ser ingênuo, porém, e dizer que são inofensivos o patrocínio e os grupos de interesse que articulam seu poder para disseminar certas ideias. Várias das narrativas capitalistas se tornaram pervasivas e quase um senso comum baseadas nos esforços continuados e caríssimos de instituições detentoras de capital simbólico desta espécie. Esta nota era tão importante de aparecer neste ensaio justamente porque apresenta esta importantíssima nuance: o sucesso de um mito em larga escala depende de suas características inerentes, sim, do quanto é bem-sucedido enquanto mito; mas depende também, por outro lado, das dinâmicas de poder que atravessam a veiculação de todos os discursos.

Photo by Waldemar on Unsplash

Afinal, é possível manipular alguém?

Na esteira da última nota, um assunto correlato que também merece menção: este ensaio tratando tanto de dinâmicas de identificação, mitos e seus interesses institucionais, jogos de poder, tentativas de convencimento, etc., é um ensaio que considera possível manipular alguém?

Como fizemos com toda a terminologia, vale a pena antes considerar o que manipular necessariamente significa para mim e com qual sentido vou considerar a ideia na estrutura que apresentei.

Para começar, considero que manipular não é o mesmo que mentir. Vou interpretar aqui a manipulação como um processo de indução, uma sugestão direcionada a um objetivo, e este processo pode ou não envolver mentiras. Normalmente, uma manipulação é uma distorção do discurso com a intenção de gerar uma ação ou convencimento em quem escuta, mas seria possível induzir usando somente fatos, mesmo que fosse uma com alguma curadoria enviesada deles.

No sentido dessa definição, acho que a manipulação não existe na interpretação em que não é possível criar do nada uma demanda mítica que não exista, tanto quanto não é possível simplesmente destruir uma demanda mítica existente. Essa é a questão que considero mais importante ao pensar sobre o assunto. É possível mentir para convencer que um determinado discurso vai resolver esta ferida, mas eventualmente a falta que ainda existe vai ser percebida se o discurso não for útil para pelo menos anestesiá-la.

É possível, porém, como falamos várias vezes no ensaio, criar ou fortalecer uma “venda casada”, associando um discurso menos atraente a outro que realmente atende a alguma demanda, ou estabelecendo generalizações tanto positivas negativas. É possível, como mencionamos também, mentir durante algum tempo que algo atende a alguma demanda, até os resultados aparecerem. É possível ainda mentir ou distorcer nos detalhes, mantendo o cerne do discurso ainda funcional. É possível até mesmo desconsiderar a realidade e os fatos para criar sob medida um discurso que atenda a determinadas vontades.

Negar a realidade, quando esta negação é precisamente o que atende a uma demanda mítica de alguém, é considerado manipulação? Nesse sentido, existe algo que é uma espécie de pacto entre o receptor e o transmissor dos discursos — não no sentido em que isente de responsabilidade quem tenta manipular, mas no sentido em que considera que o manipulado não é um ser passivo e possui algum nível de sua própria autonomia (e o “nível” aqui é importante, a autonomia nunca é algo absoluto).

As ressalvas a serem feitas são sobre as questões de precariedade profunda, situações mentais vulnerabilizadas, situações de imersão social e sobre as precariedades estruturais do ensino. Quanto menor a capacidade de articular complexidade, maior a chance de ser manipulado, de receber promessas de solução que não são eficientes. Certas culturas também (como as de seitas num exemplo exagerado, mas não só), inclusive aquelas imersas nessa precariedade de articulação, limitam a amplitude perspectiva daqueles que crescem nelas. Nesses casos, e nos casos daqueles mais propensos a uma certa psicose que nega a realidade para atender seus desejos, ou daqueles destituídos que precisam desesperadamente de qualquer coisa, é possível considerar que alguns são mais manipuláveis do que outros.

Por fim, há a questão do acesso. Se há duas opções de pasta de dente no mercado, é impossível “manipular” alguém ao ponto de escolher uma delas em particular. Mas é possível limitar as opções na prateleira, estabelecendo alguma ilusão de escolha na variação que se permite. Quando um discurso é propositalmente exposto intensamente para que se torne mais considerado, mesmo se isso acabar gerando a saturação que mencionamos, ainda se trata de uma forma de manipulação, ao direcionar atenções para este objeto. Quando um discurso é propositalmente marginalizado e suprimido para que aos poucos se torne menos relevante, isso também é uma forma de manipulação por censura e omissão.

A terminologia aqui é propositalmente particularizada e com nuances. Há infinitas outras definições de manipulação que não considero possíveis. As manipulações que ainda se aplicam na estrutura que montamos, aquelas que acredito viáveis, são exclusivamente estas que estou discutindo aqui.

E não é preciso que existam outras, aliás, já que pode existir o mencionado pacto, que só às vezes envolve manipulação direta, entre o consumidor e o discurso publicitário. Indiretamente, há manipulações de todo tipo. A publicidade existe e é efetiva porque há técnicas de raiz essencialmente sofista que se comprovam metodologicamente nas campanhas de publicidade do dia a dia. Eficiência em convencimento, no presente, é algo que se calcula com precisão na vírgula, com tabelas complicadas e dados minuciosos a respeito de cada detalhe de seu processo. Convencer/manipular é, sob a perspectiva das mídias digitais, um conceito concreto e matemático, um estudo na área das exatas sobre os engajamentos.

Há ainda o sentido da manipulação em que, como mencionamos por exemplo nos discursos da indústria tabagista, mitos disseminados foram desenvolvidos por um grupo pequeno de pessoas, para atender a também pequenos interesses. O lobby corporativo do Big Tech é outro exemplo pervasivo e com o qual a maioria dos interessados em política já teve um mínimo contato. Apesar de tão disseminado e influente, é um discurso que atende a poucos indivíduos nas posições de liderança destas empresas. Os mitos da indústria do fast-food, também, foram feitos propositalmente, estrategicamente, a partir de alguns poucos atores da publicidade. E ainda assim seus efeitos foram duradouros para a sociedade como um todo.

Durante um bom período da história humana, o desenvolvimento de mitos foi um processo relativamente orgânico, coletivo, incontrolável, lento e de certa forma até imperceptível. Nenhum grego antigo foi responsável único por nenhum personagem clássico de sua mitologia. A cultura popular florescia descentralizada e o sucesso de uma narrativa era algo percebido de forma mais intangível, a contraposto da maneira exata como é analisado hoje. Com os meios de comunicação capazes de mensurar engajamento de quem assiste, e com os estudos de teoria narrativa, psicologia e mercado capazes de construir mitos mais eficientes enquanto produtos na circulação em massa, passamos a conviver mais rotineiramente com os mitos artificiais (que são aproximadamente os produtos do que se costuma considerar como indústria cultural).

Novamente, não quero parecer ingênuo. Durante o reino de qualquer monarca havia um mito imposto pelas estruturas de poder que era, de uma certa maneira, artificial. Mesmo nisso, dependia de tradição: depois de consolidado e durante fases de estabilidade, era impossível a um qualquer escolher o discurso do sangue nobre sem tê-lo de fato (ao menos sem provocar nisso um conflito militar), era impossível justificar-se no papel de rei sem alguns caminhos estruturados no sistema (novamente, ao menos sem uma guerra), era impossível inventar um novo arcabouço religioso no qual enfiar sua estruturação política associada, etc. O caminho da alternância de poderes precisava ser violento porque a rigidez das mitologias não dava alternativa. Estes mitos eram transitórios mais no sentido em que sumiam e eram substituídos tão cedo quanto um reinado acabasse e outro estivesse em início. Ou seja, sem o poder que os defendia, mitos desse tipo eram deixados para trás. Eram mais um endosso discursivo a um poder conquistado pela força do que um mito realmente atraente.

O mito do cigarro, por sua vez, vai continuar vivo em subculturas ainda por muitas décadas para além dos investimentos da indústria do tabaco. E a existência de entidades míticas artificiais, pervasivas e duradouras tem gerado uma certa poluição do ambiente discursivo, o que mencionamos no corpo do ensaio como uma das causas da grande crise que mitos em larga escala estão experimentando. Nada mais morre porque mitos tão eficientes, também em mídias tão eficientes em sustentá-los, não dependem necessariamente de um poder estabelecido para seguirem vivos, mesmo que em nichos ou subculturas. A maior parte dos fenômenos culturais das últimas décadas, após decaírem do protagonismo no imaginário de um certo momento, sobrevivem depois como nicho. Ou seja, seguem todos como resíduos que permanecem constantemente disputando atenção e a identificação das pessoas.

O resultado tem sido uma pressão geral para refinar todos os processos envolvidos no convencimento que se interessa vender como protagonista do momento. Isso vai da tecnologia do algoritmo para aprimorar as sugestões e estabelecer trilhas de convencimento, aos próprios discursos que acompanham esta tecnologia e se deformam para atender múltiplos nichos (sendo ao ponto de aparecerem personalíssimos na interação com inteligências artificiais). Assim, mitos hoje são paradoxalmente mais variados e poderosos enquanto coletivo, mas menos potentes e mais frágeis individualmente. Competem mais entre si, libertos do monopólio institucional que os limitava, independentes de poderes que os sustentem, enquanto passam a ser rigidamente controlados por poderes tecnológicos como o alcance e a entrega.

Esse cenário evidentemente carrega possibilidades de manipulação, mas aqui elas também são mais limitadas. É mais fácil hoje manipular um nicho do que um grande grupo heterogêneo. A queda das grandes narrativas acontece justamente por esse fracionamento da potência mítica numa maior quantidade de unidades menores e descentralizadas. Nisso, é “fácil” convencer quem está num nicho particular, mas quase impossível convencer simultaneamente, com um único discurso, a dois nichos contrastantes. A manipulação, portanto, se tornou uma prática mais heterogênea e atuante em microcosmos — e nisso, pode até ter se aperfeiçoado, apesar de assim sacrificar seu poder diante de grandes grupos.

Uma metáfora que eu gostava de usar quando comecei a refletir sobre manipulação era a de que, diante de alguma angústia ou precariedade, há dois caminhos oferecidos socialmente.

O primeiro deles é o caminho da publicidade. É o caminho que oferece confortos, bálsamos de esperança, panaceias, ilusões ou escapismos ao problema. A promessa da publicidade não é resolver, seja porque considera que resolver é trabalhoso demais, seja por considerar a cura inviável ou impossível. Há nisso uma resignação cínica bem característica de seu discurso.

O segundo deles é o caminho da análise. Seja acontecendo em acompanhamento ou sozinha, por uma via psicanalítica ou secular, a análise nega as soluções simples e tenta olhar ao problema com mais profundidade, nuances e um certo pragmatismo na busca por resolver.

Não há manipulação, acredito, no sentido em que a escolha entre qual desses caminhos seguir ainda parte em algum grau da autonomia da pessoa, autonomia esta que nível nenhum de manipulação pode fazer com que suma totalmente. A maneira como decidimos lidar com nossas precariedades e mitos segue dependendo de nosso próprio funcionamento emocional e mental. O que leva alguém a comprar um mito, a identificar-se com algo, é antes uma falta interna, um desejo inerente, antes de qualquer um dos objetos que prometam atender essa falta na exterioridade. E se na exterioridade houver a possibilidade de distorção e manipulação a respeito de quais objetos podem ou não entregar o efeito esperado, a escolha por buscar ou não aquele efeito continua anterior e particular, por mais persuasivos e tentadores que os discursos publicitários pareçam. Voltando à metáfora boba, não tem como um mercado te manipular a comprar a pasta de dente A ou B se você não tiver interesse em comprar pasta de dente nenhuma, se você nem ao mercado quiser ir.

Perceber este pacto de certa forma mútuo entre quem vende o discurso e quem o compra não é o mesmo que isentar de responsabilidade quem veicula os mitos. Se um restaurante vendesse comida envenenada a pessoas com fome, o desejo de comer dos compradores não os tornaria corresponsáveis por estarem ingerindo veneno. Por isso, reitero uma última vez a questão da regulação: como regulamos o mercado de alimentos para tentar estabelecer critérios mínimos de higiene e saúde no que oferecemos para saciar fome, também seria interessante que houvessem critérios semelhantes naquilo que oferecemos para saciar demandas míticas. O que quis nessa nota não é isentar o produtor do discurso, nem o manipulador, mas argumentar que não é possível (a despeito do que os empreendedores de Linkedin inspirados por Steve Jobs dizem) criar uma “fome” de mito que não exista. É possível explorar fomes que existem das mais variadas e questionáveis formas, porém, e se a manipulação existe nesse nível e dessa forma, aproveitando-se de demandas e vulnerabilidades, distorcendo o que puder para se tornar apelativa, ela já é ruim o bastante para merecer atenção. O que Steve Jobs fazia era encontrar necessidades já existentes, como de conveniência, validação e esperança por um progresso tecnológico e uma visão otimista do futuro, e associar seus produtos a isso. Produtos fazem isso constantemente, inclusive, quanto prometem com algo material atender a alguma demanda mais abstrata, mas isso não significa que a demanda já não existisse.

O desafio acadêmico sobre como analisar a manipulação normalmente considera a dificuldade de mensurar, num experimento criterioso de acordo com o método científico, se alguém foi manipulado ou não. Para esta metodologia acadêmica, a manipulação é uma ideia mais intangível e subjetiva e, sem a capacidade de enfiar microscópios na subjetividade das pessoas, fica difícil ter uma “certeza objetiva” sobre o quanto de uma determinada decisão foi ou não influenciada por possíveis manipulações de terceiros, ou o quanto partiu de uma vontade própria de quem agiu. Isso também dificulta muito inclusive na implementação de medidas regulatórias como as que venho defendendo e escrevo ciente desse desafio e das limitações de qualquer tentativa nesse sentido.

Ainda assim, acredito que a abordagem que tratamos nesse ensaio oferece uma oportunidade diferente de ver e talvez regular a manipulação por outra ótica, considerando mais como uma possibilidade no campo da análise dos discursos. É possível analisar — e criticar — que se uma marca de miojo está colocando um atleta na sua propaganda, é provavelmente para tentar distorcer o senso dos consumidores e estabelecer algum nível de associação entre o miojo e a saúde que o atleta simboliza (talvez, se não dizendo que é possível ser saudável por causa do miojo, talvez no mínimo tornando mais considerável a ideia de que é possível ser atleta apesar do miojo).

Uma análise que critique o discurso com questões do tipo “por que o atleta está na propaganda do miojo? o que esta decisão pode dizer sobre o discurso apresentado? qual pode ser o fim que este discurso está projetando e esperando com essa mensagem?” é mais proveitoso porque não depende da manipulação se efetivar ou não em quem recebe. Estamos falando de uma leitura sobre como a intenção de manipulação pode ou não moldar o discurso e estamos olhando para o discurso como objeto para isso. Nas pessoas, se não podemos apontar com certeza metodológica para manipulações efetuadas, podemos pelo menos considerar quais demandas míticas existem e quais são as intenções e estratégias que estão utilizando os mitos que tentam atender a essas demandas. Por exemplo, se eu sei que a precariedade da pobreza traz uma demanda para narrativas de enriquecimento, posso regular melhor as promessas de enriquecimento fácil feitas por golpistas — independentemente de pessoas estarem sendo manipuladas a cair em tais golpes ou não. Portanto, podemos criticar e regular intenções e estratégias na esfera dos discursos, sob uma perspectiva das precariedades e demandas, independentemente de seu sucesso (ou falta dele) ser ou não mensurado na pessoa com alguma busca mítica.

Considero este um caminho ótimo para resolver várias hipocrisias e pequenos mitos dos quais a publicidade constantemente se aproveita. Primeiro, publicitários vão adorar sempre tirar o corpo fora com essa ideia de que a manipulação talvez seja “impossível”, ou no mínimo impossível de mensurar como algo concreto e científico. Publicitários também vão se beneficiar da isenção de responsabilidade que encontram na narrativa estúpida de que os consumidores fazem escolhas racionais e ponderadas ao analisar a concorrência e a oferta de bens, e que isso serviria para também regular racionalmente o próprio mercado. A verdade, porém — e digo isso como um profissional da área — , é bem diferente. Exceto em raros setores, a publicidade trabalha sempre com a intenção de manipular, priorizando conteúdo apelativo e argumentos emocionais. Há uma série de estratégias para “explorar a fome” no sentido que mencionamos e, novamente, se isso é de livre conhecimento e prática comum do setor, também é algo que poderia ser minimamente regulado e, se não for viável fazê-lo, é interessante pelo menos que uma crítica mais aprofundada possa ser feita sobre a prática para que as pessoas se tornem mais conscientes daquilo a que estão sendo submetidas.

Como muito desse ensaio, o que considero importante nesta nota é uma proposta para lidar um pouco melhor com a miopia que temos considerando os aspectos emocionais do convencimento e da vinculação aos discursos. Analisamos demais o quanto ideias fazem sentido lógico, o quanto são racionais ou coerentes, e analisamos pouco o quanto ideias são terapêuticas, convenientes de se acreditar por conforto emocional ou pertencimento. Também acreditamos que desmontar uma ideia perigosa e/ou equivocada passa por um desmonte racional dos fatos e argumentos, enquanto desconsideramos que passa no mínimo tanto quanto por oferecer alternativas de conforto emocional.

É nesses sentidos que acredito, para além das dificuldades metodológicas de encaixar a manipulação no método científico como um fenômeno estritamente técnico (e mesmo sobre isso tenho minhas dúvidas, dada a exatidão das métricas e dos refinamentos algorítmicos nos meios digitais que mencionei), que ainda é importante para o pensamento e para um uso responsável dos mitos que a manipulação seja considerada como possibilidade na leitura crítica. Ela não é uma força incontrolável, no nível de um encanto hipnótico que supera e submete qualquer autonomia; mas também não é o caso da autonomia do indivíduo ser também onipotente ao ponto de não ser influenciável em alguma medida por todas as infinitas tentativas de manipulação a que somos expostos basicamente o tempo inteiro. Se temos demandas míticas (e todos temos), há sempre uma vulnerabilidade que pode ser explorada por quem souber nos ofertar alguma solução confortável. O quanto essa oferta de solução confortável será ou não prejudicial é algo que podemos discutir.

Não quero aprofundar muito a discussão sobre regulação justamente porque dedicamos muitos e longos parágrafos a esse tema em particular durante o corpo principal do ensaio. Por agora, o que deixo é um reforço final de que, se a manipulação é possível (e mesmo se embirrássemos de dizer que não é possível como resultado, seria verdade ainda assim que é possível enquanto intenção discursiva), então é igualmente possível um mínimo de alguma ética da persuasão que se possa considerar. Onde a manipulação existir como vontade, nada impede que se possa lidar com ela de maneira, por mais paradoxal que isso pareça, menos manipulativa, menos considerada e estudada apenas por parte dos pequenos grupos que hoje a dominam, e consequentemente mais transparente.

Só a disseminação das técnicas de manipulação e uma discussão mais lúcida e abrangente do tema podem conquistar isso. Só um olhar mais focado nas demandas míticas pode encontrar as principais vulnerabilidades em que precisamos prestar atenção. Não é quem manipula, evidentemente, que vai querer discutir nada disso.

Photo by Sigmund on Unsplash

O ato ontológico como propósito, ideal ou possibilidade

Este é o último conceito que “caiu” do corpo do ensaio principal porque era abstrato demais. Aparecerá aqui nas notas em uma versão resumida da ideia.

Discutimos ao longo do ensaio como um mito pode influenciar ou determinar as expectativas ao redor de um ato. Em algumas variações dos mitos de beleza que discutimos, por exemplo, comentamos como a identificação a um certo critério de beleza (como ser magro, para um grupo) pode influenciar ou determinar ações como o tipo de dieta a se manter, com os mais extremos efeitos sendo situações como distúrbios alimentares.

O ato do distúrbio alimentar, pela intensidade, vale uso como exemplo: todos os atos do distúrbio nesse caso estão profundamente influenciados por uma visão distorcida da identidade, de si, dos critérios de si. É um ato embebido num discurso ao ponto de não ter autonomia, tornar-se incontrolável. Em geral, o ato embebido no mito é assim: acorrenta, submete, limita os escopos. Se o benefício de quebrar uma identificação é o ganho de autonomia, a manutenção da identificação implica uma constante limitação do horizonte de atos possíveis.

Isso nem sempre é ruim. Vários mitos talvez limitem as ações das pessoas de formas construtivas, até. Talvez o mito religioso contribua para alguém ter esperança no futuro, não roubar, tratar bem as pessoas, etc. Mas se o “ato mítico” existe e é assim, como seria o ato desvinculado de expectativas míticas, livre da influência de uma identificação?

Este ato seria o que estou chamando de “ato ontológico”. É um ato pelo ato, livre de qualquer expectativa sobre seus significados e consequências. O que é exatamente este “ato ontológico”? É qualquer ato, qualquer um, que seja feito por criatividade espontânea, ao invés de ser realizado pelas expectativas de um determinado mito.

É importante mencionar que existe uma possibilidade de que, sendo atos formados por mais de uma razão numa rede complexa de causas, talvez os atos ontológicos aconteçam também em uma matriz híbrida ao mito. Por exemplo, escrever para mim é um ato embebido em mito, já que envolve seguir certos padrões, a partir de certas construções qe fiz desde muito jovem sobre a prática. É, ao mesmo tempo, um ato prático, uma necessidade profissional para fazer dinheiro. E é ainda um ato ontológico, no sentido em que o ato pelo ato, a prática da escrita em si, é algo que sou capaz de realizar livre de expectativas sobre os resultados, muitas vezes por prazer no momento da escrita em si.

O ato ontológico é um ato sem justificativa no futuro. Ele faz no agora, desvinculado de algum mito que o gerencie. Isso não quer dizer que, num sentido prático e racional, não se possa dizer quais são as consequências de determinadas coisas. A consequência de trabalhar por contrato, por exemplo, é ganhar algum valor em dinheiro. As consequências que o ato ontológico ignora não são essas. São as consequências na esfera dos mitos, essas que poderiam gerar segurança e conforto.

Nesse sentido, é importante dizer que o ato ontológico não é o mesmo que um niilismo puro. O ato pelo ato deriva significado de si, mas ainda envolve de fato significado. Derivar o significado da relação entre o ato e uma expectativa de determinada consequência é a abordagem narrativa já de um mito. É uma possibilidade de criar esse sentido, de fato, mas não é a única.

Na literatura, eu acredito que há vários exemplos de personagens com comportamento marcado por atos ontológicos. Algumas das dinâmicas para certos personagens muito complexos da literatura partem dessa perspectiva. Jornadas de individuação, por exemplo aquelas retratadas em livros como Demian e Sidarta de Hesse, costumam envolver um clímax em que uma grande ação descondicionada, um ato ontológico é a culminação de um longo processo narrativo.

Na filosofia há atos descondicionados frequentes. Camus, por exemplo, pode ser visto todo como um filósofo dos atos ontológicos, com seu absurdismo despindo qualquer ato de expectativa, mas não de propósito. Existe também um argumento atrevido meu de que certas figuras religiosas inspiraram e geraram um apelo compensatório na direção de instituições porque formulavam discurso essencialmente ontológico. Incluo tanto Buda quanto possivelmente Jesus nessa categoria.

Para além das figuras reais, eu acho que dá para tentar exagerar o conceito às suas últimas consequências dentro de perspectivas que o promovem, como os mitos de individuação e mitos anti-míticos que discutimos já na terceira parte do ensaio. É possível que exista um “Jesus dos descondicionados” em qualquer lugar e, na verdade, existiria certa poesia se ele existisse espontaneamente, sem conhecimento nem de sua própria “bíblia” ou culto nas construções míticas desses mitos de negação que mencionamos. O Jesus dos descondicionados, um mortal qualquer, talvez não se desse ao interesse de engajar com complexas redes de articulação verbal.

Este indivíduo verdadeiramente descondicionado poderia portanto passar sem deixar grandes legados, ou legados evidentes, porque lhe faltaria a paixão de identificação com alguma causa com romantizada consequência. Faltaria alguma ideologia a impulsioná-lo. Seu ato, espontâneo e livre de ansiedade, poderia guiá-los nos caminhos mais diversos e por isso, também, possivelmente em alguns dos mais ordinários. Mesmo os estereótipos religiosos mais altos dessa figura na verdade são mais limitados. A figura desse descondicionado em si seria capaz de transcender até a identificação mínima de seus pares (que vão se basear na simplificação do estereótipo).

A depender da opinião que formamos sobre o quanto é possível existir sem mitos, diante do dilema das pressões evolutivas dos mitos como apresentamos, o ato ontológico pode ser um ideal, uma ideia útil de considerar, mas que nunca será atingida, ou então pode ser um propósito capaz de se concretizar de forma prática. Em qualquer um dos casos, é uma ideia útil. No meu caso particular, sou inclinado a acreditar que o ato ontológico existe, mas acho importante reforçar que esse ato ontológico que sou capaz de articular e descrever verbalmente segue sendo, em alguma escala, ainda mítico.

A confusão entre o ato pelo ato e o ato niilista é a raiz da leitura dos mitos anti-míticos como essencialmente niilistas, o que eles não necessariamente precisam sempre ser. A convicção por negação do niilismo é mais rígida, moldada, formal, do que o ato descondicionado que é sempre dinâmico.

O ato pelo ato existe enquanto terreno impossível de se mapear em completude. Toda representação feia a seu respeito envolve sempre alguma proporção e, portanto, uma simplificação generalista. O ato ontológico não é exatamente isso que estou descrevendo, mas talvez essa seja a aproximação suficiente.

O foco no ato ontológico é um bom caminho para promover uma desidentificação importante com a voz da própria consciência. Nesse sentido, a mente pode se tornar outro fenômeno a ser observado, tão externa da identificação do eu quanto o movimento das nuvens no céu. Ao mesmo tempo, essa visão é até mais íntima. Ao distanciar o eu da mente, o que se faz é aprofundá-lo mais ainda nas entranhas silenciosas de si: ser até quando não se pensa, não se fala, não se articula, e ser percebendo silencioso a articulação, das coxias, mesmo quando ela acontece. Nesse estado, o que se faz não carrega uma limitação a nenhum mito. O feito não precisa gerar conforto, obedecer a critérios, gerar pertencimento e nem validação. O feito é feito por si, há uma autorreferência e uma circularidade no seu propósito que direciona a si mesmo. Escrever por escrever, não para ficar rico, sair para passear por sair para passear, não para ser feliz, dormir por dormir, não para acordar produtivo, estudar por estudar, não para tornar-se um gênio. O ato ontológico não precisa de justificativas, nem sonha com seus resultados. Ele busca simplesmente a si mesmo e é a partir de si mesmo que define seu propósito de ser. Dessa forma é, pelo seu desnudamento, também o ato mais livre — talvez o ato do único tipo de liberdade a de fato existir.

E acho que com isso completamos essa apresentação resumida da ideia. É uma ideia mais romântica, um pouco mais esperançosa e bonita até, do que outras que construímos ao longo desse ensaio. Parece portanto um bom lugar para encerrar esse longo texto.

Vamos partir para as despedidas.

Photo by Kelly Sikkema on Unsplash

Cedendo à tentação de deixar esse texto datado

Dessa vez eu consegui. Comecei a escrever esse ensaio em dezembro de 2022. Concluí ele dia 17 de novembro de 2023, após uma longa jornada. A revisão eu encerrei, por sua vez, só no dia 05 de janeiro já de 2024. Quando comecei, não considerava três coisas: que fosse ser um texto tão grande quanto foi, com mais de cento e cinquenta mil palavras; que fosse demorar tanto a ser escrito, tomando mais de um ano; e que eu fosse conseguir concluir algo desse porte, dado os meus fracassos durante cinco anos em tentativas anteriores de formular todas essas ideias.

Acho que dessa vez, com o texto que tenho ao fechar a obra, consegui fazer uma apresentação compreensiva, seguindo uma progressão clara, de toda minha linha de pensamento. É um resumo abrangente feito para ser compreensivo, mas também para ser provisório: se isto é um ensaio, é porque talvez cada um dos capítulos desse texto merecesse possivelmente um livro extenso e mais rigidamente metodológico para cada uma das questões apresentadas.

Agora, com este trabalho de suas trezentas e tantas páginas concluído em sua primeira etapa, passo para a próxima fase de aprofundamento. A qualquer um que ocasionalmente leia tudo isso, fico aberto a qualquer comentário a respeito, ou sugestão de leitura. Imagino que em algum momento eu vá tentar aprofundar e adaptar os temas desse ensaio em uma proposta de tese de doutorado e estou certo de que no futuro vou escrever aprimoramentos e aprofundamentos de tudo que discuti aqui. Então qualquer retorno de sua parte, que me lê, pode ser bastante útil para esses meus próximos passos.

Quero fechar este ensaio com um aforismo que escrevi aos 19 anos, quando tive o longo processo de crise que me levou a iniciar minha jornada pelos estudos, leituras e construções de pensamento. É uma máxima simples, mas que carrega a promessa de representar justamente uma situação de ontologia: o ser por ser, livre de seus significados e perspectivas, livre de adjetivos e parcialidades, livre de mitos. Já a repeti várias vezes em vários trabalhos desde então estas quatro palavrinhas, que talvez sejam o que de mais importante eu já articulei verbalmente, e acho que trazê-las para cá contextualiza sua leitura sob um novo nível de profundidade:

Tudo é;
Algo há;

--

--