Ensaio das expectativas míticas 03

TERCEIRA PARTE

Rodrigo Goldacker
187 min readSep 12, 2023

Capítulo 15: Uma crítica ao idealismo iluminista e uma defesa do pragmatismo mítico.

Preciso dar dois avisos para começarmos este longo argumento que vai tomar boa parte dos próximos três capítulos.

Primeiro, que nestes capítulos vou defender uma opinião que tenho. É algo que acredito que faz sentido e que construo a partir de todas as ideias que estamos discutindo até agora, mas ainda assim se trata de uma opinião. Digo isso também porque se trata de uma opinião um pouco controversa e gostaria de deixar essa ideia central desse capítulo num patamar diferente do restante do texto, como um ponto (ainda mais) provisório do que aquilo que veio antes, no sentido em que debates podem evoluir minhas opiniões a esse respeito.

Segundo, de que a tarefa de defender essa opinião vai envolver uma argumentação com alguns conceitos densos e complexos que até então eu não tinha tido a oportunidade de desenvolver ou de aprofundar nesse ensaio. Por isso, esse pedaço do ensaio é estruturado para duas tarefas: apresentar esses conceitos e usá-los para argumentar meu posicionamento. Isso quer dizer que essa argumentação é mais densa e bagunçada do que foram os desenvolvimentos dos capítulos anteriores, já que estou ocupado de mais coisas diferentes ao mesmo tempo. Sobre os conceitos complexos, eu me sinto mais confortável para mantê-los no mesmo patamar de tudo antes apresentado, mesmo que eles direcionem para minha já mencionada opinião que está num patamar abaixo.

Para simplificar o processo, porém, quero começar apresentando qual é afinal essa opinião que pretendo defender, antes de passar para os conceitos que vou usar para embasar meu argumento.

A ideia é controversa, mas relativamente simples: eu acredito que, dada a situação mítica, é necessário

  1. desistir do mito iluminista em larga escala como um projeto
  2. optar por uma regulação mais responsável dos mitos que circulam socialmente

Essa ideia pode não parecer tão controversa quando escrita desse jeito mais abstrato, mas isso quer dizer que sou ao mesmo tempo contrário a uma liberdade religiosa sem restrições e contrário à ideia de que seja viável secularizar e tornar racional a sociedade como um todo em detrimento de todos os tipos de demandas míticas.

Embora esteja certo de que essa será a crítica mais forte possível de se fazer ao que vou dizer, quero tentar me antecipar ao reforçar que não é minha intenção parecer paternalista nos meus argumentos. Então gostaria de destacar ainda nessa introdução que o meu posicionamento a respeito é mais motivado pelo que eu entendo como um caminho pragmático do que pelo que eu entendo como um caminho ideal. Idealmente, eu até que gostaria de uma sociedade na qual o caminho racional e um secularismo absoluto fossem viáveis. Talvez, enquanto ideal, fosse melhor mesmo que este caminho racional representasse o único jeito de seguir em frente para o futuro. Seria mais fácil acreditar na utopia do mito iluminista de que estamos todos rumando para um lindo futuro de humanos libertos das amarras de qualquer pensamento mítico. Mas eu não acredito que esse é o caso e, dada a realidade que temos, eu acredito que trabalhar sob as demandas, moldes e expectativas desse mito iluminista acaba sendo irresponsável e perigoso.

Basicamente, esse é o desenho do que quero discutir. Vamos agora começar a nos aprofundar nos motivos para que eu tenha esses posicionamentos.

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A ética do oferecimento de mitos

Mencionamos algumas vezes anteriormente nesse ensaio, mas é importante repetir agora e reforçar com mais intensidade as ideias de que a desidentificação a mitos não é algo para todo mundo, de que a individuação profunda só funciona em casos muito específicos e nichados que normalmente envolvem grandes privilégios e de que, em certas situações, tentar privar pessoas vulnerabilizadas de determinados mitos pode ser muito cruel.

Imaginemos uma mãe que perdeu recentemente um filho criança, uma mãe que encontra alento e conforto diante de seu trauma em alguma religião e na ideia de que seu filho foi para o céu. Seria cruel e desnecessário tentar privar essa mãe que já está em situação de sofrimento da narrativa que para ela é importante ao entregar algum alento. Ansiosos, depressivos, pessoas lidando com traumas, não raro todas essas pessoas encontram conteúdos míticos que as beneficiam de alguma maneira ao entregar conforto, propósito, pertencimento, autoestima, fundamentos na identificação para construir a identidade, etc.

Além disso, como já mencionamos, nem toda a desidentificação a um mito anterior é o início de um processo individuatório. Ao invés disso, o abandono de um mito velho pode acarretar, no extremo oposto, numa nova identificação mais fanática a um novo mito. Voltando aos exemplos históricos, uma ruptura como aquela que aconteceu com a chegada da Revolução Industrial acabou por gerar discursos ideológicos reacionários pós-industrialização que eram nostálgicos, extremistas na sua defesa do passado e que, em alguma medida, foram sementes narrativas para lidar com o trauma da ruptura mítica que seguiram dando frutos até os fascismos europeus que brotaram muitas décadas mais tarde.

Mas ao mesmo tempo, o dilema ético do mito está justamente em quando deixa de ser correto simplesmente permitir o alento mítico, sem um discurso mais secular que o contraponha e conteste.

Quero dar três exemplos para explicar o que quero dizer com isso.

Três exemplos sobre mitos com dilemas éticos

Foto da igreja matriz da ciência cristã, em Boston. Retirada da Wikipedia, aqui.

1. Ciência Cristã

Para começar, acho que nada pode ser mais elucidativo do que o caso da Ciência Cristã, seita que, apesar do nome, não é absolutamente em nada científica e para a qual é situação de debate até mesmo se é cristã.

Vou tentar apresentar essa seita de forma resumida em diversos sentidos, mas é importante contextualizá-la para que o exemplo funcione. A Ciência Cristã é uma religião relativamente jovem que surgiu no finalzinho do século dezenove, nos Estados Unidos, a partir de uma mulher chamada Mary Baker Eddy.

Não vou me demorar muito em explicar todos os pormenores, mas acho importante destacar que a Ciência Cristã não é exatamente cristã porque, embora teoricamente exista um cristianismo que participa dela, esse cristianismo parece sobretudo secundário ao livro que a própria Mary escreveu como principal fundamento para sua fé. Sempre que existe uma contradição entre o que diz a doutrina de Mary e o que dizem outras doutrinas cristãs da Bíblia, é a doutrina de Mary que fica por cima.

Várias ideias do cristianismo tradicional, inclusive sobre o status de Jesus Cristo como alguém de alguma maneira transcendental, são ressignificadas na Ciência Cristã a partir de leituras muito particulares: por exemplo, a própria palavra “Deus” para a Ciência Cristã, como também “mente”, “espírito”, “infinito” e “pessoa”, possuem significados muitíssimo específicos, muito próprios e densos, que não tem muita relação com a ideia mais geral que fazemos dessas palavras no senso comum e que também não se relacionam bem com os significados mesmo de denominações cristãs. A figura de Jesus Cristo é vista como um primeiro “terapeuta”, também no sentido que a a Ciência Cristã dá para esse termo, e a crucificação em si é ressignificada de uma maneira particular que distorce e reinventa tudo que o cristianismo costuma atribuir para esse evento tão simbólico.

É por isso que não considero a Ciência Cristã necessariamente uma vertente do cristianismo e acredito que a própria tentativa de aproximá-la dos cristãos seja mais uma estratégia de campo religioso, em que a seita tenta ganhar certo endosso ao se associar a credos mais aceitos e populares — e assim se passar como só outra variação entre as inúmeras do protestantismo. Acho importante destacar que na Ciência Cristã é o livro de Mary Baker (que chama algo como “Ciência e Saúde com Chaves das Escrituras”, na sua última edição) que está como protagonista, muito mais importante do que a Bíblia. E seguindo a mesma lógica, Mary Baker Eddy em si e suas ideias originais são muito mais importantes do que Jesus Cristo, Deus, ou do que qualquer profeta cristão.

Pelo lado da ciência, a argumentação não precisa se aprofundar tanto nos motivos pelos quais a Ciência Cristã não é científica. Na verdade, a Ciência Cristã é uma seita quase que totalmente reacionária à ciência como um todo — e isso se explica pelo contexto de sua criação. O foco principal da Ciência Cristã está num suposto poder curativo através da oração e da fé, bem como numa negação completa de qualquer tratamento de outro tipo.

Se eu tivesse que tentar explicar isso de alguma maneira, eu diria para você, leitor, imaginar aquele ponto de vista preconceituoso e antiquado que trata doenças mentais como a depressão tal fossem “coisa da sua cabeça”, aquela leitura limitada que aconselharia quem tem depressão a resolver isso simplesmente ficando feliz, como se a mudança de estado mental fosse algo capaz de acontecer num estalo, uma mera questão de opinião. Uma variação disso diz que a depressão é algo que pode ser curado com orações e essa versão ainda existe com muita força hoje. No Brasil, é comum ver relatos de evangélicos que dizem que a igreja curou-lhes de uma depressão.

Mas o avanço e os resultados da ciência e especialmente da medicina deixaram mais difícil que essa abordagem seja usada para problemas que não sejam mentais. Por exemplo, mesmo entre os evangélicos um tumor aparente e horroroso pode ser teoricamente “resolvido” com ajuda de orações, mas essas orações não costumam antagonizar ou proibir que a pessoa vá também aos médicos e faça quimioterapia. Existem evangélicos que dizem que se curaram do câncer com ajuda de Deus, mas normalmente eles pediram ajuda tanto dos pastores quanto dos oncologistas.

Existem alguns exemplos mais extremos, como no caso de quem nega transfusões de sangue em alguns grupos religiosos. Mas a Ciência Cristã vai além disso. Nela, todo tipo de tratamento médico é desencorajado. Existem algumas poucas exceções para coisas como idas ao dentista e, quando confrontados com isso, os membros da Ciência Cristã dizem que “ninguém da fé é obrigado a deixar de fazer nada que queira”, mas vou dar alguns exemplos que mostram um pouco de como isso não é verdade. Por enquanto, vale explicar que para a Ciência Cristã as doenças são ilusões mentais, a matéria em si de certa forma é uma ilusão, e qualquer condição de qualquer tipo pode ser resolvida com orações e com o poder da mente.

Acho importante destacar algo interessante sobre o contexto de criação da Ciência Cristã, sua rápida ascensão e sua lenta decadência. Quando essa fé surgiu, no final do século dezenove, a ciência médica ainda era muito mais incerta e perigosa do que é hoje. A Ciência Cristã desencorajava o tratamento com medicina, mas também desencorajava um estilo de vida destrutivo, sendo contrária por exemplo ao consumo de álcool e cigarro. Nas primeiras décadas da Ciência Cristã, a expectativa de vida dos membros da fé era, curiosamente, maior do que das pessoas que recorriam à medicina tradicional e tinham hábitos ruins de saúde. Mas a ciência evoluiu rápido e com o tempo se tornou mais segura e confiável. Se a Ciência Cristã nasceu e se popularizou num contexto de surgimento de uma ciência médica que ainda era pouco eficiente e pouco confiável, quanto mais confiável e eficiente esta ciência médica se tornou, mais decaiu a Ciência Cristã enquanto instituição.

Hoje, a Ciência Cristã é uma fé decadente, com cada vez menos membros e em vias de sumir. Mas seus momentos de maior popularidade permitiram que fossem capazes inclusive de mudar a legislação de determinados estados dos Estados Unidos para que a negligência médica e a omissão de socorro não fossem criminalizadas quando acontecessem por motivos de fé.

Em alguns lugares dos Estados Unidos, essa mudança na legislação permite até hoje que pais da Ciência Cristã chamem exclusivamente “terapeutas” dessa fé, e não médicos de verdade, para não fazerem nada além de orar diante de seus filhos que estejam agonizando com meningite, ou câncer, ou qualquer outra doença. Eu não vou me aprofundar nos detalhes, mas há vários relatos de casos terríveis em que crianças agonizaram até morrerem, sendo “tratadas” só com orações, por estarem com doenças que poderiam ter sido tratadas.

E os membros da Ciência Cristã não são perigosos só para si mesmos e seus familiares. Eles são um problema de saúde pública, um verdadeiro vetor de doenças, porque também não se vacinam. Esforços médicos em larga escala são dificultados pelos membros da Ciência Cristã frequentemente.

Esse exemplo todo que dei sobre a Ciência Cristã é importante justamente pelo dilema que essa questão traz sobre liberdade religiosa, ética diante do sofrimento e da irresponsabilidade, e também responsabilidade sobre os discursos que circulam na esfera pública. É justo que deixemos crianças sofrendo e agonizando com doenças tratáveis, morrendo após observarem por anos tumores inchando, ou morrendo por meningites que poderiam ter sido tratadas, ou morrendo por qualquer outra doença, para preservar a liberdade religiosa dos membros da Ciência Cristã? É justo que o conforto mítico e terapêutico que a Ciência Cristã enquanto mito traz aos seus membros, é justo que o sentimento de pertencimento e de controle ilusório sobre as doenças oriundos desta instituição, prejudiquem iniciativas seculares de controle de doenças?

Eu particularmente, pessoalmente, acho que não, não é justo. Mas a discussão tem mais nuances do que só isso e é por isso que tenho outros exemplos para além deste da Ciência Cristã. Antes de seguir para os próximos, vale só pensar, no caso da Ciência cristã ainda: quando exatamente deixou de ser justo permitir que o antagonismo à medicina se propague? Quando exatamente podemos demarcar que a ciência se tornou mais confiável e eficiente do que o mito da Ciência Cristã? Quando o movimento surgiu, na situação histórica de uma medicina que como mencionamos ainda era limitada e precária, essa religião parecia fazer muito mais sentido — e me incomoda muito menos pensar na Ciência Cristã do final do século XIX e começo do século XX do que na Ciência Cristã do que me incomoda pensar nela no começo do século XXI, deixando que crianças ainda morram de doenças tratáveis até hoje.

Enfim. Sobre a Ciência Cristã, é isso. Vou deixar uma recomendação do vídeo“ God’s Alternative Medicine | Christian Science”, do canal Knowing Better, no Youtube, para quem quiser saber mais sobre essa fé particularmente. São mais de duas horas explicando tudo que há pra se saber sobre a história da Ciência Cristã, com todos os links de referências apropriadas para o que é mencionado. Foi deste vídeo e das referências que o canal usou de fonte que tirei todas as informações que citei mais superficialmente. Há outros estudos mais aprofundados de acadêmicos propriamente, mas deixo a “citação da citação” já que o próprio vídeo já as menciona.

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2. Uma família católica no interior paulista

Meu próximo exemplo é pessoal, algo que eu vi acontecer. Quero dar esse exemplo específico porque acho que, mesmo anedótico, simboliza bastante dos dilemas que encontro nessa questão da ética mítica. Também vou dar esse exemplo porque tenho a oportunidade de mencionar algo que vi, mas sem expor os envolvidos. Não vou citar nomes e acredito ser basicamente impossível que qualquer um da família que vou mencionar leia esse texto aqui.

Até bem recentemente, eu morava com minha esposa numa cidadezinha do interior de São Paulo onde o catolicismo ainda é muito forte. No tempo em que moramos lá, conhecemos uma família da cidade que passava por dificuldades: marido e esposa, dois filhos crianças. O marido era um bom “faz tudo” e nos ajudou algumas vezes em alguns consertos pela chácara: ajudou a subir um portão, a fazer uma gaiola para os coelhos, coisas assim. Gostávamos de chamá-lo quando aparecia alguma coisa, não só porque ele era bom nisso, mas porque sabíamos que a família passava dificuldades financeiras e que qualquer dinheiro seria ajuda para eles. Movimentos desse tipo são bem comuns no Brasil, especialmente no interior, e são naturalizados; acho divertido pensar o quanto se discute agora o que se chama de “gig economy” só porque acontece mais descaradamente nos centros urbanos e afeta também algumas camadas mais abastadas às vezes, mas a precarização no Brasil é mais norma do que exceção — reforço, especialmente no interior.

A família foi ficando nossa amiga, as crianças vinham às vezes em casa passar o dia jogando videogame, assistindo desenho na televisão, brincando com nossas cachorras. Era uma família também muito religiosa que ia frequentemente à igreja.

A mulher ficou grávida de uma terceira criança. A família toda comemorou. Vendo de fora, eu e minha esposa ficamos um pouco preocupados porque sabíamos que eles já mal estavam segurando as pontas na parte financeira antes, com os dois filhos que já tinham. Não nos metemos, porque afinal não era da nossa conta, mas sabíamos que o casamento estava em crise e que para o marido o nascimento de mais um filho era algo que ele gostaria muito que acontecesse. Temos uma desconfiança de que a gravidez começou com a esperança de resolver o casamento e mantê-los juntos, também algo muito comum no Brasil.

A gravidez seguiu por meses e avançou bastante antes que a mulher perdesse o bebê. O médico disse para ela que a gravidez tinha sido de risco e que ela não deveria tentar engravidar de novo. Mas os problemas do casamento dela estavam lá ainda, como estava lá ainda também a igreja, como estava lá ainda também a vontade de gerar outro filho por parte do casal. E ela apareceu grávida mais uma vez pouco tempo depois.

A segunda gravidez deixou eu e minha esposa preocupados de novo, mas não nos envolvemos. Quando ficamos sabendo que a gravidez era de risco, ouvimos argumentos religiosos, que a família devia ter encontrado no conforto da igreja, de que dessa vez a fé e Deus fariam a criança nascer.

A criança não nasceu. E dessa vez, a mãe faleceu por conta da gravidez. Ficaram o pai, que tem problemas financeiros e não tinha costume de lidar com a rotina de casa das crianças, e as duas crianças. Os avós entraram para ajudar a cuidar das crianças dessa vez. A religião, mais uma vez, vem sendo um conforto importante para a família.

Essa história é muito triste e mexeu muito comigo e com minha esposa quando ficamos sabendo do desfecho, especialmente porque acompanhamos cada etapa e, por maior que já fosse nosso pessimismo sobre os caminhos que aquela família estava tomando, não imaginamos antes que o final pudesse ser tão ruim assim. Mas essa história também me despertou muitas reflexões sobre todo o processo envolvido, especialmente na participação da religião em cada etapa.

Por um lado, eu fico incomodado com o conforto e validação que a mãe encontrou na igreja quando saía da primeira gravidez e tomou a decisão de seguir com a segunda. Fico incomodado com a ideia de que a mãe conseguiu negar a realidade do que vivia, a tragédia de ter perdido um filho e o amargor de talvez não ter que ser mãe nunca mais. Fico incomodado que o discurso da fé foi suficiente para que ela desobedecesse as recomendações médicas e engravidasse de novo. A felicidade que vi no rosto dela nas últimas vezes que a encontrei viva, com um vestido vermelho bonito de uma festa de igreja e com a barriga de grávida, é algo que me marcou bastante. Ela suprimiu totalmente a dor e a tristeza da primeira gravidez que não deu certo, da desesperança de não tentar mais uma vez, e foi para a segunda tentativa de gravidez com uma motivação eufórica.

Se ela não tivesse usado a religião dessa forma e tivesse aceitado o discurso do médico, ela teria passado os meses seguintes à primeira gravidez muito triste e melancólica, provavelmente muito depressiva, lidando com uma falta terrível. Usando a religião como usou, a falta foi “preenchida”, ou escondida/negada, e ela passou aqueles meses como uma mulher feliz, esperançosa, cheia de vida e de expectativas, otimista de que a segunda gravidez daria certo com a ajuda de Deus e de que aquele seria o começo feliz de uma nova fase da sua vida, do seu casamento, da sua experiência como mãe.

Mas no cenário em que ela ficaria depressiva ao invés de feliz, no cenário em que ela olharia para a precariedade e para o discurso médico que não atendia às suas expectativas míticas, ao invés de encontrar conforto terapêutico no otimismo mítico que extraiu de sua leitura da própria fé, nesse cenário mais amargo e pragmático, ela provavelmente ainda estaria viva, mesmo que mais infeliz por um tempo.

Ao mesmo tempo, eu não acho que ela pudesse realmente passar pela experiência traumática que estava passando sem conforto nenhum, sem nenhum mito que suprisse suas precariedades. Eu acho que ela poderia ter encontrado um mito mais responsável que levasse mais em consideração as recomendações médicas, mas é difícil apontar com precisão se esse discurso teria sido suficiente: afinal esse discurso existe, ela provavelmente sabia que existe, e mesmo assim seguiu com o mito que seguiu porque era aquele que atendia melhor ao que ela gostaria de (acho que mais do que gostaria, talvez até precisasse) acreditar.

E por outro lado, olhando especialmente aos filhos vivos que ficaram sem mãe, eu não consigo imaginar qualquer outra realidade que não seja aquela em que eles ficam um bom tempo imersos em mitos muito potentes, em uma fé poderosa, para dar sentido para o trauma que viveram, para articularem suas dores de uma forma que não seja cruel. Seria impensável para mim que alguém se aproximasse do menino mais novo que ficou sem a mãe e tentasse desiludi-lo com algum discurso secular, cientificista e ateu.

Existe certamente uma análise sociológica muito técnica a ser feita sobre esse caso, sobre como esse caso conversa com as realidades mais gerais do Brasil, sobre como esse caso não é algo isolado, mas só outro exemplo sintomático de todas as doenças culturais e precariedades que afetam profundamente o povo brasileiro. Mas essa análise sociológica não vai servir de nada para esse menino agora. Estranhamente, o que mais o ajuda nesse momento é o mesmo discurso fácil de conforto da fé. Discurso este que, de certa forma, ao mesmo tempo em que é útil e necessário como conforto diante do trauma, também é parcialmente responsável inclusive por incentivar a negligência da mãe que gerou o trauma que ele sofreu.

Acho que esse exemplo, mais do que o primeiro, mostra melhor as ambivalências sobre a discussão mítica. Eu poderia seguir com vários outros, em todas as escalas: os locais, das pessoas que conheço que se arruinaram com igrejas ou esquemas de pirâmide, ou da pequena seita fanática que fez ataques químicos no metrô do Japão, ou ainda da igreja de Jim Jones, que acabou com o maior suicídio coletivo já registrado na história humana… Conheço de cabeça vários causos sobre mitos que terminaram muito mal, religiosos e seculares, porque esse é um assunto que muito me interessa e que sempre me deixa cheio de dúvidas e reflexões.

Mas eu acho que quero terminar com um exemplo um pouco diferente, ainda na realidade brasileira.

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3. O projeto de poder evangélico

As igrejas evangélicas brasileiras não são extremistas no sentido de uma negação da realidade e dos fatos científicos, pelo menos não como uma ameaça suficientemente preocupante. Como mencionei antes, ocasionalmente elas dizem que orações curam depressão, ou aproveitam outros reducionismos do tipo em propagandas na televisão, e ocasionalmente foram antivacina pelo que me parece ter sido uma aliança política amalgamada que tinham firmado a Bolsonaro e a teorias de conspiração da direita no geral.

Ao mesmo tempo, se existem os testemunhos milagrosos de quem se curou de câncer pelo poder da fé (e do dízimo), eu não acho que exista um antagonismo institucionalizado à oncologia como um todo. De certa forma, as grandes igrejas evangélicas brasileiras são mais maleáveis e menos extremistas do que algo de nicho como a Ciência Cristã. Elas atacam partes específicas da ciência, certamente, indo das sabotagens as pesquisas sobre possíveis benefícios do aborto à sabotagem ao ensino da teoria da evolução, mas não é algo tão abrangente quanto a negação de toda a medicina como é proposta pela Ciência Cristã.

A ameaça das igrejas evangélicas brasileiras acontece mais em outra escala: no explícito planejamento de um projeto de poder inteiro. A irresponsabilidade da inação frente a essas igrejas não vai fazer necessariamente com que uma criança morra por omissão de socorro porque nenhum pastor vai proibir que pais levem seus filhos ao médico, nem nada tão concreto e direto desse tipo. Mas a inação nesse caso pode acarretar em um Brasil que se torna menos secular e laico, o que talvez sabote o financiamento da saúde pública como um todo.

Mas o risco maior é político e é a partir dele que nascem implicações para todo resto. Eu acho que não é uma aposta absurda demais de se considerar a de que, se continuarem ganhando poder político e popularidade, os movimentos evangélicos principais do Brasil ficariam muito confortáveis e nada tímidos em tentar instituir alguma espécie de regime autoritário de religião única no país.

Eu não sei o quanto isso é realmente viável no Brasil. Por um lado, parece para mim algo apocalíptico demais. Por outro, o Brasil já me surpreendeu antes concretizando absurdos que me pareceriam apocalípticos antes de acontecerem. Em todo caso, o que importa não é o exercício de futurologia, mas um exercício sobre a situação que já existe no presente: no Brasil de 2023, o ano em que escrevo isso, os evangélicos já possuem um protagonismo político considerável e já faz muito tempo que eles falam explicitamente sobre seu projeto de poder para o país. Eles já mexem em legislações com a bancada evangélica, mais intensa e frequentemente do que algo como fez a Ciência Cristã na legislação dos estados norte-americanos, e ainda não estão satisfeitos com o poder político que já conquistaram. É muito provável que o próximo presidente de direita do Brasil tenha que se declarar evangélico para ser eleito. É provável até mesmo que algum possível futuro presidente do Brasil tenha que se declarar evangélico também para conquistar uma eleição mesmo sendo de esquerda.

Esse projeto de poder passa pelo mito evangélico que, em muitas periferias, é mais competente do que qualquer instituição do estado oficial em garantir conforto, propósito, significado, pertencimento, interação social, valores básicos de socialização. Tudo isso é envolto em cinismo hipócrita de muita gente e em oportunismo para fazer dinheiro? Em muitos casos sim, mas não são todos. Mais ainda, acho que não são nem os casos em situação de maioria, ou pelo menos esses casos não sobrepõem a importância e a função social do que o mito evangélico entrega à sociedade brasileira.

Do mesmo jeito que mencionei lá em cima que a meritocracia tem uma função social de garantir estabilidade e uma função individual de garantir algum conforto para quem acredita nela, eu vejo que o mito cristão evangélico entrega essas duas coisas muito bem num Brasil em que, inclusive, a religião cresce justamente na ausência de efetividade dos discursos e estruturas seculares. Nas periferias do país, eu entendo que pessoas em situação precária acreditem mais no evangelho do que na meritocracia — de forma parecida a como entendo quem acreditava na Ciência Cristã frente à precariedade da ciência médica no século XIX. E em determinados lugares, igrejas com ações sociais são mesmo mais eficientes em realizar caridade do que o Estado.

De novo, não quero parecer paternalista e cair no discurso reducionista de que a religião é uma espécie de “ópio do povo”, no sentido em que afeta exclusivamente os mais pobres. Gente de todos os estratos sociais, no Brasil e no mundo todo, envolve-se com mitos de todos os tipos.

Ao mesmo tempo, eu acho que existe uma certa adaptação de discursos religiosos que se envolve também com questões de classe. Do mesmo jeito que a deturpação romana do cristianismo tentava adaptar o mito para atender algumas de suas necessidades, eu vejo adaptação semelhante no que, por exemplo, os grupos de umbanda formados por brancos de classe média e alta fazem com as religiões de matriz africana, ou na maneira como o espiritismo kardecista parece atender muito bem os interesses míticos especialmente das classes médias e das elites, ou até mesmo em como o mito do empreendedorismo é atraente para camadas específicas sobretudo das classes médias. Na mesma seara, há motivos para que o discurso da teologia da prosperidade tenha florescido mais nas igrejas da periferia do que nas igrejas do Itaim Bibi. No Brasil, faz mesmo bastante sentido que um pobre acredite que talvez só um milagre de Deus vá fazer com que ele ascenda socialmente. Esse milagre de Deus para ascender não faz sentido e não tem apelo para quem já ascendeu.

O aprofundamento nesses exemplos que trouxe são só a abertura do meu argumento, mas já tomaram tanto espaço que vou quebrar para um próximo capítulo.

Capítulo 16: Como regular a circulação de mitos?

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Com os exemplos dados para contextualizar, acho que o mais importante nessa discussão é pensar no seguinte: uma instituição que ofereça e institucionalize discursos míticos, que concentre capital simbólico no melhor sentido dos estudos de Bourdieu (e alguém já deve ter percebido como venho usando um pouco dele nesse ensaio e como vou usar mais ainda daqui para frente), é uma instituição que tem poder.

Esse poder pode ou não ser minimamente regulado e, se não for regulado ou se for regulado de maneira ineficiente, esse poder pode ser instrumentalizado para fins de um projeto de poder de qualquer tipo, inclusive dos que envolvem alguma mudança política perene, como é o caso no ambicioso projeto de poder dos evangélicos no Brasil. Mesmo sem que se realize, o projeto em si, que é viabilizado e construído a partir do engatilhamento do mito como ferramenta (talvez como arma), já é algo preocupante e que precisa ser considerado seriamente.

Outro exemplo útil: quando tanto se discute sobre fake news e sobre responsabilização pelo que é dito nas conversas sobre política, essa discussão toda costuma se focar mais em falsidades que estejam na esfera dos discursos seculares. A discussão sobre fake news na pandemia, por exemplo, focava muito mais em tentar desmontar a ideia de que as vacinas vinham com chips do Bill Gates para rastrear as pessoas, do que desmontar a ideia de que quem tem fé não precisa ser vacinado porque vai ser protegido por Jesus. Essas duas ideias circularam durante a pandemia, essas duas ideias muito provavelmente causaram mortes em grau no mínimo semelhante, mas o desmonte da primeira é posto mais em foco do que a segunda.

Sob o ponto de vista secular, faz sentido: a ideia dos chips é algo que pode ser desmentido racionalmente, apelando para argumentos, para a razão. Mesmo isso não funciona sempre porque, como vimos no capítulo anterior, até nos mitos políticos e supostamente razoáveis ainda existe muito mais no convencimento e na identificação do que só uma avaliação racional dos fatos. Mas o discurso sobre a proteção de Jesus impede até mesmo que essa primeira camada de diálogo aconteça de forma diferente: por onde começar a argumentar com alguém que acredita não precisar de vacinas por ter Jesus?

Seguindo pelo mesmo caminho, é ponto de debate atualmente a importância de não deixar que se disseminem discursos autoritários, sobretudo os fascistas, que possam desestabilizar governos. Mas de novo, essa discussão caminha principalmente na esfera das fake news dos discursos seculares: podemos tentar combater as conspirações sobre urnas eleitorais, sobre uma elite globalista que quer dominar o mundo inteiro, mas não é uma discussão do mesmo tipo quando a desestabilização do governo acontece por um grupo ter fé de que o governo secular é permissivo com o pecado e que a nação tem que deixar de ser laica.

Em outras palavras, muito já se diz que, sem regulação e controle, discursos do fascismo vão continuar crescendo, apelando para os reducionismos mais básicos e simplistas para conquistar alguma popularidade populista, e que não vão parar só com lucidez argumentativa, debates educados e boa vontade. Não vão parar só com isso e, sem serem parados, provavelmente vão continuar escalonando até conquistarem o poder absoluto que buscam. Argumenta-se hoje pela regulamentação de plataformas como o Facebook justamente porque se entende que o engajamento, que também é uma reatividade mítica, é muito pouco racional e que pode ser direcionado ou não de determinadas maneiras mais ou menos responsáveis.

Mas ainda na esfera mítica, discursos religiosos podem seguir exatamente os mesmos passos, aproveitando-se de exatamente a mesma estrutura. Voltando ao exemplo dos romanos frente ao cristianismo, existe um outro lado que não discutimos antes e que acredito fazer sentido citar: de certa maneira, fazia sentido que os romanos tenham tentado frear o cristianismo, dada sua natureza irredutível. O cristianismo que cresceu não foi de forma alguma um defensor da diversidade religiosa quando alcançou o poder e perseguiu os pagãos e qualquer outra religião no processo para consolidar seu monopólio religioso. A religião cristã não foi freada dessa guinada ao monopólio nem pelas tentativas de opressão violenta por parte dos romanos (na verdade, essa opressão pode ter impulsionado a religião cristã mais ainda) e certamente não teria sido freada por um debate justo e comedido sobre a convivência pacífica entre diferentes fés. A força pura do mito naquele momento, sua potência inegável diante daqueles que a partir dessa força deram poder para a instituição, era totalizante demais para qualquer coisa diferente de uma revolução religiosa absoluta e uma monopolização religiosa consequente para consolidar aliados e poder.

A ideia do mito iluminista é de que todas as pessoas são sempre capazes de tomar as decisões mais racionais, de agir isentas de emoções e mitos, e de que o “livre mercado de ideias” é autorregulado de maneira justa e de acordo com o quão coerentes algumas ideias são em comparação com outras. E hoje a própria razão, em estudos diversos na psicologia como um todo e mais especificamente na psicologia da publicidade, garante que a ideia de que agimos racionalmente é em si mesma um mito. Agimos por emoção, por pertencimento, por alívio mítico, por preguiça ou incapacidade de confrontar nossos vieses, por uma série de motivos que nem sempre são racionais ou que, pelo menos, são racionais num sentido mais autocentrado, de acordo com nossos interesses particulares, do que motivados por um justíssimo, neutro e isento confrontar de ideias na esfera da racionalidade com os belos ideais iluministas. A identificação com mitos é um processo da identidade que leva em consideração vários critérios e a razão é só um deles, isso quando não é desconsiderada totalmente por outras coisas como vontade psicótica, pressão dos significados sociais, proximidade do mito aos fundamentos do mito do Eu, ou precariedades muito intensas que demandam por algum conforto mítico suficiente em resposta.

Se mesmo para as conspirações seculares (como chips dentro das vacinas) é insuficiente a metodologia do mito iluminista de tentar resolver na base da argumentação, para os mitos menos seculares essa argumentação é menos eficiente ainda. O projeto de poder dos evangélicos brasileiros não vai ser desmontado com base em debates muito lúcidos na esfera pública. Eu gostaria que fosse assim, acho as ideias do mito iluminista até bonitas, mas simplesmente não é desse jeito que as coisas funcionam. Não funcionam assim lá fora nem nos países ditos “desenvolvidos”, especialmente com a crescente espetacularização dos discursos (espetacularização esta que serve para torná-los de certa forma mais palatáveis como mitos, inclusive), e definitivamente não funciona assim no Brasil.

É importante considerar que mitos de todo tipo, não só os políticos e seculares, podem estar associados a projetos de poder. O mito iluminista mesmo, quando surgiu com sua potência totalizante, aproveitou-se da decadência do cristianismo à época e da crescente euforia com os avanços científicos. Era um mito otimista, esperançoso e dotado de sua própria potência ao argumentar que estava no porvir uma era de pessoas cada vez mais racionais, uma era que nos lançaria a um estado de utopia com sociedades cada vez menos míticas e consequentemente mais “avançadas” e “perfeitas”. Em alguns casos, inclusive, o próprio mito iluminista tentou a mesma abordagem que o cristianismo havia tentado com seus antecessores, como quando a Revolução Francesa tentou instituir uma proibição da religião e exigir uma sociedade completamente ateia e secularizada — algo que fracassou rapidamente.

Esse exemplo dos iluministas franceses é interessante no sentido em que mostra que uma proibição absoluta dos mitos não seria suficiente mesmo se fosse controlada pelo Estado. Os comunistas soviéticos e os nazistas alemães também flertaram com projetos míticos autoritários que pretendiam substituir a religião por um mito totalizante de Estado, mas também não conseguiram, enquanto na China e na Coreia do Norte esse tipo de projeto parece ter dado mais certo no esvaziamento das linhas religiosas tradicionais.

Sou contrário à proibição dos mitos porque, como mencionei em alguns dos exemplos, esses mitos possuem funções sociais de pertencimento, coesão social, autoestima, conforto e alívio terapêutico. Numa discussão sobre ética dos mitos, é importante ressaltar isso. Mas a proibição também não funcionaria por questões pragmáticas, por demandas míticas que seguiram existindo sem serem atendidas, e nesse sentido existe uma promessa de “proibição sutil” dos mitos iluministas que as sociedades seculares tentam empregar até hoje e que também não vai funcionar. Existem certas demandas que certas pessoas possuem que simplesmente não são atendidas por mitos iluministas, pelos discursos racionais e pela esfera secular. Nem todo mundo quer passar pela estressante, amarga, profunda e desafiadora jornada existencial de lidar com a própria mortalidade sem o apoio de mitos sobre reencarnação ou além-vida, só para trazer um único e fácil exemplo.

Isso é importante de ser mencionado porque acho que deixa mais evidenciado o meu posicionamento que não é de exageros, mas de nuances em busca de um certo pragmatismo social ao lidar com mitos. Não sou favorável ao caos de discursos míticos que circulem sem nenhuma regulamentação, mas também não sou favorável à ideia de proibir mitos absolutamente, ou de trabalhar com a expectativa de que eles deveriam deixar de existir, nem mesmo com uma sabotagem gradual para com eles.

Evidentemente, falar de uma regulamentação mítica é algo que envolve outras esferas nas quais não vou nem me atrever a tentar aprofundar, aproveitando do fato de que posso fugir dessas questões que não domino por isso aqui ser um ensaio. Mas talvez você esteja agora mesmo pensando algo como: “quem vai regular mitos?” e a verdade é que eu também não sei exatamente. Qualquer tentativa poderia facilmente decair para um projeto autoritário por qualquer tipo de Estado que tentasse fazê-lo.

Talvez, se isso for feito, tenha que acontecer como uma mudança mais cultural e estrutural na sociedade, especialmente na desconstrução das expectativas do mito iluminista de “expurgar os mitos da vida das pessoas” porque essas expectativas não só são ineficientes como desviam atenção das conversas de regulamentação e controle e, pelo efeito rebote compensatório, acabam até mesmo fortalecendo os mitos que querem expurgar.

No geral, eu fico mais confortável em considerar que uma regulamentação mítica parta não necessária ou exclusivamente de projetos de Estado, mas de uma mudança de comportamento por parte dos meios de comunicação e academias. Acho que também passa, no que o Estado diz respeito, minimamente por uma regulamentação dos mitos que podem circular, responsabilizando questões básicas como evitar que antagonizem a ciência, as vacinas, que se vinculem a discursos políticos para dizer que determinado candidato ou espectro político é o “escolhido de Deus” de forma tão explícita. Na mesma toada, acredito que é importante focar especialmente nos mitos totalizantes com aspectos de totalitarismo. Também acho que a discussão sobre regulamentação de redes sociais é positiva nesse sentido já que, de certa forma, regular estas redes sociais é justamente regular os mitos de nicho que transitam em espaços digitais, responsabilizando quem os faz circular quando forem socialmente nocivos.

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Um exemplo bobo sobre uma hipotética Ciência Cristã brasileira

Vou voltar ao exemplo exagerado da Ciência Cristã para dar um exemplo de como a regulamentação poderia resolver o problema. Vamos supor, para bem do exemplo, que ao invés de ser um movimento religioso decadente dos Estados Unidos, a Ciência Cristã é um movimento em ascensão nas periferias brasileiras. No nosso exemplo, esse movimento religioso está prejudicando todas as ações de saúde para combater poliomielite, dengue, AIDs, enfim, basicamente todas as doenças.

Se a Ciência Cristã fosse tão popular assim no Brasil, ela certamente estaria também muito presente na Internet brasileira.

Um bom primeiro passo para o problema poderia ser a regulamentação de redes sociais, desmontando o impulsionamento de campanhas favoráveis à Ciência Cristã em plataformas como o Google e o Facebook, condicionando que mitos de todo o tipo podem circular na rede, desde que sejam responsáveis e não antagonizem a medicina em larga escala. Uma lista de termos associados à Ciência Cristã poderia ser adicionado a uma lista que reduziria o alcance de conteúdos, marcas poderiam fazer pressão para que vídeos da Ciência Cristã fossem impedidos de monetizar, etc. Um movimento parecido poderia acontecer na televisão, suprimindo a presença da Ciência Cristã em programas televisivos, negando a renegociação de concessões para canais de televisão e estações de rádio que propagassem discursos favoráveis à Ciência Cristã, etc.

Então, por parte do Estado mais diretamente, seria possível exigir que a Ciência Cristã deixe de antagonizar a medicina e acompanhar com estatísticas (vacinados, por exemplo) se reformas desse tipo estão surtindo efeito ou não. Se o número de crianças morrendo de meningite por negligência não começar a cair depois de alguns anos, talvez essa estratégia não funcione e seja necessário proibir a Ciência Cristã como um todo, desmontando seus templos e prendendo quem a defendesse publicamente. Em casos como esse, como também no caso de seitas religiosas de supremacia branca que existem realmente, ou até mesmo de seitas que também existem que promulgam sacrifícios humanos, a liberdade religiosa não pode ser uma prioridade quando determinadas religiões são tão explicitamente destrutivas.

Mas como eu disse, proibir simplesmente não resolve nada. Resolver a situação da popularização da Ciência Cristã no Brasil dependeria ainda de pelo menos mais dois fatores: oferecer outras coisas no lugar e resolver as precariedades associadas quando for possível.

Sobre resolver precariedades: se alguém me contasse que a Ciência Cristã está se popularizando no Brasil de 2023, após um desmonte generalizado da nossa saúde pública dos últimos anos, isso faria tanto sentido para mim quanto fez que a Ciência Cristã se popularizasse entre os sofridos norte-americanos do século XIX. Consigo imaginar, por exemplo, que uma mulher que estivesse com câncer, mas fosse pobre demais para ter convênio médico de qualidade, sem muitas esperanças de um tratamento digno pelo SUS, talvez olhasse com bons olhos para a promessa (mais barata e otimista) de uma Ciência Cristã que promete curá-la só com oração e pensamento positivo. Resolver a estrutura de saúde brasileira, aprimorá-la, melhorar seu acesso, torná-la mais barata e eficiente, contribuiria para que a hipotética Ciência Cristã brasileira do século XXI perdesse potência do mesmo jeito que o avanço da ciência médica durante o século XX serviu para que a Ciência Cristã do mundo real perdesse potência nos Estados Unidos.

Esse sentido é um no qual entendo que já se discute o suficiente. Não é uma ideia muito revolucionária esta de que melhorar as condições materiais, reduzir a desigualdade, combater a pobreza, melhorar a educação, são estratégias para diminuir o apelo de mitos oportunistas que estão ofertando conforto e alívio terapêutico para a problemas decorrentes dessa condição material, dessa desigualdade, pobreza, pouca educação, miséria, violência, etc.

Mas normalmente o foco nessa solução secular, pela expectativa do mito iluminista, não considera que esses problemas não são resolvidos num ambiente estéril sem que mitos continuem circulando. E se os mitos que circulam são por si só prejudiciais para a resolução do problema, é preciso considerá-los também. Um mito como o da Ciência Cristã, no Brasil, prejudicaria ainda mais a saúde pública. Um mito, como os que já existem, em que fosse imposta para crianças a educação religiosa em casa e uma negação das escolas como um todo, ou uma negação de certos discursos da escola como o ensino da teoria da evolução, seria um mito que prejudicaria a melhora da educação no país. Um mito como o da teologia da prosperidade, que naturaliza a miséria, e os mitos oportunistas das igrejas que sugam dinheiro de gente vulnerável e desesperada, são mitos que contribuem para a pobreza. A solução desses problemas , como miséria e desigualdade, reduz a força de determinados mitos, mas isso é uma via de mão dupla, no sentido em que a solução de determinados mitos também reduz a força desses problemas.

Mas novamente, proibir mitos para demandas que existem sem oferecer algo em troca não vai adiantar sozinho. Se o Estado proibisse a Ciência Cristã brasileira em 2023 com a promessa de discurso secular de que o SUS vai ficar muito melhor em 2027, ainda serão quatro longos e duros anos de pessoas morrendo pelas condições limitadas do SUS precário que ainda existe.

Para quem precisar lidar com o sofrimento dessas mortes até lá, um mito reconfortante como o da Ciência Cristã ainda vai continuar muito mais atraente do que uma promessa secular de que, tecnicamente, probabilisticamente, se a economia continuar bem, em 2027 o SUS vai melhorar e menos pessoas vão morrer. Primeiro porque a dor da morte subjetiva das pessoas afetadas durante o processo de melhora não seria resolvida por isso: para uma pessoa que perdesse a mãe no SUS de 2025, pouco conforto traria que a mãe de outra pessoa seria salva pelo SUS de 2027, pelo menos no que diz respeito aos sofrimentos diretos que mitos poderiam apaziguar com algum conforto.

Resolver a Ciência Cristã brasileira passaria, portanto, pelo menos enquanto seguirem existindo a desigualdade e as precariedades que motivaram sua força mítica pra início de conversa, também por uma manutenção de outros mitos que pudessem ser mais responsáveis, mas ainda atendendo em alguma medida às mesmas demandas.

No caso da Ciência Cristã brasileira, o seu desmonte teria que envolver também, no mínimo, um direcionamento de seus antigos fiéis e de outras pessoas buscando por mitos de fé semelhantes. Essa gente teria que ser encaminhada de algum jeito para outros mitos mais amigáveis à medicina e à ciência, como uma igreja evangélica mais lúcida que dissesse para pais de crianças com meningite que rezasse para elas melhorarem, sim, mas que também dissesse aos pais que levassem suas crianças ao médico e seguissem as recomendações médicas.

Essa etapa de propor alternativas é profundamente fundamental. Nem sempre isso é possível e mitos que se propagam às vezes dificultam que alternativas existam. O cristianismo irredutível dos primeiros cristãos, por exemplo, não permitia a alternativa de um cristianismo amenizado que se tornasse híbrido ao paganismo ou mesmo um que fosse mais tolerante à diversidade religiosa.

Mas a repressão sem alternativas só potencializa a força mítica. Eu acredito que boa parte do motivo para não ter funcionado a repressão por parte dos romanos aos cristãos é justamente este: não existiam, naquele contexto, alternativas boas o suficiente para que a demanda mítica fosse atendida de outra maneira. É o mesmo motivo pelo qual a própria tentativa de supressão dos cristãos aos protestantes e iluministas ter falhado também séculos depois, quando o mito cristão de até então já não era mais suficiente para atender todas as demandas que existiam.

Novamente, o caso que acabamos de tomar como base de uma Ciência Cristã é um bastante exagerado, ótimo para exemplos justamente porque lhe faltam nuances. Nem todos os mitos a serem combatidos poderiam considerar algo tão extremo como uma proibição por parte do Estado, já que não são todos os mitos que estão fazendo algo tão evidentemente terrível quanto deixar que crianças morram de doenças tratáveis. E vale dizer que, ainda assim, por mais absurdo que pareça, a defesa da liberdade fez com que nos Estados Unidos a Ciência Cristã exista até hoje, sumindo sozinha porque perdeu potência, não por qualquer articulação estratégica da esfera secular que tenha conseguido confrontá-la e controlá-la.

Mas para a maioria dos casos em que essa ação exagerada do Estado não acontece, todas as outras etapas mencionadas poderiam acontecer ainda com efeitos que, se não de total desmonte, poderiam servir para atenuação.

Na verdade, se é necessário que o Estado tenha que efetivamente proibir um mito de circular explicitamente, ou mesmo se ele tem que intervir explicitamente, isso quer dizer que a batalha já está um pouco perdida.

Posicionei propositalmente meu exemplo num Brasil hipotético em que a Ciência Cristã é popular e estabelecida, justamente porque seria a negligência em momentos anteriores de popularização dela que levaria ao caso desse “tudo ou nada” de uma ação mais incisiva do governo. Um governo brasileiro que tentasse reprimir uma Ciência Cristã popular poderia fracassar nisso do mesmo jeito que fracassaram os romanos ou os revolucionários franceses contra os cristãos, ou os próprios cristãos católicos quando tentaram reprimir os protestantes. Mas mitos ainda em ascensão ou enfraquecidos podem ser mais manejáveis.

Até o protestantismo, existiram inúmeras outras dissidências cristãs anteriores que o catolicismo reprimiu com sucesso quando ainda eram pequenas o suficiente para que isso fosse possível, quando o próprio catolicismo era poderoso o suficiente para fazê-lo, do mesmo jeito que o mesmo catolicismo teve sucesso no desmonte do paganismo anterior, ou no desmonte que fez das religiões dos povos originários das Américas quando se aliou ao colonialismo.

Mitos são mais fáceis de se combater quando estão surgindo ou decadentes. Para estes, uma ação formalizada do Estado talvez não seja necessária e nem mesmo desejável. E mesmo se for necessária, não precisa ser tão explícita e incisiva.

Para além disso, o ideal seria considerar um protagonismo de combate em outras esferas que não a do Estado. Esses mitos poderiam ser combatidos por uma articulação e cooperação mais eficientes por parte da esfera secular. E nesse capítulo, é principalmente para essa esfera secular que estou tentando advogar, com a intenção de passar as ideias de que:

  1. Uma organização da esfera secular é necessária para defender seus próprios interesses, necessária para que a vida secular siga existindo sem ser engolida por algum mito potente que surja com força de monopólio e gosto por autoritarismo;
  2. Essa organização da esfera secular precisa considerar os mitos de forma pragmática e se dissociar dos seus próprios mitos iluministas da “conversão gradual ao homem racional”, da “progressiva decadência dos mitos numa sociedade que vai inevitavelmente se tornar mais secularizada” e todas as besteiras desse tipo;
  3. Essa organização da esfera secular precisa considerar o quanto é estratégico para sua sobrevivência que as precariedades possíveis de se combater sejam combatidas. Sejam as precariedades a pobreza e a miséria, no caso de precariedades materiais, ou até mesmo os traumas e as inseguranças. O acesso e a disseminação da psicologia como uma alternativa mais secular para conforto e alívio terapêutico, por exemplo, é fundamental para a sobrevivência da esfera secular. Maneiras de estabelecer grupos de convívio para além de igrejas, por exemplo, também seriam importantes para alternativas seculares de pertencimento;
  4. Ao mesmo tempo, essa esfera secular precisa definir prioridades de quais aspectos míticos são mais importantes combater, fazendo alianças estratégicas com mitos que sejam mais amigáveis aos seus interesses. Se a esfera secular quer combater teorias da conspiração religiosas sobre vacinas, por exemplo, é importante que essa esfera secular estabeleça parceiras estratégicas com instituições cristãs que sejam favoráveis às vacinas. Para a esfera secular, é importante tanto desmontar ou atenuar os mitos mais nocivos quanto fortalecer e estabelecer parcerias com os mitos mais construtivos e próximos aos seus interesses. O pragmatismo está em encontrar alternativas míticas que sejam o mais próximas que for possível daquele mito que se combate, somente com o detalhe de alterarem o essencial — e por isso a definição de prioridades é importante.

    Um cristianismo que não seja contra as vacinas precisa ainda se assemelhar muito a um cristianismo antivacina em todo o resto para que seja uma alternativa viável às pessoas ligadas ao mito cristão considerando uma substituição. Isso vai inevitavelmente ter que levar ao abandono de algumas pautas que serão preteridas por outra. Por exemplo, dificilmente (e infelizmente) um mito do cristianismo que fosse ao mesmo tempo antivacina e homofóbico poderia ter como alternativa atraente um mito cristão que absolutamente não fosse de uma vez só nem antivacina e nem homofóbico. Esse processo precisa ser gradual para quem está identificado no extremo de alguma fixação mítica. O cristianismo que não é homofóbico e nem antivacina também precisa existir e estar em parceria com a esfera secular: será uma alternativa coerente para quem ainda é só antivacina, ou só homofóbico, e vai estar abandonando só um de seus equívocos. Mas para quem é homofóbico e antivacina ainda, pedir para abandonar os dois equívocos de uma vez pode parecer o ideal, mas não me parece o caminho prático.

De certa forma, eu acho que tudo isso já vem sendo feito um pouco, muito disso de forma ainda pouco articulada, pouco organizada e pouco consciente. Frente ao caos desregulado dos mitos digitais nichados, certos atores da mídia tradicional em especial me parecem ter assumido uma consciência forte de que é preciso tentar encontrar o “menor dos venenos” para entregar o que é ainda popular, o que as pessoas querem mesmo ouvir, mas tentando condicionar isso à propagação de mitos que sejam pelo menos um pouquinho mais responsáveis. A ideia de uma evolução gradual das pautas também já é bem aplicada e qualquer um que compare as novelas televisivas dos anos oitenta com as de hoje vai entender esse processo.

Mas de todos esses cinco pontos que listei, acredito que de longe o quinto é o mais subestimado atualmente e o que mais precisa ser revisto. O discurso secular, quando embebido nos mitos iluministas, pode acabar antagonizando todos os mitos, ao invés de estabelecer essas alianças estratégicas que são fundamentais para sua sobrevivência.

O Brasil, para manter no nosso exemplo, não vai se manter um país laico com uma luta por parte da esfera secular que vai desmontar toda a religiosidade e todas as ofertas míticas do país de uma vez para subitamente transformar a religiosidade do segundo país que mais crê em Deus do mundo (sim, o Brasil, e a pesquisa da fundação alemã Bertelsmann que disse isso é recente, do mesmo 2023 em que estou escrevendo) na religiosidade quase irrelevante politicamente do Japão. O Brasil vai se manter laico se a esfera secular for capaz de estabelecer alianças estratégicas com mitos religiosos que sejam favoráveis à ideia do país laico.

Se os iluministas franceses, os nazistas e os soviéticos não conseguiram expurgar a religião de seus Estados nem no ápice de seus respectivos poderes e com todo o autoritarismo possível, não vai ser o Brasil que vai fazer isso em nenhum futuro próximo. Com exceção da China e da Coreia do Norte, países em que os mitos religiosos perderam potência são todos países em que esse processo aconteceu gradualmente e, em vários deles, os mitos religiosos estão sendo substituídos inclusive por uma relação religiosa com o que até então era secular (com a espetacularização crescente, já mencionada, com mitos de consumo, relações religiosas com marcas, mitificação da política, etc.).

Quero dar um último exemplo sobre essa questão de parcerias estratégicas e de transformação gradual. No meu mestrado, eu estudei um canal de Youtube chamado Canal PAX, um canal que é simultaneamente totalmente progressista e totalmente evangélico. É um canal que defende pautas feministas, que criticava o governo Bolsonaro e que defendia as vacinas. Para quem deseja que o Brasil veja as pautas feministas de outra maneira, que veja o próprio conservadorismo de outra maneira, que veja as vacinas de outra maneira, é mais eficiente defender atores como o Canal PAX do que combater os evangélicos no Brasil como um todo, ou sonhar com um Brasil sem evangélicos em que todos os discursos magicamente se secularizem.

Atores religiosos responsáveis como este existem e podem ser incentivados. Eles normalmente são mais frágeis no próprio campo religioso do qual participam, especialmente quando estão começando, e parcerias estratégicas com agentes seculares seriam vantajosas para eles também. E ao mesmo tempo, essas iniciativas como a do Canal PAX são essenciais para romper os amálgamas associativos que fazem a venda casada do cristianismo evangélico ao conservadorismo. Para um evangélico que não queira ser homofóbico, mas que queira continuar sendo evangélico, é fundamental que exista algo como o Canal PAX para mostrar que isso é possível, que ser evangélico não precisa necessariamente ser sinônimo de ter preconceito contra gays. É muito mais difícil pedir que pessoas construam essa distinção sozinhas, em significados autogeridos, do que oferecer e fortalecer as vozes que oferecem essas alternativas como significados sociais.

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Uma pequenina seção com três perguntas e respostas

Esse capítulo inevitavelmente deixará ainda questões em aberto que sei que vão surgir entre leitores. Quero me antecipar e responder pelo menos três das que acho mais prováveis com uma pequenina seção de perguntas e respostas.

  1. Como determinar quais mitos são obviamente perigosos ao ponto de precisarem de uma resposta organizada pelo Estado e quais são mais matizados e podem ser combatidos através de meios mais informais? Quais critérios ou padrões usar para fazer essa distinção?

    Eu acho que os critérios mais importantes para definir quais mitos são mais perigosos são dois: primeiro, um critério avaliando o prejuízo à saúde dos envolvidos e não envolvidos; segundo, o critério da ambição de um projeto de poder em larga escala que desrespeite a diversidade (ou, em outras palavras, uma visão imperialista do futuro do próprio mito que almeja um monopólio totalizante e que construa estratégias burocráticas para tentar alcançar esse objetivo).

    Medir o primeiro critério da saúde me parece relativamente simples, num sentido bem pragmático e que ajuda a definir que a participação do Estado num combate organizado a mitos é uma exceção, enquanto o resto dos movimentos precisa acontecer como parcerias estratégicas e fortalecimento de alternativas, de forma mais orgânica, a partir de múltiplos atores em constante discussão e participação popular.

    O exemplo exagerado da Ciência Cristã é bom nesse sentido (e escolhi esse justamente por ser exagerado) porque mostra que a negligência ao cuidado médico motivada por mitos é inaceitável quando faz crianças sofrerem e morrerem. Uma leitura pragmática de mitos que devem ser combatidos pela força estatal precisa levar essa questão mais básica como ponto de partida: pessoas estão morrendo como consequência direta e incontestável de alguma mensagem divulgada por esse mito? Eu não acho que seja necessário investir em nuances que vão muito além disso para um combate inicial por parte do Estado pelo menos aos mitos mais destrutivos.

    Seguindo nos exemplos extremos, sacrifícios humanos motivados por mitos também precisam entrar nesse balaio, mas talvez pudessem entrar também exemplos que parecem mais aceitáveis como movimentos religiosos antivacina, ou até mesmo a situação mencionada lá atrás de ostracismo dos Testemunhas de Jeová que leva alguns dos excomungados ao suicídio. Eu não acho que exista muita nuance ou ambiguidade a considerar quando a abordagem pragmática leva o respeito à vida e a defesa e proteção da vida como questões prioritárias para estabelecer quais são os mitos que precisam ser combatidos porque estão indo contra a vida.

    A questão sobre mitos com projetos de poder é um pouco mais difícil de estabelecer formalmente, inclusive porque quase todos os mitos socialmente organizados, especialmente aqueles com instituições que tentem monopolizar seu capital simbólico, estão de alguma maneira motivados por algum projeto de poder.

    Nesse caso, eu acho que, para decidir quais são perigosos ao ponto de implicar uma resposta do Estado, é importante acompanhar coisas como número de cadeiras conquistadas por membros de uma fé no Senado e no Congresso, leis quanto motivadas por um mito sendo propostas que possam prejudicar a sociedade como um todo em seus aspectos laicos e seculares, e analisar antes disso se existe a intenção explícita por parte dessa fé, declarada em gravações de cultos por exemplos ou em livros de seus líderes, de tomar o poder, de realizar algo antidemocrático, de mudar a constituição para seguir seus preceitos religiosos, etc, e se há retórica totalizante (a promessa de um mito de acabar com todos os outros, como uma religião que prometa que se ganhar poder vai perseguir/proibir outras religiões).

    Mesmo isso, acredito eu, deve ser levado em contexto somente aos casos mais absurdos. Por exemplo, se um movimento islâmico se fortalecesse no Brasil com a promessa de, caso eleito, reescrever a nossa constituição ao modelo da Sharia, esse movimento precisaria ser combatido de forma pragmática pela esfera secular antes que conquistasse força política suficiente para ser capaz de realizar tal projeto. E num exemplo real, algo poderia ter sido feito sobre a Ciência Cristã nos Estados Unidos quando o movimento começou a fazer pressão política para aprovar leis que desresponsabilizam os pais que deixam seus filhos morrendo. No contexto do Brasil real e atual, o mais próximo que existe de algo a ser combatido é o já mencionado projeto político evangélico, atualmente materializado principalmente na já existente bancada evangélica. Para a esfera secular brasileira é esse projeto, bem como o mito e as instituições que o impulsionam, o mais estratégico de acompanhar e tentar atenuar (ou no mínimo, quando for possível, controlar ou regular).
  2. Como equilibrar o respeito pela liberdade e autonomia individual com a proteção do bem-estar e da democracia dos coletivos?

    Acho que o foco está em regular e pressionar instituições e seus líderes, mais do que indivíduos. A liberdade religiosa e a autonomia ainda existem, mas quando mitos se organizam em instituições, eles precisam ser regulados do mesmo jeito que organizações de todo tipo precisam ser reguladas, de maneira a posicioná-los socialmente de maneira que não seja destrutiva para a sociedade como um todo.

    Acho ainda que mitos regulados que pudessem a partir disso ter algum endosso de oficialização teriam a ganhar, comparados a mitos informais que não recebessem essa validação da burocracia institucional.

    No Brasil, por exemplo, uma igreja que possui o seu devido registro legal paga menos impostos e recebe certas proteções do governo para garantir sua liberdade de prática religiosa. Os critérios para entregar esses privilégios por parte da burocracia estatal poderiam também regular determinados aspectos do discurso que essas religiões precisam respeitar. De certa forma, isso já acontece em casos extremos, no sentido óbvio de que, por exemplo, seitas com mitos que envolvem sacrifícios humanos não vão nem tentar (e se tentassem não conseguiriam) passar pela burocracia do estado para receberem isenção de impostos. Mas eu acho que isso pode ser estendido para pressões sobre o discurso antivacina, conspiracionista e antidemocrático que algumas igrejas propagam. As relações do Estado com igrejas também podem ser reguladas em aspectos positivos, com aquelas que desenvolvem mais ações sociais (como de caridade), desde que essas ações provem efetividade, recebendo também benefícios em retorno de alguma maneira.

    Num momento de crescente desinstitucionalização das práticas religiosas (outro processo que estudei no mestrado), essas medidas também vão ter suas limitações. Mas são um caminho para, a começo de conversa, trazer certos benefícios que inclusive motivem a institucionalização, com contrapartidas na balança que não sejam limitantes demais para desincentivar a adaptação a essa burocracia.

    Existe um limite de até quando a isenção de impostos vai ser um ganho suficientemente satisfatório para que uma igreja considere aceitável que o Estado tente influenciar e limitar seu discurso religioso: pode ser suficiente para pedir que acabem com os discursos antivacina, mas não será o suficiente para pedir que, por exemplo, certas igrejas evangélicas se tornem menos homofóbicas, ou que deixem de ser contrárias ao aborto. Essa resistência do campo religioso também tem seus benefícios, afinal impede que, por exemplo, uma institucionalização obrigue igrejas a defenderem um determinado governo. De novo, são questões que tem seus limites, mas que são possíveis de negociar e malear de forma mais consciente e pragmática do que como é feito hoje.
  3. Como lidar com a possível resistência ou reação dos seguidores dos mitos regulados?
    Esse é o maior desafio de todos e, a bem de verdade, não existe uma resposta satisfatória. De novo, acho que é importante considerar a regulação em momentos iniciais de um mito, principalmente: se a Ciência Cristã surgisse no Brasil, insistindo no exemplo, o ideal seria que ela fosse regulada antes que crescesse demais. Lidar com qualquer mito com muito poder vai ser sempre mais complicado. Se no contexto brasileiro atual existisse uma tentativa muito incisiva por parte de qualquer governo, ou mesmo uma ação mais orgânica de segmentos sociais seculares informais, de agir de qualquer forma para limitar os evangélicos, a resposta por parte dos principais monopólios do poder simbólico evangélico poderia ser uma completa ruptura, talvez num nível de guerra civil no país mesmo. Nesse estado de mitos já poderosos, o que se pode fazer é mais comer pelas beiradas: recriminando os exemplos mais extremos, criando parcerias estratégicas com os segmentos mais moderados, tentando pautar a discussão pública de outras maneiras, etc.

    Um cenário em que um ministro do STF já foi eleito por ser “terrivelmente evangélico” pode ser preocupante, mas de certo não é apocalíptico, especialmente se considerarmos quantos dos outros ministros são católicos. Mas tentar estabelecer mais diversidade seria importante. Não me preocupa um STF do presente que tenha evangélicos, mas me preocupo com um STF de um hipotético futuro que fosse formado exclusivamente por evangélicos. Um STF que tivesse ateus, pessoas de religiões afro-brasileiras, evangélicos, católicos, seria algo a se almejar. Isso vale também para Senado, Congresso, todas as instituições brasileiras. O projeto totalizante que quer evangélicos em todos os cargos políticos não é contraposto com outro projeto totalizante secular que tente expurgar evangélicos de todos os cargos políticos, mas com um projeto que tente ser laico ao permitir que cargos políticos sejam distribuídos de maneira a ter diversidade religiosa na distribuição do poder. Isso é mais fácil de dizer do que fazer, mas é o objetivo ideal a partir do qual dá para tentar construir caminhos práticos.

    Existe uma rede complexa de interesses e agentes envolvidos em cada mito que vão também apresentar resistência a qualquer mudança. Por exemplo, tentar regular certas igrejas em certas periferias do Brasil vai envolver no mínimo uma resposta também das milícias, dos políticos que se beneficiam dos votos que conquistam nessas igrejas, e também do tráfico organizado. De novo, não é um processo fácil, mas é um processo necessário. Deixar ao “Deus-dará” em que vivemos atualmente não vai servir para atenuar esses problemas e a força dessas parcerias e desses mitos só tende a crescer.

    No fim, o fracasso ainda é sempre uma possibilidade. Os romanos tentaram de tudo com os cristãos e fracassaram de todas as maneiras porque o mito cristão era potente demais, as alianças desse mito estabeleceram uma rede que era poderosa demais, e porque não existiam mitos alternativos que estivessem à altura do que o mito cristão naquele contexto entregava.

    Eu não sou otimista no que diz respeito à capacidade da esfera secular de regular e controlar determinados mitos e acho que no caso dos evangélicos no Brasil, especialmente, o fracasso é talvez uma possibilidade mais provável do que o sucesso, mesmo se algo for feito. Mas se nada for feito, aí não existe nem “talvez” para o sucesso absoluto desses mitos totalizantes.

    Se algo for feito, talvez esse algo feito realmente fracasse e o mito totalizante dos evangélicos realmente destrua, só para começar, o estado laico e a liberdade religiosa brasileira, oprimindo as religiões afro-brasileiras e deformando nossa legislação. Se nada for feito, os evangélicos de determinados segmentos da fé evangélica certamente tentarão fazer tudo isso.

    Talvez, se deixados ao “livre mercado mítico”, os evangélicos com essas ambições espontaneamente entrem em decadência, ou se tornem mais moderados, mas apostar nisso me parece arriscado demais e esses cenários me parecem muito improváveis. O Brasil está caminhando para ser um país sobretudo evangélico e a questão é se esse país evangélico terá ou não regulações capazes de proteger agentes seculares e a diversidade religiosa.

    Voltando aos romanos para oferecer um pouco de nuance, talvez seja importante considerar que mesmo o fracasso deles teve fases, processos, tons de cinza. Os esforços não foram suficientes para proteger o paganismo, mas foram suficientes para proteger, pelo menos por algum tempo, estruturas como o Senado, a burocracia, etc. Como mencionamos lá atrás, durante muitas décadas após o cristianismo se oficializar como religião de Estado ainda existiam segmentos pagãos nas elites e no Senado. O cristianismo que surgiu não engoliu o Estado romano como um todo e o substituiu por uma estrutura completamente nova, mas foi posto numa situação de hibridismo a outros aspectos da estrutura que já existia.

    O estado romano cristão ainda era romano também, não só cristão, acho que é isso que quero focar. Existiam ainda semelhanças no que eram os romanos depois do cristianismo, em comparação ao que eram antes, para que fossem chamados ainda também de romanos, não só de cristãos, porque estruturas inerentes do Estado romano foram mantidas e transmitidas da fase pagã para a fase cristã. Não foram todas as estruturas que fizeram essa transição, mas estruturas suficientes sobreviveram e se adaptaram.

    Mesmo na Idade Média, nas fases em que o poder do cristianismo estava em situação mais totalizante e parecia existir menos separação entre Igreja e Estado, seguiram existindo negociações de poder entre estruturas da religião e estruturas políticas monárquicas, com reis e elites ainda capazes de negociar poder e estabelecer burocracias para além do poder religioso. Esse processo se atenuou com o protestantismo primeiro, que em muitos casos (como no anglicanismo inglês) foi motivado mais por interesses de poderes políticos do que por divergências religiosas. E ainda depois, a situação se transformou de novo e mais intensamente quando o iluminismo contrapôs mais ainda do monopólio dos mitos religiosos totalizantes.

    Eu acredito que exista certo movimento pendular entre fases com mitos mais e menos poderosos. A decadência mítica, por exemplo, acontece em situação de transição, tanto quanto acontece a ascensão de um novo mito potente que apareça. Se certas fases serão mais míticas, com uma demanda maior das pessoas por mitos que atendam suas demandas e com instituições mais poderosas que controlem o capital simbólico que desses mitos emana, outras fases serão menos míticas, com mais disputa e a capacidade de estruturar melhor a negociação e a diversidade narrativa. Como discutido no capítulo anterior a este, depois de um represamento das demandas míticas diferentes da sua própria por parte do mito iluminista (que também foi totalizante), o crescente niilismo e o compensatório fanatismo envolvendo mitos parece para mim apontar para uma nova fase de mitos mais poderosos.

    Mas esses novos mitos de agora enquanto não institucionalizados, mais nichados, personalizados e informais, parecem também ter mais dificuldade de empregar seu capital simbólico para fins grandiosos. E quando institucionalizados, como mencionamos, podem ser regulados como estamos discutindo. É mais sobre um processo de contenção de danos, de tentativa de lidar com fases mais míticas sem que elas destruam e corroam tudo que existe para além dos mitos totalizantes que vão ascender.

    O caso do mundo islâmico é, outra vez, um bom exemplo. De certa maneira, o iluminismo começou na verdade no mundo islâmico e foi lá que a matemática, a ciência, a filosofia e todo o resto sobreviveu durante os momentos em que o cristianismo era mais totalizante na Europa. Mas esse mundo islâmico foi depois engolido por seus próprios mitos religiosos totalizantes que conseguiram arrebentar com todas as estruturas que iam para além deles mesmos.

    A primavera árabe é um exemplo interessante do que acontece quando, após um mito religioso totalizante perder um pouco de seu poder e apelo, uma população deseja retomar estruturas mais seculares que, em determinados casos, não existem mais em absoluto para serem reenergizadas. Usando sobretudo o exemplo da Tunísia, que é talvez o mais simbólico, não faz muita diferença se a população de determinados países do mundo islâmico queiram ou não uma mudança de governo que tire o poder de determinadas lideranças religiosas, caso o poder político destes países esteja ainda estruturado no mito religioso totalizante e não exista burocracia alternativa. Só esta estrutura alternativa poderia separar este mito religioso do poder político a partir de algo como uma esfera secular relevante e institucional. No meio das piores tempestades, se ao menos o mínimo dessa esfera secular e institucional puder ser protegida, o resto ao redor dela pode ser reconstruído depois.

    Tudo isto dito, acho importante colocar essa crise em termos mais explícitos de qual é minha opinião a respeito: o projeto secular está em crise, está decadente o mito iluminista que estava muito embrenhando no fortalecimento de aspectos seculares. A estratégia agora é para tentar fazer com que sobreviva o mínimo necessário das estruturas, das instituições, da esfera secular. Qualquer tentativa ambiciosa de calar a potência dos mitos que estão surgindo é pedir por um esmagamento completo. A esfera secular não tem força suficiente para qualquer imposição de suas vontades. Tem força, se muito, para negociar e torcer pelo melhor.

    Estou falando isso até agora dando tantos exemplos do Brasil especificamente porque é aquilo que vivo e mais acompanho, mas acredito que o mesmo cenário se repita, com outros mitos e outros tipos de decadência, em outros lugares do mundo também. Nem sempre os mitos que se aproveitam da decadência são religiosos. No Brasil, é um mito de extrema-direita associado a um mito religioso, nos Estados Unidos é um mito de extrema-direita conservadora focado mais em costumes do que em religião, na Europa ocidental costuma ser um conservadorismo e uma extrema-direita que se suportam mais na potência de um mito político nacionalista que por enquanto não precisa de muito suporte de qualquer mito religioso, na Rússia existe um mito imperialista totalitário que se suporta um pouco no mito da Igreja ortodoxa do país (mas que não depende dela), na China o aspecto religioso é irrelevante, mas os aspectos míticos escapam com força ainda nas ambições políticas do mito do partido comunista chinês.

    Novos mitos, seitas e religiões pipocam para todos os lados, dos cultos tecnológicos californianos às seitas apocalípticas japonesas. Um exemplo dos mais interessantes é o das Coreias, em que tanto a do norte quanto a do sul são impactadas por ascensões míticas de maneiras distintas. Na do norte, o cenário é o do mito totalizante nada religioso do governo autoritário, da doutrina Juche da autossuficiência e do culto ao líder, enquanto na do sul existe uma aliança do neoliberalismo junto a movimentos míticos mais desorganizados e religiosos, como demonstrado no caso de impeachment da ex-presidente do país por seus vínculos a uma seita das mais absurdas.

    Nada de tudo isso será resolvido só com conversas, nada de tudo isso será resolvido organicamente no “livre mercado das ideias” e nada de tudo isso será resolvido com alguma ambição de um mito iluminista totalizante que queira reprimir tudo que é mítico para além de si mesmo. Nada disso será resolvido totalmente, aliás, e todas as soluções são sempre provisórias. Mas são soluções de, reforço, negociação, conciliação, priorização das ameaças mais graves, proteção das estruturas seculares mais fundamentais, parcerias estratégicas com mitos que ameacem menos destas estruturas seculares, e de um pragmatismo para com mitos que, reitero, é a abordagem que acho mais coerente diante do estado das coisas que temos.

Ainda vale mencionar e relembrar, também, que apesar de termos trabalhado principalmente exemplos religiosos, existem mitos de todo tipo que também precisam ser regulados e organizados de alguma maneira. Como mencionei anteriormente, acho que uma pressão maior para regulamentar redes sociais e plataformas digitais como um todo é um caminho importante para que os mitos digitais personalizados fiquem também sob controle. E discussões sobre temas como fake news e o combate ao fascismo na esfera pública também me parecem caminhos interessantes para lidar com os mitos totalizantes que são mais políticos. Foquei principalmente nos mitos religiosos porque acho que eles eram mais ilustrativos aqui e porque costumam ser os mais subestimados, mas lembro que eles são costumeiramente associados e/ou amalgamados devido às interações entre campos (retomando Bourdieu) e que o mito brasileiro costumeiramente é mais político-religioso, por exemplo no conservadorismo, o que explica porque falamos tanto de política quando tentei discutir o mito dos evangélicos.

Também acho que, como possuem mais potencial de institucionalização, os caminhos para lidar com mitos religiosos são diferentes. Não existe ainda uma “igreja da meritocracia” para que lidemos com esse mito prometendo isenção de impostos para as igrejas meritocráticas que sejam menos irresponsáveis, então o controle desse mito passa por caminhos mais orgânicos na organização da esfera secular. Ainda vou volta a essa organização orgânica nos próximos capítulos, mas achava que era importante já destacar isso aqui também.

Acho que posso encerrar essa parte por aqui. Existem ainda outras questões que eu gostaria de discutir, mas são um pouco que de outra natureza e justificam a quebra para um próximo capítulo. Portanto, sigamos.

Capítulo 17: Mitos iluministas

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Até agora, falamos muito sobre mitos de todo tipo, mas vou passar um tempo de agora para frente me focando exclusivamente no que eu acredito que sejam os mitos que eu mais “gosto”, ou melhor, os mitos que me impactam mais diretamente, aos quais me sinto mais identificado. Quero aprofundar a minha análise desses mitos porque ela é importante para responder algumas questões que a discussões que tivemos no ponto anterior sobre por que a esfera secular está em situação tão vulnerável, por que os mitos iluministas estão em situação de tamanha limitação de suas possibilidades, em situação também de tanta decadência e, de certa forma, até mesmo por que essa decadência não é de todo ruim.

Nessa análise, quero retomar algumas das minúcias que discutimos lá atrás sobre os critérios de um mito, sobre os confortos que ele entrega para quais precariedades, e sobre sua possibilidade de convivência e coexistência com outros mitos em situação amalgamada.

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Resistência mítica e o fanatismo como reação versus o apelo dos mitos com retornos concretos

Preciso começar evidenciando o principal conforto que o mito iluminista costuma entregar: associado ao método científico, ele costuma funcionar bem para entregar retornos concretos.

Se você está com câncer, a probabilidade de se curar é maior se você faz parte de um mito iluminista e portanto vai ao médico ao invés de ir a um centro de Ciência Cristã para pedir por orações. Para quem quer construir celulares, provavelmente a leitura de artigos científicos e a presença em faculdades e centros de pesquisa vai ajudar mais do que a leitura da Bíblia e a frequência em igrejas e convenções religiosas.

Isso é um pouco óbvio, mas precisa ser destacado. Mitos iluministas que se estabelecem com o benefício dessa concretude de seus resultados são poderosos no sentido em que são alguns dos mitos que podem entregar resultados mais concretos para as expectativas míticas que atendem.

Essa força é, ao mesmo tempo, uma limitação por dois motivos:

  1. Mitos iluministas são muito competentes para entregar retornos concretos, mas ao mesmo tempo são muito incompetentes para entregar retornos de qualquer outro tipo.
  2. Apesar dessa incompetência, mitos iluministas costumam ser totalizantes e sofrem grandes dificuldades de se amalgamar ou estabelecer parcerias com outros mitos que sejam capazes de entregar os retornos diferentes que os próprios mitos iluministas não entregam.

Seguindo no exemplo do câncer. Alguém identificado ao mito iluminista provavelmente vai encontrar muito conforto na ideia de sua própria racionalidade e lucidez ao visitar o médico se ouvir da boca desse médico algo como “seu câncer ainda está em estágio inicial, é tratável e as chances de cura são muito boas”. No entanto, não existe conforto nenhum que o mito iluminista possa entregar se da boca do doutor sair algo como “infelizmente, descobrimos seu câncer tarde demais, ele já está em metástase e você só tem mais dois meses de vida”.

Preferi começar com esses exemplos do que com uma definição exata daquilo que estou chamando de mitos iluministas porque, diante desses exemplos que dei, você que me lê talvez pense que nada impede que alguém vá ao médico e escute o parecer sobre seu câncer e saia de lá para logo depois ir numa igreja rezar a Deus por um milagre que o cure. E essa pessoa pode fazer isso em qualquer um dos casos, seja no câncer com boas esperanças ou naquele que já está em metástase.

Sim, é verdade. E esses elementos do discurso secular do médico são mais fáceis de se amalgamar a mitos religiosos de todo tipo. Existe uma maleabilidade na maneira como elementos do discurso secular podem coexistir com mitos, inclusive estabelecendo amálgamas contraditórios.

Resultados concretos que tecnologias e o método científico trazem podem ser suficientes para que, pela conveniência, sejam desconsiderados, ignorados ou tolerados os aspectos do discurso técnico por traz desses resultados que antagonizem outros mitos.

Um exemplo para demonstrar isso bem: terraplanistas não deixam de usar o Uber, o Waze, e outros aplicativos com tecnologia GPS como um todo. Não deixam de usar porque os resultados concretos dessas tecnologias são convenientes. Muitos desses terraplanistas não devem saber o suficiente sobre as tecnicidades envolvidas no GPS para entender como a própria tecnologia é antagônica na sua essência à possibilidade de uma terra que fosse plana. Os que sabem dessas especificidades ainda assim devem ignorá-las pela conveniência, ou criar alguma teoria conspiratória complementar (algo como “o GPS funciona de outra maneira, mesmo com a terra sendo plana, e a explicação técnica oficial é parte da conspiração”). Criacionistas que criticam o método científico na ciência de datação de fósseis, outro exemplo, não deixam de usar todos os outros resultados concretos que esse mesmo método científico produz, como celulares e tratamentos contra o câncer. Nem sempre os discursos técnicos são tão antagônicos, também: a existência da oncologia não implica necessariamente que Deus exista ou não exista, por exemplo.

Para este estado contraditório das coisas, digo eu: tudo bem. Mitos vão circular para atender demandas por pertencimento e conforto, vão estruturar identificações da identidade, vão servir como auxílio às precariedades. De certa forma, o conforto dos resultados concretos estabelece uma força na esfera secular até mesmo para que algo como essas contradições exista. E essas contradições existem justamente porque a força dos resultados concretos é grande demais para que se joguem fora tais resultados em troca de um conforto mais abstrato.

Se terraplanistas usam GPS ainda, isso é um sinal da força do secularismo e da ciência. Inclusive, o terraplanista que usa GPS é um exemplo perfeito de demandas completamente diferentes sendo atendidas por mitos completamente diferentes: as demandas práticas e concretas, perfeitamente atendidas por tecnologias e por narrativas mais pragmáticas e metódicas, e as demandas mais emocionais e abstratas, de pertencimento, de sentimento de ser especial, sendo atendidas por algo absurdo como a ideia do terraplanismo.

No Brasil, ouvi de cristãos diferentes variações da máxima “na hora que o avião dá pane e vai cair, ninguém é ateu” e eu sempre achei essa argumentação muito divertida porque mostra algo bastante verdadeiro: que o apelo religioso é maior especialmente em situações de desespero, nas situações em que a tecnologia falha, nas situações em que algum conforto emocional, como aquele diante da mortalidade e da dor, é mais importante do que o racionalismo purista. Ao mesmo tempo, essa argumentação também carrega sua própria antítese em todas as outras “horas” em que ser religioso não faz diferença nenhuma: na hora de construir o avião, não faz diferença ser ou não ateu; na hora de um voo tranquilo que não dá pane e pousa tranquilamente, como a maioria dos voos faz inclusive, não faz diferença nenhuma ter fé. Mas naquele espacinho de tempo, naqueles momentos do desespero de um avião caindo, existe um vácuo no discurso iluminista que não entrega nada. Diante da falta de controle de uma situação dessas, a resignação iluminista de algo como “é isso aí, eu vou morrer agora, provavelmente de forma bem dolorosa, e não existe garantia nenhuma de que vá ter qualquer coisa depois da morte” não tem como competir em conforto mítico com um ato tão simples e simbólico quanto rezar para não morrer, não sentir dor, ou ir para o céu.

Para cada necessidade diferente, para cada expectativa diferente, um mito diferente com um retorno possível diferente. E nem sempre a contradição desses mitos é percebida, ou se escolhe ignorá-la, especialmente se as demandas que mitos contraditórios prometem resolver estão sendo satisfatoriamente atendidas.

Por isso, eu queria estabelecer uma diferença que tenho trabalhado mais implicitamente até agora entre o que é “mito iluminista” e o que é “secular”. É uma separação que proponho justamente para diferenciar os discursos mais voltados aos resultados concretos, à razão e ao método quando são mais amigáveis e capazes de existir em coexistência com outros mitos, em comparação aos mitos associados a esses resultados que exigem de maneira mais intensa que outros mitos sejam abandonados.

Os mitos iluministas usam de elementos do que é secular e na verdade existem quase que para exaltar e propor um mito totalizante desses elementos seculares, mas esses elementos seculares não existem necessariamente associados ao mito iluminista que os propaga. Um exemplo diferente, mas com algumas semelhanças, está no mito pseudocientífico da eugenia nazista, que supostamente usava elementos seculares como o método científico para medir crânios, mas que seguia sendo um mito só com algumas estéticas de algo racional no meio do amálgama mítico mais geral do nazismo.

Os discursos e aspectos seculares, nesse sentido de serem mais amigáveis, são mais fáceis de se conviver, também mais frágeis e paradoxalmente mais pervasivos e poderosos. Em cada pessoa, fazem concessões de um tipo e dependem um pouco de um estado ideal da proteção de seus significados sociais a partir de coletivos inteiros. Por exemplo, uma enfermeira pode ser muito técnica e capaz de proteger os significados sociais da ciência na sua área da enfermagem, enquanto pode ser criacionista e desrespeitar os significados sociais da ciência na área da arqueologia ou da teoria da evolução.

Os significados sociais seculares são protegidos por essas convenções gerais que ninguém consegue transformar sozinho porque existe uma burocracia maior. Não importa o que a enfermeira especificamente, nem um grupo nichado de religiosos do qual ela faça parte, acha da teoria da evolução. Os significados autogeridos dela e do grupo dela não vão mudar o consenso científico mais geral. E todo dia em que essa enfermeira fortalecer o consenso científico do outro lado, na sua área da enfermagem, e todo dia em que essa enfermeira usar coisas como GPS e celulares, ela estará também contribuindo para o fortalecimento pragmático do discurso desse consenso científico por outros caminhos. A cada vez que perguntamos o significado de algo para um dicionário, para uma enciclopédia ou para um professor ou técnico, ao invés de para a bíblia ou para um pastor, estamos fortalecendo os significados sociais seculares como um todo. Se a cada vez que recorremos ao pastor ao invés de ao médico para assuntos que deveriam ser técnicos, estamos enfraquecendo um pouco dessa esfera secular ao mesmo tempo. A situação ainda assim fica em ponto de certo equilíbrio quando a maior parte das pessoas ainda não é fanática ao ponto de combate ativamente a maior parte dos aspectos seculares. E atingir esse fanatismo é mais difícil hoje em dia para qualquer um que desfrute dos retornos concretos do que é secular.

O mito iluminista, por sua vez, é incisivo e irredutível. É o posicionamento de quem acha um absurdo que a enfermeira acredite no criacionismo e de quem tem a expectativa de que aceitar o discurso técnico precisa ser totalizante e excludente a aceitar qualquer outro discurso mítico. O discurso iluminista vai considerar que, para receber o retorno técnico do médico sobre o estado do seu tumor, uma pessoa precisa necessariamente abandonar o conforto de qualquer narrativa sobre um Deus que possa dar propósito para seu sofrimento ou esperanças de melhora, cura ou milagre. Ou que, para desfrutar do avião que existe enquanto resultado de conhecimentos seculares, uma pessoa necessariamente precisa se resignar a não orar mesmo que este avião esteja caindo.

O discurso iluminista é pervasivo somente no sentido em que se associa muito frequentemente, de maneira muito sutil, ao discurso secular que mencionei logo antes, de um jeito que às vezes torna difícil perceber e estabelecer essa distinção que estou desenhando a separar os dois. O foco na razão do discurso iluminista não consegue, por mais esquisito que pareça, olhar racionalmente e de maneira pragmática aos próprios mitos.

E por isso, eu queria delinear alguns dos três aspectos que considero principais dos mitos iluministas, já descrevendo e criticando um a um.

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1. Mitos iluministas se apropriam de aspectos do discurso secular quando estes aspectos os beneficiam, mas ignoram esses mesmos aspectos seculares quando lhes é conveniente

Quero começar com esse ponto não necessariamente porque é o mais importante, mas porque é aquele que melhor explica o que diferencia os mitos iluministas do que estou chamando de “discurso secular” e de outros mitos que acabam amalgamados, seja quando amalgamados aos aspectos seculares, seja quando amalgamados aos mitos iluministas.

Para isso, vou trabalhar com mais alguns exemplos.

Pense em um discurso baseado num mito que, confrontado como uma evolução do pensamento científico, é incapaz de aceitar novos aspectos do consenso científico que confrontam sua narrativa de até então. E agora pense num mito que, pelo contrário, consegue se adaptar a novos aspectos do discurso científico e integrar essas evoluções à sua estrutura.

Vamos usar dois exemplos para ilustrar esses dois comportamentos: um é um mito religioso, outro é um mito iluminista. E para o bem do exemplo, vamos contrariar o senso comum: nesse caso, é o mito religioso que conseguiu adaptar-se e integrar novos aspectos do consenso científico e é o mito iluminista que não o fez.

Pois bem, vamos lá.

O mito que se confrontou com novidades seculares e conseguiu integrá-las é nenhum outro que não o mito cristão. E esse talvez seja um dos exemplos mais famosos sobre embates entre narrativas míticas e aspectos seculares em que, de alguma maneira, os aspectos seculares a longo prazo “venceram” a disputa contra os mitos: a questão sobre a terra seguir ou não o desenho heliocentrismo, proposto por Copérnico, em que o Sol (e portanto o Sistema Solar) está como centro do universo. Este era o posicionamento da Igreja quando puniu com execução figuras como Giordano Bruno, e quanto processou e prendeu Galileu, que posteriormente precisou se desculpar e mentir que acreditava no sistema heliocêntrico.

Galileu é uma figura tão importante no mito iluminista que muitas vezes, no imaginário popular, sua história é misturada à da execução de Giordano Bruno para deixá-lo mais heroico. É comum que se pense que o próprio Galileu foi executado porque, miticamente, tem menos apelo a verdade de que ele teve que mentir para ser solto.

Mas esse detalhe não muda o fato: a disputa sobre o heliocentrismo foi absolutamente perdida, inclusive na maior e mais relevante parte das narrativas religiosas. Embora os puristas sempre existam, não é mais um posicionamento comum entre cristãos a ideia de que o heliocentrismo de Galileu é mentiroso, pecaminoso, ou nem mesmo controverso.

Não quero fingir que essa transformação de perspectiva foi fácil. Primeiro, porque o geocentrismo é mais miticamente palatável, especialmente no amálgama às estruturas do mito cristão. Para um mito que carrega a ideia de que a Terra e os seres humanos não só foram criados com um propósito como foram criados numa situação de protagonismo (afinal, Deus nos criou “em sua imagem e semelhança”), faz muito mais sentido que a Terra fosse um centro do palco universal. Faz mais sentido do que a verdade de que somos parte de um Sistema Solar pouco importante, com um Sol que em si não é de grande magnitude, e que estejamos na periferia dos acontecimentos cosmológicos como o Big Bang, se acreditarmos num centro do universo a partir da maneira como ele se expande. A outra possibilidade, pior ainda, diz que estejamos num sistema que, tão despropositado e caótico, nem centro possui, que é a visão mais aceita pelos cientistas para entender o Big Bang hoje em dia.

O heliocentrismo não é só um aspecto de um discurso secular baseado no método científico: é justamente um desses aspectos dos discursos seculares que são mais incômodos à autoestima dos seres humanos e que contraria mais profundamente, enquanto evidência, a ideia do protagonismo dos seres humanos no universo. Não é de se surpreender, portanto, que as represálias tenham sido duras no começo, como nos casos de Bruno e Galileu que mencionei, e que depois a deterioração da possibilidade do geocentrismo tenha acontecido em um processo um pouco silencioso. Para dar um exemplo de quão lentos são os tempos do mito, especialmente do católico, vale fechar esse primeiro exemplo com um trecho de um discurso de 1992 do Papa João Paulo II que é considerado o mais oficial e institucional “mea culpa” que a Igreja Católica deu para a situação de Galileu, com “só” 350 anos de atraso:

“Outro ensinamento que se pode tirar é o de que cada diferente ramo de conhecimento reclama diferentes métodos. Galileu, que praticamente inventou o método experimental, compreendeu, graças a sua intuição de físico genial e apoiado em vários argumentos, por que somente o sol poderia ter a função de centro do mundo, tal como então conhecido, quer dizer, do sistema planetário. O erro dos teólogos da época, quando mantinham a centralidade da terra, era o de pensar que o nosso entendimento da estrutura física do mundo era, de algum modo, imposto pelo sentido literal da Sagrada Escritura.”

(Para quem quiser uma análise aprofundada, que acho bastante interessante inclusive, sobre a íntegra desse discurso e dos posicionamentos de João Paulo II sobre a questão de Galileu, eu recomendo o artigo OS PAPAS E GALILEU. I: JOÃO PAULO II E O GALILEU HERMENEUTA BÍBLICO, de Paulo S. Terra, da Universidade Estadual de Santa Cruz.)

Acho esse discurso do Papa João Paulo II profundamente simbólico. Por um lado, ele demonstra uma das situações de mais profunda vitória do discurso secular, e de certa forma do mito iluminista também, frente uma Igreja Católica que durante séculos foi talvez sua principal antagonista. Essa é a história que inspira os mitos iluministas e acho que se existisse algo como uma “igreja dos ateus”, Galileu seria um dos seus santos mesmo que ele mesmo fosse ainda cristão.

Ao mesmo tempo, esse discurso mostra, na direção completamente oposta, uma gigantesca vitória da Igreja Católica, especialmente no que diz respeito à sua maleabilidade e possibilidade de se amalgamar. O posicionamento que foi defendido pelo Papa nesse trecho é tão metódico! Ele diz que “cada ramo de conhecimento”, diferenciando a teologia e o estudo religioso da Bíblia do método científico como um todo, possuiu “diferentes métodos”. Quando fala de Galileu, menciona método experimental e apoio em argumentos para explicar como foi que se chegou à conclusão de que a Terra não era o centro do universo. Não foi um arbusto pegando fogo que deu a mensagem divina do lugar da Terra no universo para Galileu, não foi uma inspiração vinda da visita de um anjo num sonho, foram argumentos e o método experimental, dito assim por ninguém menos que o Papa da Igreja Católica. E para fechar, João Paulo II critica os teólogos da época na leitura literal da Bíblia, com essa leitura da Bíblia a partir de símbolos e metáforas fazendo muito mais sentido para que a Bíblia, e o próprio cristianismo, não antagonizem necessariamente aspectos seculares como um todo.

Esse discurso, como o posicionamento do catolicismo para com a ciência como um todo, mostra uma certa força de adaptação, de construção de novas associações, de estruturar-se para seguir existindo relevante num mundo no qual, após a escolástica perder sua potência medieval que pariu as primeiras universidades cristãs, é agora um mundo mais vinculado aos discursos seculares, geridos por um “dicionário” do consenso científico que é muito tentador de se seguir pelos resultados concretos que traz. Ao mesmo tempo, mostra ainda essa força de adaptação para um mundo no qual os significados do cristianismo e sua perspectiva a respeito do consenso científico não são mais entendidos necessariamente como importantes.

Não quero fingir que o cristianismo como um todo é sinônimo dos católicos. Sei bem que existem igrejas mais ou menos antagônicas ao método científico e aos discursos seculares. Mencionamos lá atrás o exemplo das igrejas antivacina. Enquanto a parceria estratégica do catolicismo com discursos mais moderados e a esfera secular é interessante para esse catolicismo, no protestantismo é comum que se ofereça o “diferencial” de discursos que vão contrariar o consenso científico mais frequentemente.

Mas o exemplo dos católicos mostra um movimento maior que a maleabilidade da esfera cristã permite: aquele em que aspectos seculares são postos em situação de coexistência com a religião, de formas em que o campo religioso e o campo secular cada vez menos precisam de embates, mesmo quando uma novidade secular de alguma maneira pode prejudicar algumas das demandas de conforto e autoestima que o mito inicialmente entregava. O mesmo processo que aconteceu com a questão do heliocentrismo já acontece também, para dar um exemplo mais “recente”, na discussão sobre evolucionismo versus criacionismo.

Já é relativamente fácil encontrar hoje cristãos evolucionistas que, ao se depararem com os argumentos seculares da teoria da evolução, foram convencidos por estes argumentos e construíram uma adaptação ao seu discurso religioso para algo como “Deus ainda criou tudo, mas ao invés de ter criado literalmente como descrito na Bíblia, o Gênesis era uma metáfora e a maneira como Deus criou e desenvolveu a vida no mundo foi aquela da evolução”. Ao contrário do que os preconceitos reducionistas podem dar a entender, é perfeitamente possível que cristãos hoje estejam em todas as ciências se forem capazes de fazer adaptações desse tipo, em que seja lá o que encontrarem nas suas investigações seculares a partir do método científico ainda possa ser entendido como algo que Deus criou.

Há muitos exemplos igualmente emblemáticos de como o catolicismo amadureceu esse modelo de parcerias e conciliações. Um outro caso simbólico que vale mencionar, ao menos an passant, é do Concílio Vaticano II que, organizado nos anos sessenta, foi suficientemente conservador para manter as estruturas da religião, mas suficientemente adaptável para ceder, mesmo que minimamente, às pressões na época do movimento dos direitos civis. Mais ainda, esse mesmo concílio passou a entender a diversidade cristã (por exemplo, a existência das variações protestantes) como outros caminhos da fé, ao invés da visão destes outros movimentos religiosos como heresias. Essa diferenciação é muito simbólica entre o que era um catolicismo totalizante (que tentava esmagar sua concorrência e categorizar todas as variações cristãs que não ela mesma como heréticas) para um catolicismo de pragmatismo mítico e capacidade de conciliação, no melhor modelo de parcerias estratégicas que proponho.

Muito que bem. Esse foi nosso primeiro exemplo.

O segundo exemplo, agora de um mito iluminista que nega aspectos seculares, é do neonazismo, especialmente no que diz respeito à leitura do nenonazismo sobre eugenia. Estou retomando esse exemplo porque realmente é aquele que melhor ilustra esse “sequestro” de algo que é secular, ou que tem alguma estética secular, por uma narrativa que é essencialmente mítica.

Quero começar explicando a ideia de que o nazismo e o neonazismo são mitos iluministas. Primeiro, são mitos totalizantes baseados numa ideia de utopia terrena a ser atingida sobretudo a partir da vontade e do esforço de seres humanos, independentemente de uma força maior. Quando tentam justificar qual é a vantagem que o grupo que defendem teria em relação aos grupos que serão oprimidos, os discursos nazistas e neonazistas estão mais associados à argumentação de que os arianos/brancos “merecem” conquistar a supremacia por causas genéticas, por serem geneticamente superiores. Quem escolheu os brancos e/ou arianos nessa argumentação não foi Deus, foi a biologia.

Vale dar a nuance de que sim, mesmo nisso existem leituras que associam o neonazismo com a religião, como aquela que diz algo como “a biologia nos escolheu porque Deus quis”. E também que, como se baseiam principalmente em ressentimento e não em um apego científico, não é incomum que os movimentos de neonazismo se associem estrategicamente com a religião quando lhe é conveniente. Mas essas parcerias não são consenso, seja na parte em que muitos nazistas entendem o cristianismo como uma “religião de judeus”, seja na parte em que entendem que a religião disputa espaço e atenção com o discurso que deveria ser único do partido autoritário nazista, seja na parte em que entendem que o nazismo seria baseado em “evidências científicas”, como a eugenia que vamos explorar, e que portanto não precisaria do endosso religioso. Existiram também vertentes que tentavam aproximar o nazismo do paganismo dos povos europeus anteriores à cristianização, apenas para trazer mais esse complicador.

Mas no geral, vou desconsiderar tudo isso para focar na eugenia por três motivos: primeiro, eu acho que se a religião fosse suficiente para o discurso nazista, não seria necessário que esse discurso tentasse se justificar com a própria eugenia. Para quem acredita que é superior por ser escolhido por Deus, afinal, não faz sentido ficar comparando crânios diferentes para tentar convencer os outros a partir dessas “evidências”. Em segundo lugar, porque pelo que estudei sobre as origens do nazismo (e esse foi o tema do meu TCC na graduação), a relação com a religião, especialmente a católica, sempre foi oportunista por parte do nazistas que, como um bom mito iluminista totalizante, gostariam de uma nação Alemã em que a única “religião” fosse o próprio nazismo. Em terceiro lugar, porque as ideias de “nação,” “progresso” e “civilização” como presentes no nazismo são todas profundamente influenciadas por discursos iluministas. O projeto do nazismo não era sobre pessoas brancas indo para o paraíso após morrerem: era sobre a construção de uma “utopia”, no perturbador sentido que eles davam para essa ideia, aqui no plano terreno e material mesmo.

Mas, com tudo isso dito, dizer que o nazismo e especialmente sua eugenia são “racionais” ou “seculares” seria um enorme equívoco: não o são. São talvez os exemplos mais ilustrativos exatamente do que quero dizer por um mitos iluministas que, embebidos de uma estética de algo racional ou secular, ainda são irracionais, com ambições e demandas míticas atendidas que não tem relação nenhuma com o consenso científico secular que pode frustrar esses mitos.

A eugenia é hoje entendida em situação de consenso científico como uma pseudociência. Ela pensa que é uma ciência, finge que é uma ciência, comunica-se como se fosse uma ciência, mas não é uma ciência e já foi desmentida cientificamente de várias formas diferentes. Quando surgiu, a eugenia era popular e, sendo recente, também não existia evidência suficiente para categorizá-la como agora já é possível nesse estado de “pseudo”. Mas conforme as pesquisas e o consenso científico foram avançando, conforme foi ficando mais demarcado que a eugenia não era científica de verdade, os cientistas que antes eram eugenistas podem ter abandonado essa ideia, mesmo que contrariados, mas os neonazistas que eram eugenistas preferiram abandonar a ciência.

Isso acontece, na verdade, o tempo todo: toda vez que o consenso científico invariavelmente aponta para um lado, existe uma escolha a ser feita entre seguir a ciência ou seguir o discurso desmentido, seja no amálgama a algum outro mito que desse discurso desmentido se aproveita, seja na criação de um mito pseudocientífico do zero. O discurso sobre o cigarro fazer mal, por exemplo, quando se estabeleceu como científico, diferenciou-se do mito do cigarro como algo positivo que a indústria tabagista tinha interesse em manter. O discurso sobre os combustíveis fósseis estarem impactando negativamente o meio ambiente, quando se estabeleceu como consenso científico, diferenciou-se do negativismo climático que se associa a vários mitos, mas especialmente ao mito do capitalismo neoliberal tradicional (que é outro mito iluminista).

De certa forma, vale mencionar, o negacionismo climático é o lugar onde o mito iluminista chegou para morrer. A Revolução Industrial e todos os seus discursos podiam passar como ciência até ali, até as evidências sobre a catástrofe ambiental em curso. Daqui pare frente essas defesas negacionistas seguem desnudas em situação de mito como são, irracionalmente prosseguindo com sua própria lógica, independente de qualquer evidência, porque é conveniente aos interesses associados e porque também conforta aos interessados nas instituições poderosas. O “dono do templo” e o “prefeito da cidadezinha do templo”, nesse caso, são petrolíferas e o mercado global lucrativo que destas petrolíferas depende.

Mas eu me desviei do exemplo da eugenia, então voltemos: eu mencionei os neonazistas porque, dada a contextualização história, eu gostaria de analisar quem acredita na eugenia ainda hoje. O discurso científico atual e todos os seus métodos, experimentos, livros a respeito, artigos desmentindo a eugenia, enfim, tudo isso não é suficiente para que neonazistas abandonem suas ideias. Eles respondem a tudo isso tornando-se às vezes totalmente anticientíficos, dizendo que a ciência ela mesma é uma mentira, mas é mais comum que eles recorram a uma “ciência alternativa”, em que produzem “artigos científicos” e livros próprios que, apesar de não serem científicos, usam a linguagem e a estética da ciência. No mesmo balaio, recorrem também a teorias da conspiração para dizer que a “ciência oficial” é controlada e influenciada pela elite mundial e que mente sobre o status de pseudociência da eugenia.

Muito mais do que um mito religioso como o catolicismo, um mito iluminista como o neonazismo eugenista está inerentemente impossibilitado de encontrar uma maneira satisfatória de coexistir com a ciência. É inviável para uma ideologia que argumenta algo como “é cientificamente provado que brancos são superiores” e que, mais do que isso, depende quase que fundamentalmente dessa ideia porque não consegue um sustento dessa superioridade na figura de um Deus. É inviável ao mito, portanto, que se concilie esse discurso com a verdade secular de que não existe comprovação científica nenhuma de que uma raça seja superior às outras.

É importante começar com essa limitação porque acredito que ela é a que melhor define o que quero dizer como mitos iluministas. Mitos iluministas têm a estética de serem racionais, mas isso é só até a página dois. Eles ainda são mitos, ainda operam em situação de construir identidade, de estabelecer pertencimentos, de gerar conforto. Para um nazista que tira muito de sua identidade de ser branco e nazista, que tira muito também de sua autoestima disso, que tira seu pertencimento de conviver com outros nazistas, a ciência e os discursos seculares que desmentem sua pseudociência simplesmente não são suficientes para uma mudança de opinião.

Todos os mitos iluministas são assim? Não. Voltando às bases do conceito que fizemos lá atrás, o que define um mito na estrutura que montamos não é se ele é factual ou não, mas a relação desse conteúdo com pessoas que podem ler esse conteúdo miticamente. Todos os dias, fatos científicos podem gerar novos mitos que, enquanto associados ao fato, seguem ainda científicos e que podem ser ou não um pouco mais maleáveis às mudanças, a depender de o quão diretamente essas mudanças confrontem as promessas iniciais do mito.

Para sair um pouco dos exemplos grandiosos e pesados, vamos para um exemplo bobinho e leve: chocolate.

Vamos pensar numa pessoa que gosta muito de comer chocolate. Se a última pesquisa científica que sair disser algo como “pesquisas recentes garantem que comer chocolate amargo faz bem para a saúde”, essa provisória verdade científica é conveniente para que essa pessoa estabeleça um pequeno “mito do chocolate que faz bem e isso é cientificamente comprovado” que convenientemente dá endosso para algo que ela já gostava de fazer e agora tem uma nova justificativa para continuar fazendo: comer chocolate.

Se uma nova pesquisa científica sair mais tarde dizendo algo como “novas evidências dizem que comer chocolate na verdade faz mal, mas que paçoca faz muito bem”, o mito do chocolate anterior é confrontado. Existe a possibilidade de resignação, em que o aspecto secular sobre ser “cientificamente comprovado” é abandonado por alguma outra justificativa: algo como “chocolate faz bem para minha alma” seria mais etéreo e difícil de uma pesquisa científica desmentir. Ou mesmo algo como “tá, talvez chocolate faça mal, mas eu vou continuar comendo porque gosto”, uma resignação que esfarela o mito original e que representa até uma pequena individuação. Ao mesmo tempo, se a pessoa desse exemplo gostar de paçoca tanto quanto gosta de chocolate, persistir no mesmo mito científico/secular vai continuar sendo muito atraente. Muito mais do que se essa pessoa detestar paçoca. Se a promessa inicial do mito para essa pessoa for “uma justificativa científica para comer um doce que gosto”, seguir respeitando a ciência nessa situação é mais conveniente do que se o mito original era especificamente sobre a justificativa servir somente para chocolate.

Esse exemplo todo é bobo, mas explica melhor como o funcionamento mítico se estrutura por outras lógicas e demandas que vão além dos discursos seculares que trabalham por uma lógica diferente. Para os mitos, o discurso secular é se muito um agente externo, um dos muitos elementos de critério a serem considerados, e esse discurso secular pode ser facilmente desconsiderado pelos significados “de glossário” ou autogeridos que sejam mais convenientes ao mito. Isso é muito fácil de perceber acontecendo num mito que não é iluminista, como em cristãos que ainda hoje contestam o heliocentrismo ou defendem o criacionismo por conta de suas conveniências míticas envoltas nesses posicionamentos, e embora seja mais difícil de perceber no caso de um mito iluminista, o processo é op mesmo. A maneira como o discurso da negação climática funciona exemplifica essa lógica do mito iluminista capaz de usar de retórica que parece racional e argumentos que parecem científicos para encobrir suas conveniências míticas.

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2. Mitos iluministas costumam acreditar que o mundo está num processo linear de “progresso” ao se tornar cada vez mais “racional” e “civilizado” e que isso envolve um processo também linear em que o mundo se torna cada vez mais secular

Esse é um aspecto dos mitos iluministas que, depois do primeiro, vai ser mais fácil de explicar.

Mitos iluministas costumam ter algum tipo de utopia em mente. Quando se fala de “progresso”, por exemplo, em mitos iluministas esse progresso é inerentemente percebido e interpretado como algo bom, algo que deve acontecer e que é construído como uma leitura específica do que esse progresso deve ser. Mitos iluministas diferentes defendem progressos diferentes: para alguns, é arrebentar inconsequentemente com os biomas do planeta todo porque seguir o “rumo do progresso” vai acelerar nosso desenvolvimento científico ao ponto de termos como consertar o planeta mais tarde, ou fugir para Marte se necessário; para outros, progresso é reunir cientistas, empresários e lideranças nacionais em eventos como aquele em que se assinou o Protocolo de Quioto, em 1997, para fingir que essa gente toda quer e/ou vai conseguir se articular para resolver nossos problemas ambientais. Para os californianos, “progresso” é lançar no mercado tecnologias disruptivas só para ver no que vai dar, fazendo o mundo todo de cobaia no processo. Para as elites, “progresso” agora é trocar todos os servos de carne que for possível por servos automatizados que não durmam, não comam e não se sindicalizem.

Todos esses “progressos”, e também muitos outros que outros mitos iluministas propagam, carregam seus próprios otimismos, seus sonhos, suas limitações. Por exemplo, o “progresso” da automação é mais atraente para um dono de indústria do que para um funcionário dessa indústria com medo de ficar desempregado. O “progresso” do Protocolo de Quioto é mais atraente para empresários que queiram fingir que a mudança ambiental pode ser enfrentada sem que isso prejudique o lucro de seus negócios, do que é atraente para um ativista ambiental que está pouco se danando para o lucros de empresas.

Mais do que olhar para o futuro, essas ideias de “progresso” e “civilização” dos mitos iluministas costumam reescrever, ou no mínimo interpretar de forma bastante enviesada, também o passado. E todos nós somos impactados por versões desses mitos iluministas ao longo de nossas vidas quando aprendemos ideias como aquela que diz que os colonialismos europeus levaram “progresso” e “civilização” para lugares do mundo em que isso não existia ainda.

Outra vez, mitos iluministas gostam de fingir que parte desse progresso e essa civilização são justamente os discursos seculares e os consensos científicos, mas é só até que esses discursos os contestem — daí, a mesma ciência que eles vendem de maneira eurocêntrica como “um dos milagres da sociedade ocidental, um presente dos povos civilizados para o mundo” vira uma ciência que foi “dominada pelo marxismo cultural”. O que diferencia a “boa ciência ocidental” do “marxismo cultural” é tão somente se os resultados obtidos de um mesmo método são ou não convenientes para determinados mitos que se dizem seculares.

No Brasil de 2023, por exemplo, o discurso científico e técnico de quem estuda povos originários da América do Sul não condiz em nada com a narrativa do mito iluminista que diz que os europeus trouxeram “civilização” para aqueles que até então não a possuíam, ou que essa “civilização” que chegou foi incontestavelmente positiva. Isso não impede que os defensores dos mitos iluministas do progresso e da civilização queiram ainda hoje invadir terras indígenas para levar a “civilização” e o “progresso” (com exploração, destruição ambiental, doenças e massacres) para os povos originários que não foram “civilizados” ainda. Pouco se argumenta, em 2023, que esse processo se justifique porque “indígenas não tem alma” ou “precisam ser convertidos ao cristianismo”, como era em versões anteriores de mitos imperialistas e totalizantes com propostas parecidas. Mas o mito iluminista do progresso entrega convenientemente uma justificativa para demandas míticas parecidas a partir de critérios que parecem seculares e que se adaptam melhor aos nossos tempos mais secularizados.

Por um lado, novamente, que bom: isso mostra outra vez um aspecto da crise mítica que comentamos no capítulo anterior. É mais viável argumentar contra algo como o “preciso invadir terras indígenas para levar progresso e isso faz sentido científico e racional” do mito iluminista atual do que seria argumentar contra o “preciso invadir terras indígenas para levar a mensagem de Jesus Cristo e a ciência e a razão não tem nada a ver com isso” do mito anterior. Mas ainda assim, essa fraqueza é também uma vantagem, no sentido que um discurso do mito iluminista que tenha uma estética mais racional pode parecer mais coerente e científico, mesmo quando não for.

Para além disso tudo, o que implica os mitos iluministas é a ideia de linearidade: aquela em que se considera a história da humanidade como uma progressão mais ou menos constante ou cíclica rumo a mais razão, mais “progresso”, mais “civilização”, com essas palavras assumindo cada uma um sentido diferente para cada mito iluminista que as emprega.

Essa é uma das ideias mais difíceis de desmistificar, tão embrenhada está em nossa cultura. É muito inerente do senso comum e muito miticamente atraente essa noção de que o mundo está ficando melhor e que isso não se debate.

O máximo que começa a ameaçar essa ideia, mesmo ainda só aos poucos, é a questão da crise climática que se torna cada vez mais incontestável. E é exatamente por ser tão antagônica à ideia de progresso que a crise climática foi tão difícil de se integrar a mitos iluministas, num sentido parecido à dificuldade que o cristianismo teve com o heliocentrismo. É difícil argumentar que a razão, o progresso e a civilização estão incontestavelmente tornando o mundo melhor quando a ameaça de um apocalipse ambiental começa a se desenhar para um futuro cada vez menos distante e esse “progresso” parece absolutamente incapaz de impedir que o apocalipse aconteça.

Mas não é só olhando para esse futuro ambiental que a ideia de progresso pode ser contestada. Para cada “medicina moderna” que pode ser exemplo positivo de avanço, há um “África pré-colonialismo” que talvez pese a balança para o outro lado. É muito difícil argumentar se a África do presente está melhor ou pior do que era mil anos atrás, depois de ter sofrido tanto com a escravidão e os impérios coloniais, só porque agora existe uma medicina moderna à qual essa África do presente mal tem acesso.

De novo, existem outros exemplos históricos. Quando se estuda mais profundamente sobre história, nota-se que a vida nos grandes centros urbanos, com todas as pestes e insalubridade que trouxe, dificilmente parece um avanço incontestável frente a como funcionava a vida no campo.Em questão de qualidade de vida, é discutível se foi mesmo tão melhor o sedentarismo do que era a vida nômade. Foi a vida sedentária que estabeleceu hierarquias desiguais e reduziu a diversidade alimentar para deixar a maior parte das pessoas desnutridas por milênios, com risco de morrer de fome diante de qualquer praga que afetasse uma colheita. É difícil considerar que a Europa do início dos anos 1200 tinha um “futuro de progresso” pela frente na Peste Negra que ia arrebentar com o continente inteiro durante o século seguinte.

Eu não quero nem mesmo estabelecer ultimatos aqui, garantindo que uma coisa foi melhor que a outra necessariamente, até porque a história é mais cheia de nuances do que isso. A vida depois da Peste Negra foi melhor aos europeus que tinham sobrevivido à catástrofe, entre as cidades modernas até uma cidade problemática como Osasco, no Brasil, é infinitamente melhor e mais funcional para o cidadão médio do que era a Paris cheia de doenças de alguns séculos atrás, a vida cosmopolita de hoje parece definitivamente mais confortável do que ser nômade ou sedentário há cinco mil anos.

Mas tudo isso são mais opiniões, ideias que podem ser contestadas, do que ideias absolutas. E também são bastante subjetivas: para mim, descendente de europeus e branco, não é difícil pensar que prefiro viver em 2023 do que em 1460; para qualquer pessoa dos povos originários do Brasil, talvez 2023 não pareça uma escolha tão óbvia daquilo que é “melhor” frente a um 1460 em que esses povos viviam infinitamente mais tranquilos antes dos europeus chegarem para exterminá-los.

Para parte dos homens brancos mais conservadores, especialmente os de classe média, parece muitas vezes uma má vontade pessimista demais essa ideia de que não é possível entender um senso concreto e incontestável de progresso na história humana. E ao invés de olhar para o passado, eu acho que faz mais sentido tentar questionar esse viés olhando para o presente: com todas as ansiedades e paranoias que esses homens costumam ter de que o mundo está saindo de mão, que o “politicamente correto” saiu de controle, que o feminismo e a esquerda vão acabar com a família, dá pra ter a segurança de que o futuro vai ser incontestavelmente de “progresso”, mesmo se esse progresso for no sentido deles? E a resposta é que não.

A cada momento histórico, há sempre um leque incerto de possibilidades e seria ingênuo acreditar que, de todas essas possibilidades, sempre será aquela necessariamente melhor que se concretizará. Essa ingenuidade otimista funciona mais olhando ao passado, como se em todos os eventos anteriores fosse possível dizer que a melhor decisão foi tomada, porque afinal quem está vivo e “por cima” hoje é quem foi beneficiado por essas decisões de antes. Mas esse otimismo costuma ir embora quando olhamos para o futuro sem ter certeza se ainda seremos os beneficiados de amanhã.

E finalmente, os mitos iluministas acreditam ainda que esse “progresso” e essa “civilização” envolvem um crescente fortalecimento dos aspectos seculares que estes mitos defendem. Para mitos iluministas, que afinal de contas não veem a si mesmos como mitos e entendem-se como a verdade inconteste e os defensores últimos do que é secular, a humanidade nasceu imersa e cega nos mitos, lá atrás, e está numa gradual jornada para se despir desses mitos pouco a pouco com o passar dos milênios.

Um exemplo fácil disso é o de um mito querido dos ateus, um dos que eu gostava muito na minha adolescência inclusive, que entende as religiões como algo decadente e obsoleto que está inevitavelmente fadado a sumir. É a leitura de quem acredita que o cristianismo está destinado a morrer nos próximos séculos, junto com todas as religiões, e que isso vai ser incontestavelmente bom para a humanidade.

Na discussão toda que tivemos nesse longo ensaio até aqui, eu espero que tenha ficado evidenciada a ideia de que mitos são ambivalentes e que não são necessariamente ruins. Mitos podem cumprir funções sociais importantes em larga escala, e também cumprem funções subjetivas mais importantes ainda na escala de indivíduos específicos. Como um ateu que estuda religiões com certa profundidade, eu não consigo defender a ideia de que religiões são inerentemente algo negativo, que deviam ser proibidas em sua totalidade, que só fazem mal, etc. Na verdade, eu me atrevo a dizer que acho que mitos em larga escala, e dessa vez não só os religiosos, não só não são algo que “faz mal”, como ainda são fundamentais para a coesão social, para a estruturação cultural de um povo, etc.

Quero voltar ao caso dos povos originários para dar um exemplo muito triste disso. Muitos povos originários que possuíam seus próprios mitos até a chegada dos europeus foram confrontados com uma mudança de paradigma tão grande depois da colonização que a tessitura mítica de suas sociedades foi absolutamente rompida. Nessas sociedades de povos originários em que os mitos morreram, o que aconteceu? Essas sociedades prosperaram e se transformaram nas potências desenvolvidas com a tecnologia de ponta e os humanos racionais que os mitos iluministas dizem que elas deveriam se transformar? Não. Essas sociedades sem mitos colapsaram, com as pessoas que delas faziam parte em enorme sofrimento e sem conseguir nem mesmo dar propósito ou sentido mítico para seus sofrimentos.

Os povos originários que sobreviveram ao confronto com os europeus não foram aqueles que abandonaram seus mitos, muito pelos contrário. Foram aqueles que, pelo apego aos seus mitos, conseguiram construir ou manter pertencimento, propósito para o próprio sofrimento, esperança para passar pelos mais terríveis desafios, e uma noção profunda de própria identidade.

Então não, mitos não são algo necessariamente terrível que precisa ser expurgado a todo custo. Como discutimos longamente agora pouco, eu acredito que determinados mitos descontrolados podem ser perigosos à esfera secular — e isso inclui até mesmo mitos iluministas descontrolados, como um mito capitalista do progresso que constantemente ameaça aspectos do discurso secular como as pesquisas sobre a crise climática.

Mas os mitos mais perigosos são justamente os totalizantes, aqueles que querem se impor para além dos outros e destruir qualquer outro mito para além deles mesmos, e mitos iluministas costumam tentar fazer isso baseados na ideia de que são os detentores da “razão”, da “civilização” e do “progresso”. São mitos que acreditam que tudo para além deles é atrasado e equivocado.

A Internet em si é um exemplo que eu gosto muito de considerar para ilustrar esse aspecto do mito iluminista. Eu, que nasci nos anos 90 e usei a Internet dos anos 2000, vi um mito iluminista muito otimista que rodava naqueles tempos de que a Internet teria o papel de tornar a humanidade mais racional, mais estudada, e que a democratização do conhecimento online serviria para acabar com todos os mitos. A Internet de 2023 é uma prova da ingenuidade do mito iluminista nesse sentido, não só porque a Internet não foi capaz de acabar com os mitos, como também porque ela serviu de certa forma até para fortalecê-los. É difícil argumentar que a Internet está “desmistificando” a humanidade se esta Internet está cheia de notícias falsas e grupos de alucinados para cada um acreditar no que bem quiser, para todo mundo negar a realidade ou o discurso secular como bem entender. É mais difícil ainda ter uma visão otimista de progresso digital considerando que essa estrutura da alucinação, dos mitos que negam a realidade, não é acidental, mas mantida porque é lucrativa, porque gera engajamento.

Retomando a ideia de certos movimentos pendulares, eu acho que o mito iluminista teve, durante um período já de alguns séculos, uma potência quase universal que partia sobretudo das elites. Esse mito totalizante encarcerava quem acreditasse nele e tornava seus identificados incapazes de conviver com outros mitos para outras demandas míticas, o que gerou um grande abismo das demandas míticas não atendidas. Eu acho que a retomada dos mitos que estamos observando, especialmente daqueles que desrespeitam totalmente os mitos iluministas e os discursos seculares, é uma espécie de resposta compensatória ao problema.

Vamos imaginar uma pessoa que passou anos tendo a necessidade de dar propósito para um sofrimento e encontrou no mito iluminista só a amarga e árida ideia de que esse sofrimento precisa ser aceito como algo que não pode ser lidado e para o qual não há propósito. Como o problema não foi resolvido, só negado, essa pessoa pode chegar ao ponto de estopim e esgotamento em que encontra algum discurso fanático que responda à sua demanda mítica por tanto tempo negligenciada.

Isso não quer dizer que o mundo não esteja se tornando mais secular, inclusive. Algo como um “católico evolucionista”, como mencionamos agora pouco, seria impensável num mundo menos secularizado do que aquele que temos hoje. E retomando um exemplo ainda mais antigo, é um exemplo importante de secularização a separação da Igreja e do Estado, que permite por exemplo que se critique a inflação sem que isso seja uma heresia que confronta um líder religioso escolhido por Deus. Mas essa secularização que é um processo real complexo, multifacetado e cheio de nuances, não é a secularização reducionista e simplificativa da promessa do mito iluminista.

O Brasil, por exemplo, segue incontestavelmente religioso, como dá pra perceber pelo dado que mencionei lá atrás sobre sermos o segundo país que mais acredita em Deus no mundo. Ao mesmo tempo, existe uma secularização crescente do país, sim, inclusive institucional (e, dos mitos dos militares aos mitos da extrema-direita, passando pelos mitos do projeto de poder evangélico e também pelos mitos negacionistas climáticos dos capitalistas ruralistas, esse aspecto secular institucional sobreviveu mesmo com várias forças tentando desmontá-lo), mas também uma secularização discursiva. Brasileiros que precisam dar propósito para seus sofrimentos estão constantemente culpando mais a irresponsabilidade de políticos do que as vontades de Deus. Esse propósito para o sofrimento, que ainda é uma demanda mítica, costuma ser atendido por mitos iluministas com estéticas seculares, como as narrativas reducionistas que oferecem respostas fáceis a partir de certos mitos políticos rudimentares.

Esses mitos também demonstram, de certa forma, o fracasso da proposta dos mitos iluministas de abandonarem os mitos. Quando necessidades míticas ainda existem e há uma pressão para que essas necessidades não sejam atendidas por mitos, o que acontece é que ainda são mitos que irão atendê-las do mesmo jeito, se não os fanáticos que vão surgir revoltosos, então justamente os mitos iluministas que entram em lugar para atender tais demandas se camuflando melhor com suas estéticas racionais de supostamente “não serem míticos”.

O Brasil mais secular de 2023 é um Brasil com mais mitos iluministas, como os dos coaches, empreendedores, os fanáticos do bolsonarismo, etc., porque embora tenha sido dito que mitos não deviam mais resolver problemas, a única solução que continuou sendo ofertada para os problemas sem solução seguiu sendo a dos mitos.

Num país desses em que as soluções complexas e pragmáticas que poderiam resolver questões complicadas não podem ser implementadas porque são muito desesperançosas, lentas, impopulares, difíceis de explicar em suas nuances ou radicais para os interessados na manutenção do status quo, o que sobra são as ilusões de solução que mitos podem entregar.

Isso vale mesmo se os mitos entregues forem só os iluministas, com sua estética de seculares, que são só o que se pode entregar quando a intenção é fingir que a solução que se entrega deixou de ser mítica, mesmo que mítica continue sendo.

O mito iluminista fez com que, socialmente, negligenciássemos a regulação responsável dos mitos (inclusive desses próprios mitos iluministas!) e as necessidades míticas das pessoas como um todo. Tudo isso por uma expectativa de que mesmo mitos responsáveis deveriam ser entendidos como indesejados e de que as pessoas deveriam “engolir o choro” de suas demandas míticas e aceitar que elas não seriam atendidas quando mitos iluministas não fossem suficientes.

Além de cruel (e oportunista por dificultar a concorrência), essa expectativa de secularização implacável do mito iluminista estava equivocada e agora pagamos o preço, pelas negligências que ela motivou, com o descontrole desenfreado dos mitos que circulam e com a urgência das demandas míticas das pessoas que até então não eram atendidas.

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3. Mitos iluministas são totalizantes, imperialistas e descendem de uma estrutura mítica eurocêntrica que remonta no mínimo aos impérios coloniais europeus como justificativa para “civilizar” os outros

Depois de falar tão criticamente dos mitos iluministas nos pontos anteriores, acho que é importante começar esse terceiro ponto com uma análise um pouco mais positiva sobre eles, o que pode parecer irônico dado o título desse terceiro ponto, mas é importante para fazer sentido do meu argumento.

Para começar, eu gostaria de destacar que eu não escolhi a palavra “iluminista” arbitrariamente para estes mitos que estou criticando. Eu realmente acredito que existe uma tradição de mitos iluministas que remonta pelo menos ao período de (bem, desculpem pela redundância) surgimento do iluminismo na Europa. Demarcar isso é importante para contextualizar os mitos iluministas historicamente e compreendê-los melhor.

Os mitos iluministas surgiram com muitas das características que preservaram até hoje por uma questão particular do contexto inicial em que foram desenvolvidos. Eles vinham atender a necessidades crescentes das pessoas do período que não eram atendidas por outras narrativas de então. Os mitos totalizantes da época, sobretudo os religiosos e os aristocráticos, estabeleciam uma parceria importante de fortalecimento mútuo e atendiam a uma rede intrincada de poderes e interesses associados. Essa estrutura era rígida e estabelecida demais para que esses mitos pudessem ter suficiente maleabilidade e adaptabilidade no atender de novas demandas míticas.

Eu citei o catolicismo como um exemplo positivo agora pouco, mas é importante destacar que o catolicismo que elogiei por seu potencial de adaptação é aquele que existe hoje em dia, um catolicismo que demorou três séculos e meio para formalmente rever sua posição no julgamento de Galileu. O cristianismo que existia quando o iluminismo começou era muito menos leniente com adaptações e coexistências desse tipo e era muito mais agressivo na tentativa de supressão de dissidências. Era um mito totalizante no sentido mais literal possível da palavra, com uma estratégia sempre presente de tentar garantir o monopólio absoluto da oferta de qualquer mito para suprir qualquer demanda mítica que pudesse existir.

E um mito que seja ao mesmo tempo tão propenso ao monopólio, mas tão limitado nas demandas míticas que pode atender por sua burocracia e interesses associados, é um mito que começa a gestar uma demanda profunda por aquilo que ele não atende, aquilo que é impossível de atender enquanto esse mito estiver tão poderoso ao ponto de suprimir sua concorrência.

Existiam várias dessas demandas não atendidas: por outras leituras do cristianismo, por uma esperança de reorganização social, por mais qualidade de vida para os mais pobres, por mais esperança de ascensão social a partir de outros critérios que não o sangue nobre, etc. O iluminismo reuniu várias dessas demandas sobre uma égide única, prometendo reformas tanto políticas quanto religiosas.

Os aspectos seculares que mencionamos tão constantemente até aqui, por exemplo, até existiam antes do iluminismo. O próprio cristianismo guardava certos embriões dessas características seculares nas suas leituras possíveis das ciências naturais, nas universidades que surgiram antes como instituições da própria Igreja, na escolástica como um todo, na preservação de livros, etc. Mas o exemplo de Galileu é só um dos muitos que demonstram como esses aspectos seculares nos mitos cristãos de então eram secundários às prioridades religiosas. A filosofia, para dar outro exemplo semelhante, existia e inclusive com força, mas sua prioridade era sobretudo a de adaptar os aspectos seculares de maneira a integrá-los melhor aos mitos religiosos (o melhor exemplo é a tentativa de figuras como Agostinho e Aquino de adaptar e assentar no cristianismo certas ideias da filosofia grega). O que existia de secular estava sempre condicionado e submisso ao mito religioso que era mais poderoso e importante.

Dada a fragilidade desses aspectos seculares, portanto, seria impensável que eles se estabelecessem na força convencionada e descentralizada dada ao método científico, ao consenso científico como um todo, algo que ninguém pode controlar. Hoje, uma enfermeira criacionista não tem poder de editar o consenso científico para silenciar ou distorcer aquilo que não a agrada, mas nem sempre foi assim. As instituições religiosas já tiveram exatamente esse poder inclusive quando, retomando o exemplo de novo, decidiram que a Terra ser o centro do sistema solar era sim o consenso científico e pronto, porque era aquilo que ao mito religioso importava e porque a instituição religiosa até então era a figura de autoridade a quem cabia estabelecer os padrões e consensos do pensamento em todas as esferas.

Esses aspectos seculares também tinham um segundo rival poderoso: todo o aparato do Estado monárquico e da nobreza tradicional. Não existe nada de secular ou lógico no argumento de “meu sangue é melhor que o seu e por isso eu mereço o privilégio de viver de ócio, passando esse mesmo privilégio aos meus herdeiros” ou “o poder do rei é estabelecido pela vontade de Deus e confrontar esse rei é desrespeitar também a Deus”. Se qualquer aspecto de qualquer ideia secular confrontasse essas dinastias sanguíneas ou esses reis endossados por Deus, esse aspecto secular seria suprimido.

O mito iluminista que surgiu para enfrentar esses grandes poderes estabelecidos, portanto, não podia ser frágil, conciliador, moderado. Seria engolido se assim o fosse. Existe uma certa pressão quase ao nível da sobrevivência do mais forte em que, não fosse tão apaixonado, tão potente em atender a todas as necessidades não atendidas de até então, e tão agressivo para garantir sua sobrevivência e expansão, o mito iluminista teria sido definitivamente silenciado.

Existem alguns causos que eu acho muito emblemáticos sobre todo esse processo. Um deles é de Friedrich Schiller, que foi um dos mais importantes pensadores do mito iluminista embrionário. Esse Schiller, também privilegiado, tinha uma visão mais moderada de como o iluminismo deveria ganhar o mundo gradual e racionalmente. O evento da Revolução Francesa, da forma absolutamente brutal e caótica como ocorreu, assombrou a um Schiller que esperava que o movimento iluminista fosse ser mais “civilizado”, de acordo com seus parâmetros, do que aquilo foi. Estou citando Schiller em específico porque o acho suficientemente representativo, mas vários outros homens brancos e privilegiados do iluminismo teórico ficaram também assombrados e preocupados com a Revolução Francesa, inclusive Hegel e Kant. A ideia de que o mito iluminista que eles estavam ajudando a estruturar pudesse ter tamanha potência irrefreável e violenta era algo estranho para eles.

Eu tenho uma análise particular sobre isso de que os teóricos do iluminismo de então subestimavam um pouco o que estavam criando porque estavam percebendo apenas como o mito iluminista atendia às suas próprias necessidades enquanto eruditos privilegiados, quando na verdade o mesmo iluminismo que lhes entregaria mais liberdade para pensar e pesquisar era um iluminismo que prometia aos pobres a esperança de talvez não morrer de fome enquanto os nobres se empanturravam. O mito iluminista deu certo justamente porque conseguiu estabelecer alianças ao prometer que atenderia demandas de pessoas ricas e pobres, privilegiadas ou não. O quanto dessas esperanças se realizaram depois, especialmente por parte dos mais pobres, são outros quinhentos. Mas o apelo existia e acho que, ainda que com todas as suas limitações e questões problemáticas, o iluminismo representava avanços para os pobres também, especialmente quando comparado ao sistema que ele contrapunha.

O aspecto irredutível e inconciliável do mito iluminista me parece ser uma consequência desse contexto (de supressão por parte dos cristãos e dos nobres do período) de maneira semelhante a como o próprio aspecto irredutível e inconciliável do cristianismo foi consequente do contexto de supressão por parte dos nobres romanos pagãos da sua época. Parece que um mito totalizante decadente, especialmente quando é autoritário e tenta proibir sua concorrência, quase que convida um novo mito totalizante que surja para enfrentá-lo.

O mito iluminista totalizante foi capaz de engolir os aspectos seculares frágeis do período e foi dentro do mito iluminista que esses aspectos seculares tiveram a segurança e a nutrição que precisavam para se desenvolverem, estruturarem e ganharem força. Se hoje eu posso sugerir que talvez esses aspectos seculares sobrevivam mesmo diante da desconstrução dos mitos iluministas que por tanto tempo os abrigaram, isso é resultado de um longuíssimo processo. Simplesmente não haveria aspectos seculares da maneira que há hoje sem o pacto profundo desses aspectos com mitos iluministas que se estruturaram para defender a esfera secular e até mesmo criar essa esfera do zero em certos casos, em situações como a da separação entre Igreja e Estado que dá nome e significado inicial para a própria ideia de secularismo que estou usando com maior abrangência.

Toda a argumentação que fiz até aqui é muito contextual a um momento histórico que me parece oportuno no sentido em que, diante de uma grande crise mítica que já se estabeleceu e de um mito iluminista que já está decadente, temos uma oportunidade única de tentar resolver essa situação com outro caminho que não seja a chegada do próximo mito totalizante.

Novamente, o fracasso é sempre uma possibilidade: talvez, independente do que seja feito, um novo mito totalizante esteja fadado a surgir para suprir todas as demandas que atualmente não são atendidas, desmontar os mitos iluministas de vez e iniciar um novo ciclo de defesa de seu próprio monopólio. Mas talvez não. A oportunidade para outros caminhos existe e não é absolutamente fundamental que o mito iluminista (que no seu estado atual dá quase na mesma chamar de mito capitalista, tão embrenhadas as duas coisas estão) reaja à sua própria decadência da mesma maneira autoritária que os mitos anteriores reagiram. Eu acho inclusive que, dada sua natureza mais descentralizada e o atual estado já avançado de desconstrução de sua potência, o mito iluminista tem menor probabilidade até mesmo de conseguir realizar algo do tipo, mesmo se quiser.

Um mito iluminista que não se vê como um mito, que é negligente com sua própria concorrência mítica, que acredita numa espécie de próprio Destino Manifesto de que o futuro invariavelmente vai trazer maior disseminação dele mesmo com uma humanidade cada vez mais racional e desmistificada, é um mito iluminista que vai ter dificuldades em construir uma resposta organizada a mitos que o antagonizarem e que, mais do que isso, talvez não vá nem mesmo ver propósito em fazer algo do tipo.

Novamente usando o exemplo do Brasil, os mais vinculados ao mito iluminista, a essa promessa de que religiões são “coisa do passado”, são aqueles que mais subestimam ameaças como o projeto de poder dos evangélicos que mencionamos lá atrás. Quando eu, que sou ateu e convivo com pessoas de pouca religiosidade, fui explicar a relevância do estudo sobre evangélicos que foi base da minha dissertação do mestrado, encontrei muitas reviradas de olhos, desinteresse generalizado e gente que simplesmente não queria falar sobre o assunto. O crescimento de determinadas religiosidades no Brasil é visto como sinal de retrocesso, ao mesmo tempo em que é visto como algo que não deve ser combatido com mais do que uma crítica muito superficial.

Tudo isto dito, é importante fazer a mesma ressalva feita ao mito dos cristãos de que esse mito iluminista do presente, agora decadente e irresponsavelmente inofensivo às suas concorrências, trata-se do resultado de um longo processo. O mito iluminista no auge de sua potência foi, volto a reforçar, totalizante, violento e autoritário em diversas situações, carregando consequências dessas características até hoje.

Ainda no estado de contextualização histórica, mitos iluministas não nasceram no vácuo também no sentido em que nasceram vinculados a projetos imperiais, de capital e de colonização, se desenvolvendo e fortalecendo durante o mesmo período em que começaram as grandes navegações, o comércio internacional de escravos e todo o resto.

Existe um exemplo ótimo dessa questão no sentido da leitura que os mitos iluministas fazem do resgate de aspectos da Antiguidade greco-romana. No título dessa parte do texto, eu disse que os mitos iluministas remontam “no mínimo” aos impérios coloniais europeus e acho importante destacar que esse mínimo está no título porque existe uma possibilidade, que me parece menos convincente, de que esses mitos remontem “no máximo” também aos impérios romanos e até aos impérios gregos anteriores, com sua possível semente última sendo talvez a do império marítimo ateniense em seu auge.

Essa é uma discussão em que eu não pretendo me aprofundar porque há historiadores mais capazes de fazê-lo, mas é de se argumentar se um europeu iluminista do período da Queda da Bastilha, como Schiller, tem grandes associações com um romano da época de Jesus Cristo, ou com um ateniense de ainda antes.

Há certos elementos que parecem associar todos esses: todos tinham seus próprios mitos totalizantes e imperialistas que embalavam certos aspectos seculares para justificar sua “civilização” como algo superior frente à “barbaridade” dos seus oponentes. Mas há uma certa desleitura por parte dos europeus, especialmente a partir dos mitos iluministas, sobre até onde vão essas semelhanças. Por exemplo, há uma expectativa de embranquecimento e “iluminização” dos gregos e romanos, como se eles fossem idênticos ao europeu iluminista em tudo, sendo que certamente não eram.

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A brancura das estátuas

O exemplo divertido que quero dar sobre isso é das estátuas. Para os mitos iluministas, até hoje obras de arte clássicas são fetiches simbólicos. O próprio iluminismo nasce sobretudo a partir do renascentismo que foi a retomada de interesse no período das civilizações greco-romanas clássicas. A arte então é muito importante ao iluminismo como uma fundação estética de seu discurso e as estátuas clássicas especialmente são vistas quase como uma justificativa concreta da superioridade dos povos associados aos mitos iluministas, uma demonstração de sua excelência. Até mesmo o racismo científico, já mencionado anteriormente, usava dessas estátuas como um ideal do humano perfeito — e a aproximação dos europeus a esse ideal frente a outros povos foi também uma das justificativas para o mercado de escravos como uma instituição que podia se associar ao iluminismo.

A maneira como viemos a conhecer essas estátuas, sempre desprovidas de cor, contribui para o efeito estético dessa austeridade racional que agrada aos gostos estéticos dos interesses iluministas. As estátuas iluministas que tentam retomar a estética clássica são todas propositalmente isentas de cor, como o Davi de Michelangelo que talvez seja seu símbolo mais absoluto. Mas existe um problema nisso: as estátuas clássicas greco-romanas, descobriu-se recentemente, não eram sem cor como o Davi de Michelangelo. Na verdade, elas eram bastante coloridas, algumas quase carnavalescas.

Esse é um exemplo maravilhoso de como mitos iluministas gostam de aspectos seculares, mas só até a página dois. O processo que comprovou que as estátuas eram coloridas foi feito a partir da mais rigorosa burocracia secular dos técnicos, tudo muitíssimo bem documentado, mas isso não impediu a reação negativa por parte de determinados mitos iluministas como o dos supremacistas brancos que enviaram ameaças de morte aos pesquisadores que publicaram os estudos. Essa reação violenta é condenável, mas ao mesmo tempo faz sentido. A cor das estátuas desagrada a estética iluminista e divorcia obras do período clássico de fato, como a Vênus de Milo, da interpretação e reprodução imperfeita desse período clássico feita mais tarde pelos europeus como Michelangelo e seu Davi. Se uma estátua grega ficou sem cor por acidente, enquanto aos olhos dos gregos do período em que foi feita devia ser vista colorida, isso já a diferencia em absoluto de uma estátua renascentista que foi propositalmente feita sem cor por um equívoco e desleitura de seu momento histórico, tanto quanto por outros valores estéticos daquilo que devia agradar aos europeus de seu próprio tempo.

As estátuas demonstram um pouco de um processo mais geral em que vários aspectos dos gregos e romanos antigos foram interpretados pelos mitos iluministas a partir de seus próprios vieses. O embranquecimento do período clássico, especialmente dos gregos, faz parte dessa narrativa também. Toda a noção de “progresso” linear que criticamos antes, inclusive, passa por essa ideia de vinculação entre impérios que buscam endosso no seu anterior. Como os romanos buscavam endosso num vínculo cultural e num apreço estético aos gregos que justificasse sua superioridade, os iluministas construíram apreço estético semelhante e retomaram seu suposto vínculo cultural aos romanos e gregos de antes. Pouco importa que a história concreta dos povos não endosse muito da ideia de que romanos são fundamentalmente vinculados aos iluministas europeus que surgiram tantos séculos mais tarde. Ao mito, o vínculo é importante.

Esse vínculo demonstra o problema dos mitos iluministas em seu aspecto totalizante e imperial e, porque para alguns ser totalizante e imperial possa não parecer um problema, é importante destacar que o principal efeito dessa situação é uma limitação de seus mitos. Era o aspecto totalizante do cristianismo que impedia que ele convivesse com as demandas que não atendia e que os iluministas vieram mais tarde a atender. É o aspecto totalizante dos mitos iluministas que relega as demandas que esses mitos não atendem a seguirem não atendidas enquanto cresce de pouco em pouco a intensidade da falta por solução que as atenda.

A rigidez mítica desta limitação também mostra que, por maior que tenha sido a capacidade do discurso secular de crescer e prosperar sob as asas dos mitos iluministas, essa relação está em crise. Além do exemplo que acabamos de dar sobre as estátuas coloridas que têm sua ciência negada porque é inconveniente, já trabalhamos com vários outros exemplos, alguns mais nichados como o dos eugenistas de hoje em dia, outros mais abrangentes como o negacionismo climático, que mostram como os discursos seculares de hoje são às vezes antagônicos demais a determinadas bases de mitos iluministas para serem satisfatoriamente integrados.

A contextualização histórica dos mitos iluministas também é importante para perceber limitações do tipo na interação com outros mitos, povos e culturas. A narrativa eurocêntrica desses mitos iluministas desconsidera várias coisas, como: o protagonismo que o mundo islâmico teve no desenvolvimento da ciência e até mesmo na preservação dos textos gregos clássicos que impulsionaria depois o renascentismo; o protagonismo que a China teve como principal palco de civilizações por quase toda a história humana; o potencial que a farmacologia tem de descobrir novas medicinas quando escuta e aprende com os nativos de uma região que conhecem as plantas tradicionalmente usadas em preparos artesanais como chás; e até mesmo como povos para além dos europeus podem contribuir para o desenvolvimento de técnicas mais sustentáveis de agricultura do que a monocultura que degrada solos.

A antropologia como área do conhecimento também é um bom exemplo: nasceu profundamente embrenhada aos mitos iluministas para justificar os europeus “civilizados” frente aos povos conquistados e foi progressivamente superando seus vieses inicias para tornar-se mais secular de fato. Essa progressão da ciência antropológica não foi acompanhada pelos mitos iluministas que hoje a ignoram ou desconsideram nas suas retóricas.

Desses exemplos, há aqueles contextuais, que remontam as narrativas e significados anteriores, e aqueles dos desenvolvimentos seculares, da progressão da ciência, que dificilmente tem muito a alcançar daqui para frente insistindo na já esgotada base dos mitos iluministas e sua ênfase ao mundo europeu/branco. As discussões técnicas sobre soluções para a crise climática, mesmo as mais científicas, têm pouco a aprender que ainda não se saiba com os métodos já consolidados há milênios de agricultura na Europa, enquanto existe muito potencial nas já mencionadas potencialidades de métodos de cultivo alternado que foram tradicionais de outros lugares. Há certamente mais a se descobrir na farmacologia pela Amazônia, o que vai depender de interação com os moradores de lá, do que podem entregar as plantas que sobraram na Europa e que já foram exaustivamente catalogadas. E há mais ciência e discurso secular na pesquisa para perceber as cores originais das estátuas gregas do que existe ciência e discurso secular nos mitos iluministas que se incomodam com pesquisas desse tipo porque as estátuas brancas lhes parecem mais bonitas e austeras.

Os mitos iluministas tradicionais ainda existem porque ainda atendem a demandas, mas sua crise como um todo e seu crescente divórcio dos discursos seculares são demonstrações de que esses mitos, também, precisam ser regulados do mesmíssimo jeito que propus para mitos religiosos. Felizmente, na esfera secular já há uma articulação maior a certos negacionismos quando partem dos mitos iluministas porque, partindo do pressuposto de que deveriam ser racionais, os mitos iluministas ainda tentam estabelecer argumentos (mesmo quando falaciosos) que soem convincentes. É o que já discutimos sobre como teorias da conspiração antivacinas que não usem de discurso religioso são teoricamente mais criticáveis pela lógica.

Ao mesmo tempo, a vantagem dos mitos iluministas é justamente essa situação em que conseguem às vezes se colocar como sinônimos de razão e principais defensores do discurso secular. Há uma hipocrisia (que remonta ao mesmo tipo de contradição do caso dos terraplanistas) em mitos iluministas como os das extremas direitas que podem, num só fôlego, negar o consenso científico ao falarem sobre as ditas estátuas clássicas, ou sobre pseudociências como do racismo científico, enquanto dizem que são as verdadeiras “defensoras da verdade, da razão e da ciência” em questões como a discussão sobre gêneros.

Existe também uma grande dificuldade decorrente da competição entre dissidências de mitos iluministas em confronto direto, especialmente quando esses mitos são amalgamados a questões políticas mais gerais, porque todo mito iluminista totalizante é incapaz de atender determinadas demandas e abre oportunidade para algum mito oposto atendê-las.

E para explicar isso, eu quero dar o exemplo do embate entre mitos iluministas totalizantes associados à esquerda e à direita e como cada um toma para si o monopólio de determinadas demandas míticas que lhe fortalecem enquanto negligencia demandas que estão associadas aos seus principais competidores.

Muito que bem, vamos lá.

A realidade é o discurso que me satisfaz enquanto dos outros exige resignação

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Existem certas demandas míticas que os mitos de direita não conseguem atender e que os mitos de esquerda, sobretudo os marxistas, atendem muito melhor. Para qualquer um que não o siga porque não quer ou porque não atende às normatividades mais básicas, o discurso de direita pode ser menos eficiente.

Demos o exemplo lá atrás da meritocracia como uma solução discursiva possível, mas é interessante perceber que há certa amargura para alguém pobre que tenha que escutar algo como “se você é pobre, a culpa é toda sua e só cabe a você resolver isso”, que é aquilo que discurso meritocráticos à direita podem entregar quando não tentam entregar teorias da conspiração e bodes expiatórios, frente ao conforto que um discurso de esquerda pode dar ao dizer coisas como “sua pobreza não é culpa sua, é resultado de estruturas sociais e situações historicamente construídas, e sua pobreza pode ser combatida coletivamente”. Existe quem se sinta tentado pela narrativa individualista meritocrática tanto quanto existe quem prefere a narrativa coletiva das desigualdades estruturais? Certamente. Mas para quem é visto como o pobre fracassado pelo discurso da direita, há algo nesse caso que só a narrativa com mais nuances da esquerda é capaz de entregar.

Retomando um exemplo mais antigo ainda, o mesmo vale para questões como a da leitura do que é belo. Para as direitas no geral, são muito mais rígidos os critérios e limitadas as possibilidades do que pode ser bonito. Para alguém que queira se sentir bonito e que não se enquadre nos limites de beleza da direita, pode parecer mais atraente a ideia de beleza defendida pela esquerda, com critérios mais maleáveis e inclusivos.

Nos discursos da esquerda, para dar concretude ao exemplo, existe uma autoestima a ser construída por uma mulher preta e pobre que se identifique e estabeleça identidade nesses discursos. Uma autoestima, um pertencimento, um conforto, que essa mulher preta e pobre não vai encontrar da mesma maneira nos discursos da direita.

Bonito, certo? Mas isso também funciona do avesso.

Às vezes, nos discursos da direita existe uma autoestima a ser construída por um homem branco, rico ou de classe média, que se identifique e estabeleça identidade nesses discursos. Uma autoestima, um pertencimento, um conforto, que esse homem branco e rico não vai encontrar da mesma maneira nos discursos da esquerda.

A situação de embate entre esses mitos se dá com uma instrumentalização belicosa de discursos seculares porque esses mitos, enquanto totalizantes, não conseguem propor coexistências aos outros mitos com capacidade de entregar algo diferente para atende às outras demandas. E porque são totalizantes e rígidos em suas estruturas e alianças, esses mitos conseguem muito menos no sentido de eles mesmos se adaptarem para passarem a atender estas demandas.

Seguirei nos mesmos exemplos.

Quando um discurso de direita que se acha o dono da verdade precisa combater o apelo que os mitos de esquerda terão para a mulher pobre e preta, existem alguns caminhos de alternativas míticas que até funcionam, mas podem ser menos eficientes. É o caso do mito da democracia racial para tratar da questão racial, ou do já mencionado mito meritocrático para a questão de classes. Mas quando esses não funcionam, o que o mito de direta costuma tentar fazer é dizer que está defendendo “a verdade” e que a mulher preta e pobre precisa resignar-se a aceitar esta verdade, mesmo que a contragosto.

Apesar de acontecer com tudo, isso é especialmente aparente na questão da beleza, em que os mitos de direita desconstroem as narrativas da esquerda sobre a beleza diversa e relativa como ilusões equivocadas e dizem que quem é “feio” aos critérios de beleza da direita precisa simplesmente contentar-se com a própria feiura. A direita nesse sentido pode tentar envergonhar e ridicularizar a vontade de uma pessoa de se sentir bonita, estabelecendo-se como defensora dos critérios objetivos de beleza que precisam ser aceitos por quem quer a verdade e não uma ilusão. Nisso, existe uma hierarquia sendo proposta, essencialmente iluminista, de que uma verdade amarga é melhor do que uma ilusão confortável. Se esse mito de direita considera alguém feio e isso é entendido como verdade, é entendido também que é mais valioso que essa pessoa aceite resignada a amarga verdade de sua feiura do que tente se convencer do contrário.

É um discurso cheio de limitações e hipocrisias, certamente, e vou citar só algumas. Enquanto se diz crítica do “relativismo pós-moderno”, essa mitologia comum das direitas é capaz ela mesma de negar fatos científicos quando eles lhe são inconvenientes. A própria discussão científica e técnica sobre beleza, inclusive, tende mais aos argumentos da esquerda e do que a direita chama de “relativismo” do que aos argumentos da direita. A direita frequentemente diz que a ciência está “aparelhada às esquerdas” quando esta ciência diz qualquer coisa que a direita não queira ouvir, enquanto a mesma direita se vende como a defensora das verdades científicas quando decide ela mesma defender e personificar certas verdades científicas que acredita que possam desagradar às esquerdas.

Além disso, esse discurso da resignação à “verdade” carrega uma gigantesca conveniência: ele ainda é confortável a alguém que vai defendê-lo de acordo com seu próprio conforto. A feiura das direitas não é um fato dado para todos, que todos precisamos igualmente aceitar resignados, por mais amargo que seja. É uma feiura com a qual alguns vão ter que sofrer, enquanto outros, os lidos como bonitos, vão ter o conforto mítico da identificação com a beleza. A sustentação desse mito depende de entregar conforto a alguém, em algum lugar, em algum momento. As verdades científicas da resignação só aparecem quando o mito falha em entregar esse conforto e precisa tentar evitar que a pessoa frustrada vá atrás da concorrência.

E isso não é nem de longe exclusivo das direitas. Não é uma questão de equiparar direitas e esquerdas como se fossem idênticas: os discursos da esquerda costumam ser menos cínicos e um pouco mais abertos a respeitar novidades seculares como novos estudos que possam confrontar seus vieses. Mas há também limitações inerentes em mitos de esquerda, especialmente os que seguem estruturas e estratégias iluministas semelhantes, mas também no ponto cego sobre como resolver a entrega de conforto e autoestima para aqueles que estes discursos entendem como opressores.

Definimos mais ou menos que mitos iluministas carregam essa característica de usarem certos aspectos do discurso secular como arma, especialmente ao lidar com suas concorrências, e que podem desconsiderar esse mesmo discurso secular quando lhes é inconveniente. Definimos também que enquanto podem usar desses discursos seculares para desmontar a concorrência, esses discursos podem pedir a resignação quando não possuem uma alternativa mítica à altura para entregar a alguma demanda.

Mitos iluministas de esquerda seguem também tendo todas essas características. Em contexto, são iluministas porque partem como uma dissidência do iluminismo para o marxismo. Hegel era inegavelmente iluminista no sentido mais puro e Marx, que parte de Hegel enquanto homem já de outras características históricas, carrega ainda muitíssimo do seu legado. O materialismo histórico, especialmente na sua leitura dialética da história rumo a constantes melhorias, é uma ideia de esquerda ainda profundamente vinculada às noções lineares, ou mesmo cíclicas, de “progresso”. E o elemento totalizante está presente na ideia de que esse progresso depende de um desmonte da concorrência: tanto quanto os iluministas revolucionários franceses flertaram com a ideia de proibir a religião para algum monopólio mítico que deles partisse, os revolucionários russos quiseram fazer a mesma coisa.

Para além da história e partindo para a estrutura, há para começar várias questões delicadas que mitos de esquerda costumam atenuar, suavizar ou negar completamente, inclusive com teorias da conspiração, que mostram aqui que o respeito aos aspectos seculares nesse caso também só vai até a página dois. No Brasil das semanas em que estou escrevendo isso, Lula acabou de receber Maduro com pompa e circunstância e relativizou o autoritarismo na Venezuela como “narrativas”. Muitos setores inclusive da esquerda o criticaram, mas esse exemplo demonstra uma situação mais ou menos presente na maneira como a esquerda lida com figuras históricas autoritárias como Stalin ou Mao e como pode lidar hoje com situações tais como a da Coreia do Norte, da Venezuela, da Rússia ou da China.

É comum que discursos marxistas sejam muitíssimo competentes em perceber e criticar com argumentos seculares as ações de imperialismo norte-americano, enquanto o imperialismo chinês ou russo é entendido de forma suavizada. Reforço, essa suavização costuma ser pouco científica mesmo quando é convincente e também costuma ser muito baseada na conveniência.

O caso da Coreia do Norte é bom: pelo pouco de informações que temos a respeito, não há indícios suficientes que possam sustentar o discurso de que na verdade a Coreia do Norte é uma utopia resiliente às sanções e que tudo de negativo que sabemos sobre ela se trata exclusivamente de propaganda imperialista norte-americana. Existem interesses norte-americanos em pintar a Coreia do Norte do jeito mais negativo possível? Certamente que sim. Mas não há indícios suficientes, especialmente na discussão que acontece num lugar tão distante de lá como é o Brasil, para argumentar pela situação de utopia norte-coreana. E ainda assim, aproveitando meu exemplo anedótico, vejo com certa frequência apologistas da Coreia do Norte na Internet — e, que coincidência, eles sempre são de esquerda.

Isso tem muita relação com as questões de associação amalgamada que discutimos lá atrás. Quem é de esquerda e quer pintar a Coreia do Norte sob uma luz mais positiva considera que um “mal exemplo” de esquerda pode prejudicar a esquerda como um todo.

No caso do Brasil, o exemplo da Venezuela é melhor ainda. Está mais próximo, as evidências do autoritarismo por parte de Maduro são muito mais abundantes. Sabemos bem que existem interesses norte-americanos na deposição do governo de Maduro, mas a bem de verdade eles também tem interesse em negociar com a ditadura do jeito que as coisas estão e com outras ditaduras no geral como a saudita (inclusive, a guerra na Ucrânia fez com que os Estados Unidos voltassem a comprar petróleo venezuelano, para dar um exemplo dessas ambiguidades).

Enquanto Cuba tem uma situação mais ambivalente e funcional para carregar mais nuances, é difícil entender a Venezuela como mais do que um regime autoritário e incompetente que no máximo usa da estética discursiva da esquerda para tentar estabelecer justificativa que endosse sua perpetuação no poder. E ainda assim, há centenas de brasileiros apologistas da ditadura venezuelana, vejam só que coincidência, sempre nas nossas esquerdas.

Mas para além das distorções ou dos assuntos em eterna disputa de significados, existe um aspecto mais grave ainda dos mitos iluministas de esquerda: eles também não são capazes de se adaptar para resolver demandas de todo tipo, na situação de ponto cego que mencionei antes.

Vamos pegar de exemplo um rapaz branco de classe média, inseguro, ambicioso e cristão. Exceto se ele for de um nicho muito particular (ao qual voltaremos logo), existe pouco que mitos iluministas de esquerda podem entregar para ele no sentido de conforto, autoestima, pertencimento. Na verdade, mitos iluministas de esquerda costumam exigir uma resignação enorme ao conforto por parte de homens desse tipo. Há uma infinidade de argumentos seculares corretíssimos, coerentes, e inclusive com os quais eu concordo, que podem desmontar todos os mitos associados a esse rapaz branco até as bases. A discussão sobre branquitude, sobre colonialismo, sobre privilégios da normatividade, sobre como se constrói a ideia de masculinidade, sobre a história cheia de controvérsias do cristianismo, são todas capazes de esfarelar cada aspecto dos mitos que entregam conforto a esse rapaz se ele estiver disposto a ouvir e se aprofundar nas argumentações envolvidas.

Mas ao mesmo tempo, em situação das suas demandas míticas, para esse rapaz tudo isso pode parecer muito injusto. Ele pode se perguntar coisas como: por que ele tem que sofrer na aridez da resignação sem conforto mítico por causa de estruturas históricas que foram construídas antes que ele nascesse? Por que a negritude pode ser vista como algo a se fortalecer e orgulhar, enquanto a branquitude é algo a se criticar e desconstruir? Por que ele precisa resignar-se das suas ambições ao ser de classe média porque o momento histórico exige que outras pessoas em situação maior de desigualdade ascendam?

Depois de tanto tempo falando dos mitos nessa situação mais abstrata, como narrativas que afetam várias pessoas de uma vez, eu queria retomar às bases lá de trás para lembrar que todos os mecanismos míticos acontecem indivíduo a indivíduo, pessoa a pessoa, e eu queria analisar esse rapaz branco em particular nessa situação.

Se esse rapaz é inseguro e quer se sentir bom e valioso, o principal comportamento que as esquerdas lhe ofertam como alternativa para isso é o da resignação, do ceder espaço, do desconstruir suas próprias narrativas. Tudo isso é amargo e miticamente autofágico: um mito de valoração pela desconstrução de outros mitos de valoração.

O que os mitos de esquerda podem entregar a esse rapaz em sentido de propósito, de identidade, de conforto, é muito mais complexo, cheio de nuances.

Para alguém que busca por narrativas mais simples e otimistas, tudo isso pode parecer amargo demais. Para quem quer motivação pura e simples para acordar de manhã, estudar bastante com sonhos para o futuro e trabalhar bastante sentindo que esse trabalho tem algum sentido para além da exploração, o discurso motivacional de um coach barato da direita vai parecer mais atraente. Para alguém que quer se sentir simplesmente uma boa pessoa, sem complexificar ou problematizar demais essa ideia de bondade, a direita vai parecer mais atraente. Se esse rapaz busca pertencimento ou até mesmo um sentimento de ser de alguma maneira especial, ele talvez encontre isso mais num grupo de outros homens que exaltam sua masculinidade a partir de poucos e simples critérios de masculinidade a serem almejados, do que num grupo diverso que problematiza e relativiza a masculinidade como um todo e a vê como fenômeno mais complexo.

Às vezes, um mesmo objeto pode trazer conforto para alguns, sob uma determinada leitura mítica, enquanto pode trazer desconforto a outros. E consequentemente, a desconstrução desse objeto pode ser confortável a uns enquanto vai exigir alguma resignação de outros. Existe uma expectativa de resignação com o que é amargo, com o que é desconfortável, que a esquerda como um todo espera de rapazes brancos e privilegiados desde a adolescência. Essa mesma esquerda é capaz de entregar conforto desde cedo para gente marginalizada. Uma adolescente preta e periférica pode encontrar muito conforto na ideia de que a beleza idealizada das brancas nas propagandas televisivas é algo a ser desconstruído. Uma adolescente branca e rica talvez se incomode profundamente e precise resignar-se ao desconforto se for tentar desconstruir essa mesma beleza idealizada e eurocêntrica.

As leituras a partir de discursos seculares da esquerda são especialmente competentes em entregar conforto e pertencimento aos marginalizados, enquanto são bastante incompetentes em entregar conforto aos privilegiados. E é um fracasso insustentável e uma expectativa irreal a ideia de que esses privilegiados possam (embora talvez devam) se resignar. A proposta de resignação dos privilegiados dá potência justamente aos discursos contrários que ofertam aquilo que os discursos da esquerda não podem entregar. A extrema direita, com seus mitos reducionistas mais confortáveis aos privilegiados, como um todo se fortalece na expectativa dos mitos de esquerda de que os privilegiados deviam ser capazes sempre de ignorar reducionismos e resistir à tentação de atender certas demandas míticas que possuam.

As esquerdas simplesmente não sabem como entregar mitos para privilegiados porque os mitos que costumam entregar conforto aos privilegiados até hoje são justamente os mesmos que exigem resignação e desconforto de quem é marginalizado. A limitação de mitos iluministas exige que diante de um impasse desses, simplesmente se use de aspectos do discurso secular para desmontar os mitos concorrentes, inibindo quem se beneficiava desses mitos de encontrar alternativas.

O que é desconsiderado, outra vez, é a questão da coexistência, ou da proposição de alternativas. Mitos de esquerda que queiram ser sustentáveis a longo prazo precisam encontrar mitos que confortem homens brancos e que não sejam antagônicos aos seus interesses, quando isso for possível, para estabelecer parcerias estratégicas nesse sentido. Mitos de esquerda que queiram existir a longo prazo precisam eles mesmos começarem a propor alternativas de conforto e identidade para homens brancos. Se mais homens brancos se sentem atraídos às direitas do que às esquerdas, é porque essas direitas são até então mais competentes miticamente para esse público do que as esquerdas.

Estou usando os homens brancos de exemplo principal, mas isso vale para tudo que mitos de esquerda entendem como normativo e potencialmente opressor. Essas identidades só serão desconstruídas de fato se existir uma alternativa capaz de entregar autoestima a partir de outras perspectivas e parâmetros. Um projeto mítico que queira desconstruir algo que entende como opressivo precisa antes de tudo considerar uma alternativa mítica suficientemente confortável para oferecer aos opressores que desta narrativa retiravam grandes confortos e conveniências, tanto materiais quanto emocionais.

A expectativa totalizante dos mitos iluministas dificulta e muito a visão pragmática dessas limitações e negligências. Mitos iluministas que se entendam como A verdade, nas direitas ou nas esquerdas, não conseguem entender que uma das suas responsabilidades é viabilizar discursos inclusivos e confortáveis que atendam a demandas míticas de cada vez mais pessoas, ou pelo menos estabelecer relações que não sejam de tentativa de extermínio absoluto da concorrência diante dos mitos que atendam a demandas míticas diferentes. Para mitos interessados no monopólio, mitos influenciados por seu histórico totalizante, essas parcerias tão necessárias se dificultam.

Um exemplo disso da mesma semana em que estou escrevendo isso: recentemente aconteceu no Brasil a Marcha para Jesus, um evento evangélico importante que é uma demonstração do projeto de poder evangélico que mencionei. Esse evento já tem uma certa vinculação com a política e o ex-presidente Bolsonaro foi muito estratégico em conseguir se vincular ao evento e aos evangélicos como um todo. Enquanto isso, Lula não foi ao evento e precisa lidar com alas do seu partido e da esquerda no geral que desencorajam sua participação na marcha e, mais do que isso, que desencorajam que a esquerda, o petismo e Lula se envolvam numa parceria com qualquer parte dos evangélicos.

Pragmaticamente, isso é um grande tiro no pé: os evangélicos já são uma força política importantíssima e vão se tornar cada vez mais. Ao mesmo tempo, eles ainda são suficientemente maleáveis para estabelecerem parcerias de conveniência com a força política da vez. Se a marcha anterior, ainda no governo do ex-presidente Bolsonaro, era explicitamente política e explicitamente conservadora, dessa vez ela foi mais desvinculada da política e do discurso partidário como um todo, criando um vácuo de poder que se estabelece tanto com a decepção de boa parte dos evangélicos com o “abandono” que sofreram de Bolsonaro após sua derrota, quanto por uma boa vontade de abrir espaço para o governo da vez ocupar essa mesma situação. Não sou ingênuo em desconsiderar que o movimento evangélico no Brasil ainda é profundamente conservador, mas ele também é um movimento vaidoso e interessado nas suas articulações e endossos de políticos, o suficiente para que a presença de Lula na marcha fosse vista com bons olhos por boa parte das lideranças.

São as ideias totalizantes vinculadas aos mitos iluministas de esquerda que desencorajam essas parcerias estratégicas da esquerda com os evangélicos, seja por um desgosto estético dos membros que veem religião como atraso, seja por subestimarem o poder político do movimento evangélico como um todo, seja por ignorância sobre as trocas entre o campo político e o campo religioso, seja por todas essas juntas. É um posicionamento que parece secular e técnico, mas que é ideológico e profundamente mítico no sentido do que entende como o antagonismo entre secular e religioso. Qualquer estudioso de política ou de religião no Brasil pode olhar para a distância entre os evangélicos e as esquerdas e analisar como isso é uma ameaça para as esquerdas num médio prazo que se aproxima cada vez mais.

O problema dos mitos totalizantes é que eles são invariavelmente insustentáveis. São muito fortes quando surgem, capazes de angariar para si todas as promessas das demandas não atendidas do seu período, mas quando se consolidam precisam restringir cada vez mais o acesso a discursos que atendam demandas diferentes. Um mito totalizante é sempre uma bomba-relógio por todas as demandas míticas que negligencia com a pressão que faz por resignação.

É um pouco óbvio que tudo que certos mitos não podem atender seria englobado por um mito concorrente. Não haveria mítica apologista da Coreia do Norte nas esquerdas sem demandas míticas que essas esquerdas estão atendendo que os mitos da direita neoliberal não conseguem atender. Não haveria na direita mitos fascistas, ou mitos de ódio às mulheres por homens com profundas frustrações sexuais, se as esquerdas fossem capazes de atender a tudo com seu marxismo que desconstrói as narrativas do privilégio para beneficiar marginalizados e que se foca quase que exclusivamente em oferecer narrativas alternativas de conforto apenas para esses marginalizados.

Os discursos seculares, volto a reforçar, existem para além da maneira como são empregados nos mitos iluministas. Existe um consenso científico que vai além dos desejos da direita e da esquerda, com questões nesse discurso secular que são inconvenientes às duas. Mas mitos iluministas, pelo legado de suas construções históricas e por verem a si mesmos como mais do que mitos, costumam resolver todos os seus problemas numa associação mais direta e profunda com os discursos seculares, sendo que isso não é suficiente.

Quem é de esquerda e está me lendo até aqui pode estar pensando que é um pouco injusta a comparação entre direitas e esquerdas que estou fazendo porque considera que, por mais que tenha suas distorções, a esquerda costuma se esforçar mais para respeitar e se adaptar ao discurso científico. E eu digo que particularmente concordo com isso, embora esteja ciente de que há quem discorde. E digo que mesmo se partirmos dessa ideia, esse pressuposto de uma esquerda que esteja mais vinculada ao discurso secular, essa característica está na verdade prejudicando esta esquerda miticamente.

Para a estrutura de um mito, o discurso secular é pouco mais que um endosso, uma indumentária de justificativa. Toda vez que a esquerda castrar uma demanda mítica que até então atendia porque alguma evolução do pensamento secular trouxe novas evidências, essa esquerda vai estar perdendo potência mítica das demandas que pode atender. É mais eficiente miticamente uma esquerda que ignore todas as nuances problemáticas dos projetos autoritários e imperialistas da União Soviética e da China, do que uma esquerda que “faz autocrítica” colocando mais condicionantes e critérios nas suas visões.

Uma esquerda que se renda ao otimismo da utopia socialista inevitável em um futuro próximo, defendendo que esta utopia virá porque o capitalismo simplesmente não tem outro caminho que não seja o da decadência que encaminha ao socialismo, é uma esquerda mais mítica e capaz de oferecer algum nível de esperanças, frente a uma esquerda que não coloca tantas convicções rígidas sobre o que será o futuro e que se foca no marxismo em seu sentido mais puro de método, ou de críticas e análises sobre o capital.

Uma direita que desrespeite mais frequentemente o discurso secular para entregar demandas míticas está justamente priorizando seu potencial de conforto mítico — e portanto será miticamente mais competente. Na esfera das suas potencialidades míticas de gerar conforto, pertencimento, autoestima, identidade, um mito de direita que desconsidere a ciência sobre as estátuas coloridas para insistir na estátua branca como um símbolo, por exemplo, é mais poderoso do que um mito à direita que abandonasse um de seus principais símbolos “” porque um artigo científico disse que esse símbolo está cientificamente incorreto.

Além disso, as direitas que não se vinculam tanto a essa proposta de representarem absolutamente o discurso secular (porque se vinculam, por exemplo, a representar o discurso conservador e religioso antes) não se sentem encabuladas em desconsiderar o que é científico quando a ciência parece impertinente às suas prioridades conservadoras/religiosas.

A associação ao secular por si só não vai salvar mito nenhum porque a única esperança real para o discurso secular é existir permeando o máximo que for possível de todos os mitos que circulam, como um importante agente de regulação, uma estrutura de significados sociais que ninguém possa deformar individualmente. O critério mítico principal é, preciso reforçar, atender demandas míticas. Ser convincente no sentido da discussão secular é no máximo só uma dessas demandas e/ou critérios e mesmo isso pode ser ilusoriamente atendido com discursos que tenham a estética de secularidade, ainda que não sejam seculares de fato.

A esfera secular como um todo só vai resistir, e mitos em específico só vão resistir ao invés de serem substituídos por outros, se for possível uma parceria entre:

a)atender demandas míticas de forma regulada para proteger a esfera secular

e
b) atender demandas míticas da forma mais abrangente que for possível;

Esses dois objetivos, já bem contraditórios e difíceis de se conciliar por si só, são totalmente inviabilizados por mitos iluministas que acreditam que representam a esfera secular como um todo, que não há necessidade de regulação, que subestimam mitos e suas demandas, e que dificultam o acesso a alternativas ou a construção de caminhos para demandas míticas que lhes sejam inconvenientes.

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Um lugar de fala problemático

Depois desses três pontos da análise dos mitos iluministas, quero fechar esse longo capítulo com um exemplo que demonstra várias das limitações que discutimos: o discurso influenciado pelo trauma. Vai ser um trecho que tenta sintetizar e reforçar alguns dos pontos, então peço desculpas se for também um pouco repetitivo.

O mito iluminista tem uma tendência a entender as pessoas como plenamente capazes de responder racionalmente, libertas de qualquer influência mítica, expressando a mais pura voz do discurso secular isento de qualquer interesse para além de ser A razão resignada. Segundo mitos iluministas, todos nós, enquanto pessoas racionais, teoricamente temos a capacidade de expressar essa voz profunda da razão universal que a todos engloba. E ainda segundo a expectativa desse mito, devemos ser criticados e recriminados se não atendermos a essa expectativa.

Um exemplo de como esse discurso subestima aspectos subjetivos e míticos é a leitura que faz sobre lugar de fala, ou experiência direta que possa justificar um posicionamento supostamente “racional”, mas embasado numa determinada vivência.

Para mostrar como essa limitação do mito iluminista aparece tanto nas direitas quanto nas esquerdas, é só considerar que há versões dos dois lados. Na direita, existem argumentos como o do policial conservador que, após anos entrando em favelas, sente-se ressentido de que um acadêmico tente “dar pitaco” sobre a realidade da segurança pública sem que tenha vivido a experiência direta de entrar na favela armado como policial durante um confronto. Nas esquerdas, existem argumentos como o de que, voltando ao acadêmico, se esta pessoa estudando a segurança pública for privilegiada e morar num bairro nobre, talvez ele não tenha como “dar pitaco” sobre a realidade da segurança pública na favela.

Essas leituras de lugar de fala carregam uma boa dose de verdade. Para quem viveu a vida toda no Itaim Bibi, vai ser muito complicado entender como é Paraisópolis. Há varias expectativas, muitas delas até inconscientes, que uma pessoa que mora no Itaim Bibi terá sobre a vida e que não vão se aplicar numa favela. Se você não é um morador de favela ou um policial, pessoas que vivem frequentemente os dois lados do confronto sempre presente nas favelas e periferias brasileiras, sua visão como alguém que não vive “na pele” aquela realidade vai ser condicionada de outras maneiras.

O que essa leitura de lugar de fala costuma desconsiderar, porque desconsidera aspectos emocionais e como afetam os discursos (devido a essa leitura que espera uma grande razão isenta que todos podemos modular), é que lugares de fala de quem vive “na pele” também são limitados. Isso é particularmente interessante quando se leva em conta que o conceito de lugar de fala em si, como é discutido em academias, na verdade reconhece e até chama atenção para essas perspectivas.

Por exemplo: uma pessoa que já foi assaltada muitas vezes de forma violenta. Essa pessoa tem mais “lugar de fala” para falar de segurança pública do que alguém que nunca foi assaltado? E se essa experiência de tantos assaltos tiver desenvolvido nessa pessoa um grande trauma, uma precariedade que torna mais atraente um mito reducionista que resolva a demanda do trauma, como o famoso “bandido bom é bandido morto”?

Acho interessante perceber como muitas vezes, embora mais distanciada e enviesada pelas limitações dos seus pesquisadores, a opinião das academias sobre problemas sociais costuma ser menos apaixonada e menos miticamente atraente. O “bandido bom é bandido morto” não precisa ser suportado por pesquisas científicas para dar conforto a alguém que foi assaltado várias vezes. E um pesquisador sem demandas míticas por confortos do tipo lidará com menos tentações nesse sentido.

Eu passei por uma experiência dessas no meu mestrado quando, enquanto ateu, fui ingenuamente perguntar ao meu orientador se era uma boa ideia escrever sobre religião como um todo e mais especificamente sobre evangélicos, assunto sobre o qual eu não tinha lugar de fala. Meu orientador riu das minhas preocupações. O discurso secular não depende da experiência direta do lugar de fala, depende de pesquisas. A leitura de “lugar de fala” que eu tive ao pensar que eu não deveria falar sobre o assunto era mais voltada à equivocada leitura mítica sobre o conceito.

O lugar de fala de um evangélico obcecado que vive apaixonadamente a realidade evangélica seria melhor num trabalho acadêmica do que a minha de ateu que não frequenta igrejas? Não necessariamente. Não existe essa ideia de melhor ou pior com tanta força no mundo acadêmico e acredito que nossos trabalhos seriam diferentes em quase tudo, cada um com suas particularidades. Acredito que o trabalho acadêmico desse evangélico certamente carregaria o bônus de ter muito mais detalhes e nuances da realidade evangélica para considerar, mas teria o ônus de ter que se confrontar mais com a questão da parcialidade. O papel dos agentes reguladores e dos significados sociais em consenso do discurso secular é justamente de tentar atenuar essas distorções, impedindo que o trabalho fosse parcial demais.

O meu trabalho, por sua vez, talvez fosse parcial em outro sentido, o sentido do meu próprio ateísmo, mas mesmo aí é uma perspectiva diferente de parcialidade a ser atenuada. Além disso, a tarefa de buscar imparcialidade é mais simples num assunto em que se é menos apaixonado. Se eu fosse um “ateu fanático”, talvez falar sobre evangélicos fosse tão difícil quanto, mas não é meu caso e tenho poucas opiniões fortes sobre religião hoje em dia. Meu trabalho lidou com desafios da superficialidade pelo meu pouco contato com o objeto e foi isso que, nesse caso, meu orientador tentou contrabalancear, com referências de livros e conteúdos que me mergulhassem mais na realidade que eu estava estudando.

Para certas variações retóricas do mito iluminista, balanceamentos não são só entendidos como desnecessários, mas são ainda lidos como inúteis. O lugar de fala é ao mesmo tempo um destino manifesto, um potencial de hierarquia de quem é mais ou menos importante para comentar determinado tema devido a um tipo específico de experiência, e também uma negação da nuance e da subjetividade, já que o que é dito do lugar de fala de um é visto como verdade objetiva e não como uma perspectiva parcial.

Um policial que defenda sua visão de segurança pública, por ser quem realmente entra na favela, é um policial que acredita que sua experiência representa a verdade da situação e que o ponto de vista de sua experiência deve ser privilegiado. A pessoa traumatizada por assaltos que defende o “bandido bom é bandido morto” é uma pessoa que não entende como suas emoções podem influenciar e distorcer sua opinião. É uma pessoa que acha que o trauma direto só pode fortalecer sua opinião, uma opinião que acredita-se equivocadamente que pode ser mantida racional e isenta diante do trauma. Tudo isso enquanto propositalmente desconsidera como essa opinião convenientemente entrega a este trauma algum tipo de conforto emocional (nesse caso, que seja do ódio e do sentimento de vingança).

De forma muito semelhante, é importante ouvir o que diz uma mulher que sofreu uma experiência muito traumática de estupro. Mas se o discurso dessa mulher carregar elementos racistas porque seu estuprador era de outra etnia, ou se ela defender castração química e pena de morte para estupradores, ou se ela tiver grandes dificuldades de dialogar com homens no geral, tudo isso precisa ser considerado no contexto do trauma que ela sofreu. Esse tipo de leitura emocional depende da análise de nuances emocionais que o “racionalismo” do mito iluminista não entrega.

A cegueira dos mitos iluministas aos funcionamentos emocionais dos mitos é interessante porque, uma última vez, mitos iluministas não se consideram de forma nenhuma mitos. Eu sei que é um pouco um lugar comum este de dizer ser mito tudo aquilo do qual se discorda, mas eu acho que existe uma outra abordagem possível que, voltando lá ao começo, esteja voltada mais à relação emocional com objetos do que aos objetos em si. Os mitos iluministas se vinculam a vários objetos do discurso secular que não são míticos, como várias das ideias da ciência, mas é importante pensar qual é a relação que esses mitos estabelecem com esses objetos. É uma relação de conforto, de identificação para estabelecer aspectos da identidade, de produção de autoestima, de pertencimento. Portanto, é uma relação mítica, independente da verdade ou não dos objetos em si que estão vinculados.

A situação da segurança pública, usando o exemplo pela última vez, é uma questão técnica. Talvez pesquisas científicas demonstrassem que a solução para a segurança pública é exatamente aquela que a pessoa traumatizada com assaltos está esperando: aumento do policiamento, pena de morte, mais prisões. E mesmo se fosse esse o caso (não é), a leitura dessa pessoa sobre essas pesquisa científicas teria que ser contextualizada no trauma que leva convenientemente ao endosso de tais pesquisas. Isso porque essa pessoa estaria muito propensa a ser a defensora dos “fatos seculares” enquanto se vinculassem às suas próprias vontades emocionais. No dia em que uma pesquisa a contestasse, porém, sobraria para essa pessoa o discurso que conforta o trauma —e muito provavelmente, fosse esse conforto a prioridade, os discursos científicos seriam descartados.

Uma análise desse ponto de vista ajuda muito a colocar argumentos sobre perspectiva. Além de analisar a defesa dos objetos, considera também quais motivações emocionais e quais conveniências míticas poderiam estar envolvidas na defesa apaixonada de algo. Além da discussão técnica do “como se defende tal ponto”, é um aprofundamento na tentativa de responder com a análise mítica “por que se defende tal ponto”, o que pode ser tão importante quanto para saber os melhores caminhos para se argumentar. Retomando uma ideia que discutimos lá atrás, uma análise desse tipo não pode confirmar algo como a existência ou inexistência de Deus, mas pode analisar quais podem ser as razões míticas que levariam alguém a acreditar ou não que Deus exista — e essa é uma questão completamente diferente.

Se eu sei que determinada pessoa sofreu vários assaltos e que suas opiniões são condicionadas em mitos apaixonados e rígidos devido às grandes precariedades decorrentes desses traumas, fica mais fácil entender que é inviável manter discussões racionais e seculares pautadas na boa-fé argumentativa e nas descobertas técnicas e científicas. Nesse caso, ao invés de tentar desmontar o mito com argumentos seculares para deixar a pessoa vulnerabilizada num estado de resignação no qual precisa lidar diretamente com seu trauma “em carne viva”, um caminho mais inteligente pode ser o de tentar modular uma alternativa mítica que entregue os mesmos confortos, mas que esteja menos equivocada.

Novamente, esse é o tipo de conciliação que mitos iluministas têm muita dificuldade para atender porque acreditam que precisam desmontar todos os mitos que entreguem confortos diferentes daqueles que, enquanto “defensores do discurso secular”, os mitos iluministas podem prover. Para um mito iluminista, a resposta “certa” para um trauma que não seja confortado por ele mesmo é a resignação, o amargor de manter o trauma sem resposta. Existe certo cinismo na maneira como isso é vendido como “necessário” para A verdade, enquanto outras demandas míticas são atendidas pelo mito para outros contextos e enquanto esse posicionamento convenientemente contribui para o mito iluminista tentar enfraquecer suas concorrências.

A expectativa do mito iluminista de que uma pessoa traumatizada possa abandonar suas narrativas irracionais para seguir sempre uma “razão” isenta é, repito uma última vez, inviável. Toda resignação diante de vontades míticas traz instabilidade, ainda mais a longo prazo, ainda mais em larga escala. Por mais que a narrativa exagerada do mito iluminista não goste, traumas geram demandas por narrativas de conforto que muitas vezes não vão ser providas por estes mitos iluministas. Portanto, outros mitos são necessários.

A solução é abandonar os mitos iluministas de vez? Muito provavelmente não e acho que não seria possível fazê-lo mesmo se a resposta fosse sim. Mitos não desaparecem pela vontade de alguns poucos e no caso dos mitos iluministas o tanto que eles estão embrenhados a determinadas alas da cultura e dos discursos seculares dificulta muito um combate. Além disso, os apelos que mitos iluministas possuem não vão sumir e de certa forma são importantes frente a determinados embates com outros mitos agressivamente totalizantes.

Quero dar um último exemplo sobre isso: meu próprio ateísmo que nasceu numa versão muito mais próxima do mito iluminista quando eu era pré-adolescente. O Rodrigo de 12 anos que se entendeu pela primeira vez como ateu era um Rodrigo que acreditava que as religiões eram um atraso, que elas com certeza iriam acabar e que o ateísmo era uma resposta para os problemas da humanidade em larga escala. Eu acreditava profundamente na iminência de um “futuro ateu” e, mais especificamente, numa espécie de utopia ateísta.

Esse mito iluminista do meu antigo ateísmo nasceu principalmente como uma reação agressiva à também agressiva maneira como mitos religiosos tentavam me engolir naquele mesmo momento. Eu estudava num colégio luterano, tinha aulas de religião, tinha tido experiências negativas recentes com igrejas evangélicas também (ainda vou voltar a isso inclusive) e no geral meu entorno era bastante religioso. O ateísmo era uma dissidência rebelde do meu mundo e eu me sentia especial por ter sequer considerado essa possibilidade. Lembro muito bem que foi no mesmo dia que pela primeira vez descobri que ser ateu era possível, que isso existia enquanto alternativa, que decidi que seria essa a alternativa que eu queria.

Ainda mais, por mais que esse ateísmo mais apaixonado e equivocado da minha juventude tenha se desmontado com o passar dos anos, é importante considerar que ele tinha mais potência nessa versão inicial. O ateísmo desapaixonado e cheio de nuances que eu tenho hoje não teria sido um discurso suficiente para me inspirar e apaixonar aos doze anos de idade. Uma narrativa de menos confronto totalizante também seria mais facilmente engolida dado o contexto em que eu estava, com narrativas totalizantes opostas tentando diariamente me converter. Eu ainda vivia cercado de pessoa religiosas tentando muitas vezes agressivamente me convencer a me tornar religioso e acho que para um menino como eu a resistência do meu posicionamento dependia e muito de um “mito do ateísmo” que, mesmo mais equivocado, fosse mais convicto para resistir a tais pressões.

Especialmente para esses contextos e para demandas desse tipo, é provável que mitos iluministas sigam importantes. Onde discursos seculares estiverem mais fragilizados, mitos iluministas podem servir para inicialmente engoli-los e fortalecê-los. Também podem servir para inspirar pessoas inicialmente no caminho desses discursos seculares, sem uma ruptura tão brusca entre a resignação de discursos seculares frios e as demandas míticas que possam existir.

O que esse trecho todo pretendia era demonstrar que esses mitos iluministas possuem suas limitações, são problemáticos, precisam ser diferenciados dos discursos seculares, além de regulados e controlados quando for possível de forma pragmática. Mais do que isso, é importante construir essas tais narrativas alternativas também: do mesmo jeito que eu só pude me entregar ao mito iluminista ateu da minha adolescência ao descobrir que ele existia, eu só pude abandoná-lo quando fui descobrindo outros discursos progressivamente menos totalizantes para dar novos significados ao meu ateísmo.

Se possível, incentivar e contribuir para a divulgação dos discursos menos totalizantes já é um passo bastante importante. Também é importante contextualizar as situações de uso de cada mito: é mais compreensível um mito iluminista totalizante e apaixonado da “utopia ateísta” partindo de um adolescente no Twitter ou de um jovem como eu que é obrigado a frequentar uma escola religiosa; mas esse discurso precisa ser problematizado e tornado objeto de crítica em ambientes seculares mais avançados, como as academias como um todo.

E acho que posso parar por aqui. Sobre mitos iluministas, falamos mais do que o suficiente. Na sequência, quero falar dos mitos que de certa forma evoluem os mitos iluministas: são mais vinculados ao que é secular, demandam propositalmente por muitíssimo mais intensa resignação, e são portanto mais insustentáveis ainda. Ao mesmo tempo, são os mitos que eu gosto mais e são aqueles com que mais me identifico.

Vai ser legal falar deles.

Capítulo 18: O mito anti-mítico e o mito de individuação

Cena de Inside, especial de comédia de Bo Burnham disponível na Netflix.

Antes de começarmos essa discussão, eu gostaria de propor uma “lição de casa”: se possível, assista o especial de comédia Inside na Netflix. Esse é o produto cultural que vou usar de exemplo para explicar várias questões sobre os mitos que quero comentar agora — e faço isso porque acredito que esse especial de comédia simboliza bem até demais vários aspectos dessa proposta mítica. Se você não puder ou não quiser assistir, ainda vou explicar da melhor forma que puder tudo que envolve o especial de comédia, mas acho que existe um nível de experiência direta que pode beneficiar a discussão, inclusive se suas reações ao conteúdo forem diferentes das minhas.

Isto dito, vamos lá. Eu gostaria de começar apresentando uma cena específica de Inside que, mais do que todas as outras, simboliza bem o que vamos discutir aqui. A cena pode ser (e acho até difícil mensurar algo assim) entendida como um spoiler, então se você for seguir minha recomendação, esse é o parágrafo em que sugiro que pare de ler até assistir ao especial.

Pois bem.

Apesar de ser supostamente um produto de entretenimento no gênero da comédia, a experiência de assistir Inside pode ser muito crua e pesada em vários momentos, especialmente pela narrativa que o especial vai construindo como plano de fundo para os diferentes esquetes de humor que são apresentados. Se eu tivesse que tentar resumir, eu diria que a narrativa do especial é de uma progressiva situação de sofrimento para o protagonista Bo Burnham, que é uma versão difícil de precisar no quanto é ficcional ou não. O sofrimento vem do isolamento, mas também de uma profunda sensibilidade sobre o estado do mundo e, mais do que isso, de uma profunda negação de qualquer narrativa de conforto que pudesse resolver esse sofrimento.

Numa estrutura narrativa que dá para tentar montar, eu diria que o clímax dessa história acontece numa das últimas músicas do especial, All Eyes On Me, em que o sofrimento, o isolamento e a falta de narrativas de conforto levam Bo Burnham ao estado em que parece ter enlouquecido. Nessa música em particular, que já começa mais sombria, séria e perturbadora, o abandono de qualquer esperança leva o eu-lírico a uma situação que é ao mesmo tempo profundamente individualista, focada na relação obsessiva dele consigo mesmo e com quem assiste, e também profundamente resignada ao dizer coisas como:

You say the ocean’s rising like I give a shit
You say the whole world’s ending, honey, it already did
You’re not gonna slow it, Heaven knows you tried
Got it? Good, now get inside;

Ou, em português:

Você diz que os oceanos estão subindo, como se eu me importasse,
Você diz que o mundo inteiro está acabando, meu amor, ele já acabou,
Você não vai desacelerar isso, os céus sabem que você tentou,
Entendeu? Bom, então venha para dentro;

A letra é mórbida, ao mesmo tempo que pessoal, quando Bo Burnham conta sobre seus ataques de pânico. É desumana quando esse eu lírico relembra que todos vamos juntos para o mesmo lugar — a morte. E a cena termina com o descontrole total de quem canta, ao pegar a câmera e começar a dançar junto dela enquanto ri de forma maníaca.

A cena funciona sozinha, mas funciona melhor ainda quando colocada na estrutura narrativa como um todo, num encadeamento em que Bo Burnham vai progressivamente tendo mais contato, pela introspecção do isolamento, com seus sofrimentos e ansiedades, enquanto vai também desconstruindo cada vez mais de qualquer narrativa que pudesse dar conforto e esperança diante dessas dores.

O especial questiona e desconstrói os mitos de Bo Burnham sobre sua própria importância (ou falta dela), sobre a ideia de “melhorar” enquanto ser humano, sobre as narrativas mais infantis de um mundo harmonioso e pacífico, sobre a Internet e as tecnologias como possibilidades de melhorar o mundo, sobre o valor e propósito do trabalho artístico, sobre a esperança de desmontar sistemas estabelecidos que são maiores do que qualquer pessoa comum interessada neles.

Todos os discursos que são estabelecidos como naturalizados são colocados em contraponto a uma situação cataclísmica e iminente que nenhum desses discursos pode ou quer verdadeiramente resolver, o que demonstra tanto suas limitações quanto suas hipocrisias. Por exemplo, o especial de comédia satiriza a figura de Jeff Bezos e a riqueza e o sucesso como um todo, que se tornam fúteis e dignos de riso frente a um mundo decadente. Contrário às narrativas comuns sobre o poder, o especial debocha do valor real que existe em ser o vencedor final de um mundo que está se rompendo.

No especial, são apresentados como elementos míticos autofágicos, capazes de destruir qualquer mito, tanto o sofrimento do presente quanto a aceitação resignada do apocalipse vindouro (este segundo que segue como elemento mais mitificado na estrutura, apesar de partir da inspiração em argumentos técnicos e retóricas seculares). Não existe nada que um publicitário, um religioso, que a sociedade como um todo, que Jeff Bezos ou que qualquer um possa dizer para Bo Burnham que vá convencê-lo, que vá resgatá-lo das profundezas de si, e que vá servir de conforto ou de alienação diante de seu sofrimento. É uma posição profunda e propositalmente desencantada em que nada é sagrado, em que nada dá conforto, em que tudo é ridículo quando tenta construir convencimento, em que nenhuma narrativa pode suprir expectativa nenhuma.

Por um lado, uma crítica possível seria a de que o especial de Bo Burnham apresenta alguma espécie de narrativa de realismo capitalista. Embora essa seja uma interpretação que considero coerente em boa parte, quero seguir por outra direção destacando que Bo Burnham não parece confortável nem mesmo nisso. O argumento não é de que “isso que temos é ruim, mas é o melhor que temos e outra coisa seria pior” porque não existe a intenção de uma proposta, nem o conforto mínimo que esse pragmatismo entregaria. O posicionamento está mais próximo de algo como “isso que temos é péssimo e não importa outra coisa porque o mundo vai acabar e vamos morrer”, seja no sentido em que Bo Burnham acredita que outra coisa possa ser ruim em igual medida, seja no sentido em que mesmo outra coisa melhor está inviabilizada de acontecer pelas estruturas que mantém o status quo, seja no sentido em que qualquer melhora possa parecer fútil, ou seja no sentido em que Burnham desesperançosamente desacredita a capacidade dos oprimidos e daqueles destituídos de poder de lutar contra as opressões e os poderosos.

Pelo outro lado, é difícil definir se Bo Burnham representa ou não uma situação de marxismo: existe evidentemente toda a retórica das críticas que o marxismo faz ao capitalismo, mas não existe esperança numa alternativa viável. Essa leitura não inviabiliza a alternativa pelo mundo das ideias, por um diálogo inconcluso: mesmo se existisse uma alternativa considerada melhor, mesmo se ela fosse consenso entre a maioria, o que Burnham parece apontar é que a alternativa seria inviabilizada de formas simbólicas e práticas (com propagandas, legislações e violências) pela estrutura estagnada do poder e seu interesse no status quo.

Bo Burnham parece tão cético a respeito de uma possível utopia socialista no futuro quanto parece cético a respeito das supostas benesses de um capitalismo do presente. Não é nem mesmo sobre tentar questionar as benesses do que seria um socialismo futuro, é sobre desconsiderar completamente a esperança de que algo assim vá existir pela concretude dos sistemas em voga que reprimem alternativas e mudanças reais. Nesse sentido, o especial de comédia pode ser lido como uma sucessão de alternativas “aceitáveis” ao status quo, aquelas que se permite divulgar porque não são revolucionárias demais, como o capitalismo consciente como produto de publicitário ou o aprimoramento pessoal como uma afetação autocentrada e egocêntrica dos privilegiados, sendo desconstruídas e ridicularizadas uma a uma.

A negação acaba rompendo com um dos elementos mais fundamentais das esquerdas míticas no universo social (se não com o marxismo acadêmico que pode ser menos sonhador e mais focado na crítica técnica do presente), que é a esperança de algo diferente no amanhã.

A posição de Bo Burnham não parece acreditar que algo diferente possa existir e projeta o futuro como um prosseguimento cada vez mais precário do que já é feito hoje, até um momento de completa ruptura sistêmica decorrente de cataclismos climáticos. E mesmo se o amanhã for diferente, existe em Bo Burnham um ressentimento por viver no presente como ele é, de estar limitado pela mortalidade e pela finitude, de ter sua vida desperdiçada nessa situação atual, e nesse sentido não faz sentido para ele sonhar com futuros que ele não experimentará. Ele considera como injusto nascer num mundo já estabelecido, com sistemas consolidados que o limitam e que frustram e castram seu presente e suas esperanças para o amanhã. Por isso, o especial é também um processo de luto por si, de resignação pela limitação e precariedade do mundo em que se nasce, e de lamentação em larga escala, pela tragédia de todos nós que vivemos nesse momento histórico particular, incapazes de irmos além das potencialidades que em nosso período são viabilizadas por estes sistemas tão limitados em que nos enfiamos enquanto espécie.

É nesse desencanto com o futuro que o eu lírico tira qualquer propósito de qualquer ato no presente. Tentar mudar o mundo hoje não faz diferença se o amanhã está selado ou inalcançável, então o que sobra é o “conforto” de voltar-se para dentro: manter-se no individualismo atomizado de nossas casas, enquanto o mundo lá fora é destruído sem que possamos impedir.

Sob essa perspectiva, o Bo Burnham de Inside é construído quase como uma figura heroica e trágica do mito anti-mítico, quase como um herói existencialista ideal: ele é tentado de todos os lados por promessas mais reconfortantes que poderiam dar propósito para sua vida, mas renega todas elas, resigna-se do conforto e segue aprofundando-se em novas negações e desidentificações, guiado por um senso muito particular de busca por uma verdade que é entendida como necessariamente anti-mítica, distante do conforto.

No final, ele mesmo sacrifica-se, em sua sanidade e humanidade, e sela seu destino trágico de sofrimento pela insistência em negar qualquer narrativa de conforto ou qualquer esperança. O final do especial tenta apresentar uma situação de resignação o mais próximo possível de ser absoluta, em que a única coisa capaz de engajar Bo Burnham é uma relação obcecada (e talvez obscena) com ele mesmo, com seu público e com sua câmera. Em termos simbólicos, é como se o herói trágico anti-mítico fosse um prisioneiro capaz de exercitar exclusivamente a liberdade de autoconsciência sobre sua própria prisão, desde que tenha força de vontade para seguir desencantado e negando todas as alternativas narrativas que tentariam seduzi-lo a construir esperanças, ou a distorcer a visão sobre a prisão em que se está.

Muito que bem. O que tudo isso quer dizer?

Para começar, preciso deixar meu viés em vistas: eu percebo vários aspectos míticos do mito anti-mítico e vou criticá-lo bastante, mas, ao mesmo tempo, ele é de longe o mito que me é esteticamente mais atraente. Eu mencionei que abandonei versões apaixonadas de mitos iluministas muito tempo atrás, mas meu abandono de mitos anti-míticos foi um processo mais recente. Ainda me sinto muito vinculado a eles e não posso negar que o herói anti-mítico é algo que ainda me emociona e inspira. Eu chorei com Inside quando assisti pela primeira vez e as músicas do especial insistem em aparecer, desde 2021 até hoje, entre as minhas mais tocadas a cada ano no Spotify.

Se eu tivesse que falar sobre identificações, eu diria que uma jornada de resignação consciente e proposital, como proposta pelo mito anti-mítico, é uma das com que mais me identifico. Eu definitivamente me identifico mais com a coragem resignada de uma figura como Bo Burnham do que com um iluminista europeus levando “civilização” para outros povos.

Esse vínculo emocional de minha parte é importante de destacar porque, por mais que eu veja várias das limitações e problemáticas dos mitos anti-míticos, é inevitável para mim achar estes mitos legais. Eu acho legal toda a proposta, toda a estética, todos os significados e suas promessas. Eu posso perceber que são propostas, que são estéticas e promessas, e mesmo assim acho legal.

Tudo isso dito, já tendo o exemplo do Bo Burnham como um primeiro símbolo do que vamos discutir, eu queria tentar sintetizar esses mitos anti-míticos em alguns dos seus aspectos que me parecem básicos, complicar mostrando alguns aspectos que são mais variáveis em discursos míticos desse estilo, demonstrar como esses mitos associam-se ou contrapõem-se aos mitos de individuação, e amarrar tudo isso em críticas finais e mais gerais sobre quais são as limitações e inviabilidades dessa categoria mítica.

Vamos lá:

1. O que é um mito anti-mítico e quais seus principais preceitos?

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Antes de qualquer outra coisa, um mito anti-mítico é um mito totalizante e com potencial para tornar-se autofágico. Ele acontece em diferentes escalas, seja nas suas variações existencialistas ou nos submundos cibernéticos (o vaporwave é, de certa maneira, anti-mítico; o lo-fi é talvez a trilha sonora nostálgica e melancólica do anti-mito), mas o que costuma defini-lo para além das variações é justamente esse comportamento totalizante e autofágico.

No primeiro dos sentidos, o de ser totalizante, o mito anti-mítico não se concilia bem com outros mitos porque seu principal pressuposto é o desnudar-se de mitos de todo o tipo, o que implica numa negação de todo resto para além dele mesmo. No segundo dos sentidos, o de ser autofágico, o mito anti-mítico carrega o risco de, caso se torne consciente de sua própria situação enquanto mito, voltar-se contra si mesmo, desconstruindo suas próprias bases como faz com mitos terceiros.

Alguns dos principais preceitos dos mitos anti-míticos são:

  1. A ideia de que a verdade precisa ser em algum sentido desconfortável.
  2. A ideia de que mitos existem e podem/devem ser superados.
  3. A ideia de que não são somente alguns mitos que devem ser superados, mas todos os que forem possíveis identificar.
  4. A ideia de que a desidentificação mítica é um processo que é ou pode ser tornado linear, em constante progressão rumo a menos identificações.
  5. A ideia de que diante de qualquer desidentificação mítica, quando surgir a alternativa entre um novo mito e a resignação, o caminho correto é o da resignação.
  6. A ideia de que ser mais desidentificado, no sentido de possuir menos identificações a mitos, é algo a ser desejado e buscado.

Acho que já delineamos bem um ponto de partida. Para além disso, importante ressaltar que no geral os mitos anti-míticos são ainda bastante nichados e que se diferenciam em múltiplas diferentes vertentes que são mais nichadas ainda. E eu gostaria de apresentar também alguns dos pontos que são menos pacíficos nessa discussão.

2. Quais são os preceitos em disputa entre mitos anti-míticos?

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Primeiro, existe uma variação dos mitos anti-míticos que é propositalmente hierarquizada, considerando que exista ou deva existir um estado de superioridade real, que pode se traduzir em hierarquias estabelecidas, e que essa superioridade é de merecimento para aqueles menos identificados. É o sentido do homem desidentificado de Nietzsche, por exemplo, que se desvincula das amarras dos mitos para, enquanto ser liberto, assumir sua posição diante dos outros, uma posição lida como estando sobre os outros. Essa leitura dos mitos anti-míticos aparece como uma proposta de natureza aristocrática, em que os maiores detentores do privilégio são construídos como capazes de se diferenciar dos comuns. Nessa interpretação, quem se aprofunda mais no mito anti-mítico o faz por ser melhor, seja por ser mais corajoso ou por ser mais inteligente, ou por ser parte de uma cultura superior, ou por todos esses juntos, e essa “casta dos desidentificados”, argumenta-se, ou merece ou possui inerentemente certos privilégios diante do homem comum, num argumento que me parece remontar às noções dos “reis filósofos” da república platônica.

A versão aristocrática dos mitos anti-míticos não é a única, mas é talvez uma das mais antigas e ainda proeminentes justamente porque parte em grande parte das propostas de Nietzsche. Eu acredito que o pensamento de Nietzsche seja de certa forma o embrião fundamental dos mitos anti-míticos enquanto possibilidade no Ocidente. Olhando para o contexto histórico, Nietzsche me parece o primeiro a desacreditar o mito iluminista nessa abordagem, interpretando tal mito como também já obsoleto e sugerindo uma nova etapa com ainda mais autonomia e resignações.

No sentido de sua aventura inicial, acho importante retomar que o mito anti-mítico de Nietzsche também nasce agressivo para confrontar a força totalizante que o mito iluminista tinha na época. Fosse qualquer coisa diferente disso, o mito iluminista teria engolido este novo mito já nos seus primórdios.

Mas hoje existem outras possibilidades com mais nuances também. Um mito anti-mítico, em seus aspectos mais autofágicos, vai convidando a quebrar inclusive suas associações a outros, o que facilita que se problematize e desvincule a ideia romantizada de hierarquia, de poder, para com isso ir se desvinculando do ranço aristocrático daquilo que Nietzsche esboçou. Parte da graça dos mitos anti-míticos está exatamente nesse dinamismo, que é também parte da razão para existirem tantas vertentes. A cada nova escolha, sempre há uma resignação mais profunda e aqueles que se fixam num aspecto. Muitos defensores do mito anti-mítico ainda hoje consideram fielmente a proposta nietzschiana acreditando que são ou podem ser verdadeiros Übermensch que carregam uma mistura muito particular de autonomia resignada e determinação ambiciosa.

A determinação ambiciosa inclusive foi se enveredar nos mitos iluministas mais tradicionais, como na influência de Nietzsche ao ideário fascista. Mas a ideia de autonomia resignada prossegue por outro caminho, resignando-se inclusive da ambição, e aprofundou mais esta outra vertente.

Como disse, pelos meus próprios vieses começa a ficar difícil a crítica a particulares variações desse mito. Todas as que vamos discutir daqui para frente são ainda muito próximas a mim, porque o que era de importante para mim que se abandonasse, na questão da ambição, já foi abandonado. Então levem com um pé atrás as minhas críticas para as próximas variações, se parecerem leves ou educadas demais.

Para começar: existe uma disputa entre a defesa do mito anti-mítico como um mito ou não e, se for mito, como um mito que deve ou não ser também superado.

Isso pode parecer confuso, então vamos lá.

A disputa entre considerar o mito anti-mítico algo mítico ou não parte da contradição entre o comportamento tradicional de um mito, que não vai articular-se conscientemente enquanto tal se isso prejudicar suas identificações, e o comportamento contraditório específico do mito anti-mítico, que supostamente deve articular conscientemente tudo que possa ser estabelecido como mítico. Por sua própria filosofia, o mito anti-mítico precisa diante de qualquer objeto, inclusive dele mesmo, articular e considerar a questão: isto aqui é mítico? Se a resposta for sim, esse algo deve ser abandonado. E nesse debate, há uma discrepância entre aqueles que acreditam que sim, o objeto do mito anti-mítico é de fato mítico (que inclusive, como a terminologia que uso deve ter dado a entender, é o meu posicionamento) e aqueles que acreditam que não, não é.

Entre aqueles que acreditam que o objeto de si mesmo é algo mítico também, existe uma segunda etapa de diferenciação. De um lado, há aqueles que consideram que, por seu potencial de autofagia, o mito anti-mítico deve ser entendido em caráter de exceção e poupado. E há aqueles que consideram que não há exceção e que, aplicado sob si mesmo, o mito anti-mítico também precisa ser desidentificado eventualmente.

Isso tudo deve ter parecido confuso e abstrato — e é mesmo. Então quero usar de mais alguns parágrafos para tentar explicar melhor.

Primeiro, é importante lembrar o contexto de que os mitos anti-míticos nascem na esteira dos mitos iluministas, propondo uma nova etapa de secularização e resignação. Diante de todas as poucas promessas míticas que mitos iluministas entregavam (otimismo com o futuro, a ideia da civilização como algo positivo, o emprego da razão como um ultimato positivista, a exaltação do ser humano e de seu potencial, a utopia secular do porvir), os mitos anti-míticos desconstroem tudo, deixam todas as demandas desnudas, exigem resignação para qualquer falta mítica e entregam no máximo dois únicos confortos míticos em retorno: a ideia de mais Verdade, ou de mais autonomia, ou ambas.

Os mitos anti-míticos nascem assim como um extremismo radicalíssimo da progressão dos elementos seculares, uma vertente quase terrorista da desvinculação de pensamentos míticos proposta pelos iluministas. Dessa maneira nascem também, vale reforçar outra vez, profundamente nichados, instáveis, inviabilizados em larga escala e com grandes dificuldades até para se articularem mesmo que em pequenas comunidades. São essencialmente descentralizados, sem instituições, e portanto muito frágeis.

Existe uma demanda específica que esses mitos podem resolver, mas eles são extremamente injustos na entrega de qualquer outro conforto para qualquer outra coisa. São desconfortáveis e limitadíssimos assim propositalmente. E no caso dos mitos autofágicos, existe a intenção de que até essa mínima demanda eventualmente deixe de ser atendida também.

Esse estado da resignação absoluta, que é o fim almejado por mitos anti-míticos, pode ser construído miticamente ainda, quando objeto de desejo, nas situações em que se entende que:

  1. Essa resignação seja um progresso, algo bom, e que se trata de algo que faz sentido esforçar-se para alcançar.
  2. Duas variações possíveis: a primeira de que essa resignação é boa individualmente, seja negando ou desconsiderando se ela é boa em larga escala. A segunda de que essa resignação é também boa em larga escala e que deve ser entendida como um objetivo civilizatório.

Dada a minha proximidade, vou deixar claro aqui também quais são os caminhos com que concordo mais e por quais passei quando vivi o processo desse mito: acredito que seja ainda mítica a ideia de “bom”, da maneira que é empregada aqui, e que um mito que deseja desnudar-se de aspectos míticos precisa desnudar-se da ideia de que aquilo que está defendendo é necessariamente positivo para além de uma demanda específica sendo atendida. Ainda assim, acho que existe uma casualidade pragmática na escolha consciente por ler este objetivo como “bom”, por parte de quem se compromete a tentar seguir o dogma restrito deste mito (já voltarei a isso).

Da segunda questão, acredito que a resignação é mais desejável e possível individualmente do que em larga escala, no futuro talvez e no presente com certeza. Como espero que o ensaio todo aqui tenha demonstrado, nem o grau de resignação que exigem os mitos iluministas é sustentável em larga escala e a longo prazo — e os mitos anti-míticos são mais insustentáveis e imprestáveis ainda nesse sentido de gerar confortos ou de propor coesão social.

Agora já desvinculado um pouco desse mito, posso olhar para essas ideias e dizer que tenho minhas dúvidas se mitos anti-míticos são “bons”, no sentido de carregarem uma verdade ou um potencial de mudança no mundo, ou no sentido de serem “bons” enquanto produtos de um nicho muito particular, com demandas muito específicas. Eu não sugeriria o mito anti-mítico para a solução a nenhum problema social, dado o estado embrionário e quase alienígena em que esta mitologia anti-mítica em particular está frente ao senso comum. Ao mesmo tempo, se esse mito sequer existe é porque existem pessoas que ele atende de alguma maneira, mesmo que sejam poucas. E eu acredito que para essas poucas pessoas, os mitos anti-míticos podem ser ferramentas importantes para ganho de autonomia, mas também carregam riscos no sentido das limitações que acabam impondo.

3. Quais são as limitações desses mitos?

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Para começar, mitos anti-míticos são rígidos. Eles não se associam a outros, exigem de forma autoritária a resignação a tudo que não eles mesmos, e no geral são profundamente exigentes nesse sentido de propor uma desvinculação de tudo, com a resignação sempre construída como melhor opção. A identificação com qualquer coisa é um erro a ser evitado no futuro e a ser consertado nas vezes que aconteceu no passado.

Isso carrega, evidentemente, toda a insustentabilidade que parece carregar, com todas as faltas míticas que esse posicionamento acaba impondo.

Essa rigidez pode ser um desafio nela mesma, quando de frente com a possibilidade de desconstruir o mito anti-mítico em si. Por exemplo, relativizar a ideia de que todos os mitos precisam ser sempre abandonados é algo que quebra com a rigidez e foi um dos meus primeiros distanciamentos do sistema anti-mítico quando fui passando por ele. Como eu fiz a escolha de ver o mito anti-mítico como mítico e decidi me desnudar inclusive dele, vi que paradoxalmente o desnudar-se desse mito era abrir espaço para um novo vínculo com mitos de todos os tipos, inclusive os anti-míticos, com algum grau de conveniência e autoconsciência.

Esse é meu posicionamento atual, inclusive, um em que mitos existem e tento me fazer consciente de quais existem para mim, mas tomo a decisão de manter alguns quando acho que eles me beneficiam mais do que prejudicam (algo como um “amor fati mítico”, talvez). Isso inclui o próprio mito anti-mítico, que mantenho no meu “arsenal” para usos que não são autoritários, mas eventuais. Eu parti para a ideia de mitos como algo a ser percebido de forma autoconsciente, mais do que como algo a ser desconstruído, porque acho que existe mais liberdade na escolha entre manter de forma autoconsciente ou desconstruir, do que na dicotomia do mito anti-mítico que ignora ou rejeita a autoconsciência e impõe a desconstrução.

Então mitos anti-míticos não só são frágeis porque competem com outros mitos muito maiores, não só são frágeis porque do próprio conceito deles mesmos parte a sua fragilidade como característica estrutural, não só são frágeis porque abrem-se em dissidências nichadas a cada embate pela ausência de instituições de articulação, como são frágeis porque costumam encaminhar boa parte de quem a eles adere para um caminho de sua própria superação.

Para explicar como isso é absurdo, pense o que seria para a sustentabilidade da instituição cristã se ao entrar numa igreja você fosse recebido com um flyer dizendo algo como “tudo que você vai ouvir nessa igreja é mentira e esperamos que daqui algum tempo consigamos fazer com que você deixe de ser cristão”. É mais ou menos essa mensagem que os mitos anti-míticos passam não só para todos os outros mitos, como também para eles mesmos.

E apesar de tudo, com tudo isso que mencionamos, com a estranheza fundamental dessa proposta, os mitos anti-míticos existem e acredito que faça sentido considerar se eles não estão até mesmo crescendo aos poucos. E acho que existem algumas razões para isso.

Primeiro, mencionamos no capítulo anterior como os mitos tradicionais de esquerda não conseguem entregar conforto mítico para pessoas privilegiadas. Para essas pessoas, o único caminho que as ideias seculares aliadas ao progressismo entregam é o caminho da resignação.

Um exemplo: ser homem, enquanto símbolo. Nas direitas, há toda uma série de discursos reducionistas e simplificantes, mas que podem ser inspiradores e reconfortantes, para um homem que deseje entender o “ser homem” como algo positivo. Há séculos de mitos do patriarcado exaltando o herói masculino, há um conjunto de valores, há exemplos históricos inspiradores de heróis de guerra, grandes pensadores, políticos e líderes religiosos, santos, etc. Nas esquerdas, tudo isso é desmontado, criticado, problematizado, esvaziado: o homem de “virtudes” da direita é visto como um mito a ir se desmontando até suas bases conceituais. O argumento, com o qual inclusive concordo, é que muito do que não é virtuoso acaba associado à masculinidade, inclusive no sentido em que um imperador romano, ou uma estátua de um grego musculoso, pouco condiziam até mesmo com a realidade de seu tempo e pouco deveriam servir para inspirar ou justificar um homem contemporâneo a deixar de lavar as próprias roupas, ser inconveniente com desconhecidas na rua, espancar sua companheira por ciúmes ou deixar de cuidar suficientemente bem de sua higiene íntima.

Nas esquerdas, o que se oferece em troca dos mitos de direita sobre homens? Absolutamente nada. Não existe nada romantizado ou positivo a se estabelecer sobre esta identidade. Nenhum conforto que parta da ideia de ser homem, ao menos não de forma intrínseca. Nas direitas, o patriarcado e a figura do homem são símbolos centrais, indissociáveis de sua visão de mundo. Nas esquerdas, o homem enquanto símbolo é se muito uma reflexão tardia, um pensamento de segunda ou terceira prioridade, isso quando não é um símbolo antagonista.

Na seção anterior, eu mencionei em vários momentos que é necessário fazer o movimento de entregar mitos diferente sobre os privilegiados nas esquerdas para construir conforto mítico. O que eu convenientemente não parei para comentar é uma questão que alguns dos leitores podem ter tido: se é necessário fazer isso, por que eu não estou fazendo? Se eu acho que é preciso que exista um canal de “esquerda red-pill” para contrariar a versão de direita desses confortos, por que eu não estou abrindo meu canal de Youtube para cumprir essa função social, ou não estou me articulando em rodas de conversa sobre “novas maneiras progressistas e inspiradoras de ser homem”?

E a resposta é meio anticlimática: porque eu não consigo. Eu não me sinto inspirado ou apaixonado por mitos envolvendo a figura do homem e quando me deram a escolha da resignação, para mim essa escolha foi ótima. Eu sou o cara que quis a resignação e continuou na mesma esfera da desconstrução do que era possível, ao invés de ter sentido que a resignação era insuportável e ter me voltado ao mito do “homem alfa” para suprir alguma demanda minha. Para mim, pessoalmente, o caminho que mais me agrada é mesmo o de resignar-me de quase tudo, exceto alguns mitos autogeridos escolhidos muito estrategicamente, e eu não conseguiria simular que quero outra coisa. Eu não quero trocar um símbolo mítico por outro menos problemático, eu quero abandonar símbolos míticos em quase todas as situações em que isso for possível.

Eu acho que essa é uma limitação que implica muito das dificuldades de estabelecer respostas aos mitos fáceis dos outros. Quando não temos um mito a propor em resposta porque não queremos mito nenhum, o papel acaba sendo muito mais secundário, de apoio a algum protagonista convicto que apareça.

Quero voltar ao exemplo de Bo Burnham porque ele simboliza tudo isso muito bem.

Bo Burnham me parece, pelo que leio de sua figura, como alguém que é movido principalmente por dois critérios um pouco contraditórios: o desejo de agradar aos outros através de uma certa performance, por um lado, e o desejo de encontrar “a verdade” por outro. Esses desejos não se conciliam bem normalmente, mas no caso de Bo Burnham se estabelecem por exemplo numa autoconsciência que antecipa comentários possíveis sobre si e sua obra e parece querer se validar por ter premeditado alguma “verdade” crítica que o público pudesse ter.

Por essa combinação, Bo Burnham critica-se enquanto homem branco e privilegiado antes que as leituras dos outros possam fazê-lo, tanto porque quer exibir que tem esse nível de desconstrução de si, o que acaba validando sua “virtude” da busca resignada por verdades, quanto porque antecipar essa crítica permite que ele já a insira no discurso para agradar mais ao público que atende. Esse equilíbrio é ele mesmo autofágico, com o Bo Burnham do final do processo desnudando-se das expectativas míticas de agradar aos outros para se focar no processo de busca pelo que entende como verdade. Eu acho que existe uma contradição aí entre o que acontece com Bo Bornham enquanto personagem do especial Inside e o que acontece com ele enquanto pessoa real. Enquanto personagem, a escolha foi a da resignação, com o posterior enlouquecimento; para o Bo real, o agradar aos outros parece ter vencido, tanto que o especial de comédia existe, foi lançado, produzido com esforço, e bem-recebido pela crítica.

Para entender o quão absurdo é esperar que alguém em situação anti-mítica desenvolva mitos para terceiros, é só tentar imaginar o que de positivo o Bo Burnham de Inside teria a dizer sobre o conceito de “ser homem” numa roda de conversa com outros homens. É algo risível porque a ideia de quem está vinculado a mitos anti-míticos não é essa, de atender demandas: é a ideia de atender somente à demanda de deixar de atender todas as outras demandas.

Eu acredito que os mitos anti-míticos só surgiram em alguma escala de propagação atualmente porque conseguiram se infiltrar no imaginário do privilégio, para eventualmente brotarem nos meios de comunicação, pela intersecção entre expectativas marxistas e iluministas como um todo e seu apelo particular aos privilegiados.

Mitos anti-míticos, com os pouquíssimos confortos que entregam, costumam prosperar em vidas privilegiadas que não estão em contato constante com tragédias viscerais que pudessem tornar insustentável a vida sem a demanda por algum outro mito mais reconfortante. Ou esses mitos também aparecem, raríssimas vezes, mesmo em pessoas com traumas, devido a alguma particularidade biográfica específica que obriga um confronto mais direto com estas precariedades. Também aparecem às vezes a partir de caminhos religiosos e acho que nesse sentido o budismo é mais próximo e convida a algumas estruturas e jornadas parecidas. Considerando que, além de Nietzsche, outra figura importante desse modelo anti-mítico é Jung, e como o próprio Jung estudou muito sobre religiões e símbolos orientais, eu considero que essa influência exista como uma janela para que os mitos anti-míticos sejam de alguma maneira uma versão ocidentalizada e secularizada de certos preceitos do budismo.

Além disso, ainda na mesma seara do apelo aos privilegiados, existe um apelo também na ideia de que mitos anti-míticos possam reduzir a dominação por terceiros, o que é particularmente atraente para pessoas privilegiadas, sobretudo diante do cinismo com que muitas vezes estas pessoas contrastam as narrativas que a elite vende para os outros com as narrativas que esta elite procura para significar a si mesma. O elemento de “casta aristocrática” está presente na pretensão de uma elite que seja desidentificada para ser aquela que não é dominada pelos atores que se vinculam ao capital simbólico de determinados mitos — e não ser dominada é quase um preceito para ser também aquela capaz de dominar.

Um exemplo notável dessa variação de expectativas é a diferença entre a educação e pedagogia das elites, que promove e incentiva autonomia, independência, liberdade criativa e espírito questionador, tudo isso associado ao máximo de secularismo que for possível para se distanciar das crendices da patuleia e estabelecer a noção do “rico intelectual e lúcido”, frente à formação das classes baixas e médias que foca em rigidez, disciplina, discursos motivacionais baratos, etc. O mesmo rico que exige escolas militares com educação rígida e disciplinada para controlar os pobres é aquele que muitas vezes pretende que seus próprios filhos estudem em escolas caras com método Waldorf. Se existir uma ideia de dominação e submissão associada a quem produz e quem consome mitos, é interesse da classe dominante instituir a própria identidade como aquela que produz mitos e portanto submete os outros a estes mitos produzidos.

Quero dar mais uma vez meu exemplo. Eu consigo perceber alguns motivos particulares que me levaram a ver apelo nos mitos anti-míticos. Para começar, eu tive algumas experiências religiosas ruins que me desiludiram muito cedo dos mitos religiosos. Eu vi pessoas da minha família negarem realidades difíceis por promessas confortáveis e fáceis de igrejas, promessas que evidentemente não se cumpriram: os problemas foram resolvidos quando foram enfrentados com leituras e discursos mais pragmáticos e seculares, anos mais tarde. Isso inclui, mas não se limita, a promessas religiosas de “curar a depressão” de familiares meus, depressão que só foi controlada (nunca curada) anos mais tarde por uma junção entre medicamentos, psicólogos e psiquiatras. Também vi situações ruins no sentido dos oportunismos que as instituições religiosas acabam gerando. Estudando em colégios religiosos, eu tive vários momentos ruins em que o ostracismo era a única solução que a religião propunha para minhas “disfunções familiares”.

Para além disso, eu vim de uma família com uma tradição de erudição a partir de um mito iluminista que meu avô trouxe com bastante força. Ele era um homem que acreditava em meritocracia especialmente pelos estudos, e que para além disso acreditava que o conhecimento era um objetivo nobre a ser buscado independentemente dos ganhos, como uma jornada espiritual. Por conta disso, fui desde bem cedo educado com expectativas e influências desse tipo sobre mim.

Por exemplo, meu avô tinha mais receio de que eu me envolvesse em situações de fanatismo do que de questionamento de tradições. Nesse sentido, ele ficou mais preocupado quando achou que eu estava torcendo demais para o Corinthians do que quando descobriu que eu era ateu. Nesse sentido ainda, até mesmo as convenções sociais para mim foram desde cedo muito relativizadas em significados familiares autogeridos. Porque sabia dos meus interesses e confiava na minha inteligência, meu avô via minhas notas ruins na escola como uma burocracia chata a ser resolvida, mais do que como um atestado de qualquer coisa, e quando eu disse que ia seguir o caminho pouco usual de largar a escola para me formar numa prova especial, ele aceitou sem problema nenhum.

Ainda mais, eu cursei Publicidade, um curso que convida muito profundamente a uma desidentificação mítica. Eu lembro de ter ouvido repetidas vezes, de diferentes professores, variações das ideias “um publicitário não pode ter preconceito com nada”, “um publicitário não tem opinião”, enfim, uma série de ideias que aproximam muitas das bases desta filosofia da publicidade à qual fui exposto a um sofismo no sentido mais puro e pragmático.

Outro aspecto importante foi meu contato precoce com a Internet que, nas suas fases iniciais no Brasil, tinha uma influência forte de certas noções, especialmente as totalizantes do mito iluminista em algumas variações mais básicas de ateísmo. Eu consegui articular e perceber discursos desapaixonados sobre ideias como a religião, o estado-nação, o Brasil como um todo, o capitalismo, enfim, tudo, sobretudo em discussões na Internet.

E, finalmente, eu sou um homem bastante privilegiado de uma família que se esforçou bastante em validar e aprofundar sua posição a partir de um crescente secularismo: sou branco, normativo, tive o privilégio de ir da graduação até o mestrado, vim de uma família que variou entre a classe média e a riqueza e em que financeiramente houveram raros desconfortos.

Nessa situação, sou um homem mais interessado em resignar-me dos mitos porque sinto que já dependo pouco deles, porque problematizo os mitos que costumam dar conforto aos privilegiados que me acompanham nas minhas classes, e porque os argumentos seculares dos discursos, mesmo os marxistas, parecem muito mais convincentes para mim quando desconstroem tudo isso e propõem a resignação, em comparação com quando tentam construir e promover algo esperançoso. É a ótica que considera que o repúdio é mais interessante do que a apologia, que tem apreço estético maior pela desconstrução do que pela construção, que critica ao invés de propor. Nesse sentido ainda, faço parte de um movimento cultural dos nossos tempos de crise mítica em que, exceto os que se rendem aos fanatismos pela aridez de demandas atendidas pelos mitos falidos que ainda circulam, uma boa parte das pessoas vê com desconfiança qualquer promessa, qualquer otimismo, qualquer conforto e qualquer esperança, principalmente quando considera quais são as parcerias, na esfera da articulação de poderes e discursos, que promovem e permitem que certas ideias circulem em detrimento de outras.

Eu acredito que se qualquer um desses aspectos fosse diferente, ou fosse em menor intensidade, talvez os mitos anti-míticos não tivessem nunca me atraído. Talvez, sob uma abordagem essencialista, existisse alguma coisa na minha personalidade que ainda fosse me aproximar dessas “identificações desidentificadas” de qualquer jeito, mas eu não sei o quanto confio nessa abordagem e, dadas as razões concretas que mencionei, essa elucubração não precisa ser feita.

O que isso exemplifica é, outra vez, o estado de nicho de mitos anti-míticos. Se você assistiu o especial de Bo Burnham e ao invés de se identificar, chorar e inspirar como eu fiz, sentiu desconforto ou repugnância, acho que vai fazer sentido essa diferenciação e a ideia de que os mitos anti-míticos possuem valores e estéticas quase alienígenas e agressivas a todos os outros mitos. E faz sentido que seja assim: ao mesmo tempo tão frágeis, mitos anti-míticos também são muito autoritários, no que competem e agridem qualquer outro mito no desejo de estabelecer seu monopólio. Até porque possuem poucos adeptos, a força fanática dos que existem para sustentar os mitos anti-míticos precisa ser maior e um tanto apaixonada — o que é irônico, outra vez, dado que os mitos anti-míticos uma hora ou outra podem confrontar e desconstruir até mesmo esse apaixonamento.

O que nos leva para uma análise mais aprofundada de uma das poucas associações comparativas que a este mito são viáveis:

4. Como o mito anti-mítico conversa com o mito de individuação?

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Antes de explicar com se associam, é importante explicar os mitos de individuação em si. Deixei eles para depois dos mitos anti-míticos porque, já que são muitíssimo similares, eu agora só preciso destacar o que é diferente entre os dois.

Em certo sentido, mitos de individuação são gêmeos dos mitos anti-míticos, ao ponto de que faz sentido até mesmo considerar se não são só versões diferentes de uma mesma coisa. Eu acredito que não sejam, e é por isso que os separo como o faço, porque a diferença que possuem é de fundamento, mesmo que se assemelhem muitas das práticas.

Para começar, eu acredito que o foco e o propósito dos dois é diferente. O mito anti-mítico é um mito negativo, no sentido de que tudo que puder nega e nada propõe, enquanto o mito de individuação é positivo, no sentido em que há um propósito para os seus processos, uma verdade propositiva.

Se tivesse que dizer isso em termos metafóricos, eu diria que para os mitos anti-míticos a verdade é a ausência de mentiras, o que sobra no vácuo silencioso após os mitos serem calados, enquanto para os mitos de individuação a verdade é algo em si, algo que sobra como existência e não como ausência quando os mitos deixam de desviar nossa atenção.

Enquanto o mito anti-mítico está focado e obcecado em desnudar os não-seres, em desidentificar-se de todos os mitos que puder, o foco dos mitos de individuação está em focar-se num ser que seja, cada vez mais, o mais real que for possível.

Por esses critérios, acho que já fica evidente como as associações entre esses dois diferentes mitos se dão, mesmo quando variam em algo fundamental. Os processos de desidentificação mítica são os mesmos, mas para os mitos anti-míticos esses processos de desidentificação são os fins neles mesmos, enquanto para os mitos de individuação esses processos são para o fim de forjar um certo propósito mais profundo e autônomo do ser.

Quero dar um exemplo para demonstrar essas nuances.

Lá atrás, nós trabalhamos com o caso de um dilema frente a um critério mítico de beleza: uma pessoa que até então se achava bonita e que precisa ou se confrontar com os caminhos de mudar seus critérios, ou mudar a si mesma para adequar-se aos critérios, ou aceitar o fracasso em atender os critérios e encontrar conforto em outra coisa (algo como retirar conforto de ser uma boa pessoa, mesmo que feia), ou seguir o caminho da resignação, o negar de qualquer conforto.

Para os mitos anti-míticos, a resposta é sempre a última: resignar-se. Isso vale se o mito de beleza do nosso exemplo não traz conforto, se a pessoa sente-se feia, e nesse caso talvez resignar-se fosse até um alívio. Mas para o mito anti-mítico, existe alienação inclusive nos casos em que a pessoa sente-se bonita, e mesmo nesses casos o mito deve ser abandonado, ainda que este processo seja incômodo por fazer com que a pessoa sacrifique uma fonte de conforto e autoestima. Os mitos anti-míticos rejeitam o conforto mítico em absolutamente qualquer hipótese e, na ironia paradoxal de sua autofagia, ao se tornarem autoconscientes precisam rejeitar inclusive o conforto que eles mesmos oferecem — o que acaba criando a lacuna para que uma relação diferente com os mitos floresça novamente. Um mito anti-mítico que se volte contra si mesmo vai refletir questões como: por que eu preciso me resignar em todas as situações? Isso me faz melhor? O que estou buscando com este ato de abandono mítico?

O mito anti-mítico sozinho não pode oferecer respostas para nada disso porque ele é feito para rejeitar todas as respostas: se respondesse qualquer uma dessas coisas, ele deixaria de ser mítico. Existe um propósito ainda, é claro, num sentido de esboço emocional profundo, no qual quem se vincula aos mitos anti-míticos faz isso porque se sente melhor fazendo isso, faz isso porque busca algum ideal a partir disso. Mas este propósito é, neste caso, propositalmente envergonhado e pouquíssimo articulado. É quando articula-se que o mito anti-mítico volta-se contra si mesmo e começa o processo de sua própria desconstrução.

Já o mito de individuação não tem essa vergonha, nem essa falta de articulação. Ele é propositalmente propositivo e autoconsciente de sua proposição. Diante da pergunta “por que eu preciso me resignar em todas as situações”, o mito de individuação tem uma resposta: você não precisa, inclusive porque este processo não é totalmente controlável e consciente (outra diferença do mito de individuação frente ao mito anti-mítico que prometia total controle do processo); mas se você o fizer, o propósito é tornar-se mais individuado. Diante da pergunta “isso me faz melhor?”, o mito de individuação não tem vergonha de articular que acredita que sim, te faz melhor, embora a leitura de “melhor” no mito de individuação seja muito irônica e limitada somente ao sinônimo básico em que se equivale “melhor” a “mais individuado” — o mito de individuação também costuma desconstruir a ideia de “melhor” em qualquer outra situação. E diante da pergunta do que está buscando, ao contrário do mito anti-mítico que só pode responder com uma ausência, algo como “menos mitos”, o mito de individuação pode propor algo em si: ele busca mais individuação.

Falamos lá na primeira parte deste ensaio o que é individuação, mas é importante destacar que a individuação do mito de individuação pode ser construída de maneira um pouco diferente do que ela é nos processos que discutimos antes. Nos processos que discutimos, a individuação é algo que acomete em alguma medida a nós todos, no sentido em que todos nós passamos por processos da identidade. No sentido do mito da individuação, a individuação é construída como um objeto de desejo e o indivíduo do mito de individuação, mesmo ciente de que a individuação pode correr sozinha, busca interagir com e participar desse processo, intensificando a individuação quando e como for possível. É mais ou menos a mesma diferença que existe entre a desidentificação em si, como algo que a nós todos acomete, e a desidentificação como lida de forma que a exalta e romantiza nos mitos anti-míticos.

A psicologia analítica, quando vinculada de forma mais direta aos preceitos de Jung, é construída como uma prática dos mitos de individuação. Certos exercícios, que vão da análise de sonhos ao confronto com a Sombra, são construídos com a ideia de desmontar determinadas identificações rígidas (a narrativa de mito daquilo com o que o consciente se identifica) a partir das práticas que forçam o confronto com os materiais inconscientes até então relegados ao Outro.

A semelhança aos mitos anti-míticos está, portanto, no método, enquanto a diferença está nos fins. O mito anti-mítico não promete nada e, justamente por isso, ele costuma alienar-se sozinho, intolerante e incapaz demais até mesmo para estabelecer alianças. Apesar de construir um exercício de desconstrução de identificações, o mito de individuação já é, por sua vez, mais aberto para certas associações com outros mitos, o que é ao mesmo tempo sua principal força e sua maior fragilidade.

Apesar de eu discordar muito dela, a imagem que se tem de Jung como um “místico” não parece um mistério para mim. Eu acho muito divertido que Jung seja usado como um endosso associativo, em desleituras muitíssimo deturpadas de seus pensamentos, para justificar pequenas seitas e os misticismos básicos da cultura new age como o tarot e a leitura do I Ching.

Eu frequentei durante muitos anos eventos destes sincretismos religiosos e, enquanto um ateu que leu muito de Jung e que gostou dele pelo potencial que vi em sua obra de ajudar a me desnudar de identificações e mitos, era fascinante para mim encontrar nesses eventos com místicos abertos a acreditar em coisas como reiki e o poder das pedras, místicos estes que por algum motivo pensavam que Jung era o autor mais simpático para fornecer algum nível de endosso secular (mesmo que mínimo, já que essa aproximação dos místicos arruinou muito da reputação secular do próprio Jung) para suas crenças.

O caso das pedras é um bom exemplo para demonstrar a diferença sutil, mas existente, entre um mito de individuação e um uso de mito comum para um determinado símbolo.

Jung tinha uma relação profundíssima, em seus mitos de individuação, com pedras. Ele estudou a alquimia, entendia simbolismos variados de diversas culturas sobre pedras, e ele mesmo fez trabalhos em pedra no final de sua vida, como uma célebre e famosíssima pedra que ele esculpiu em Bollingen, com inscrições em grego de alquimia alternadas com desenhos de seu inconsciente.

No caso de Jung, esta pedra tinha valor por suas sincronicidades, por suas potencialidades associativas, por suas relações com seu inconsciente, mas a pedra em si era ainda apenas uma pedra, no sentido mais simples e estrito do termo, uma pedra que um pedreiro levou por engano e que não se encaixava em sua obra. Não era um cristal, não era uma pedra brilhante e bonita, era uma pedra cinza, pura e simples, uma rocha básica. A pedra existia enquanto um objeto entre muitos de sua gramática simbólica que contribuía para sua individuação.

No caso de um mito mais diretamente associado com pedras, como no mito básico do “poder curativo das pedras”, estes objetos não são observados como meros participantes de dinâmicas inconscientes e conscientes de individuação, muito menos como só outro símbolo de uma gramática mítica geral, e o foco da sua magia não é considerado como um fenômeno somente psíquico. Para quem acredita que um cristal em específico, por ser de determinada cor e material, contribui de alguma maneira para curar dor de cabeça, realinhar energias ou resolver ansiedade, nada disso é lido ou entendido enquanto metáfora.

Uma pessoa que acredita nesse mito das pedras curativas vai buscar as pedras que são símbolos de cura para tentar resolver seus problemas de saúde física, como uma dor de barriga, enquanto alguém como Jung se apropriaria desta leitura da pedra de cura para usar em suas dinâmicas profundas de mergulho no inconsciente e construção subjetiva de um eu individuado, mas só. Jung, com toda a sua simbologia sobre pedras, tarot, alquimia e todo resto, tomaria um remédio ou iria ao médico se estivesse com dor de barriga ou de cabeça, no exemplo mais básico de uma leitura secular dos atos com respeito aos achados científicos. Apesar da aura mística, Jung era um médico, um homem secular por excelência, na tradição firme dos eruditos europeus vinculados aos mitos iluministas.

O mito de individuação, de forma um pouco diferente ao mito anti-mítico, não vê problema em apropriar-se de símbolos potentes de todos os tipos de fontes, sejam religiões próximas ou antigas, mitologias autogeridas obtidas a partir de sonhos, ou até a partir do folclore. Mas tudo isso é construído como uma gramática, tornado indumentária para um objetivo único: contribuir para a individuação e para processos terapêuticos correlatos. Os outros mitos neste caso nunca são mitos em si mesmos, nem são mitos aos quais se pode associar-se, são ferramentas para fins psicológicos, para fins de uma autonomia a partir do abandono progressivo de todos os mitos, usando um pouco de todos eles a todo tempo para contribuir neste processo constante de desnudamento.

Um exemplo bobo para explicar isso: quando um pai conta uma fábula com lição de moral para uma criança, o foco daquela narrativa é utilitarista. O pai não acredita de verdade que uma tartaruga venceu uma lebre numa corrida, mas ele acredita que aquela historinha pode contribuir para influenciar seu filho de uma maneira que ele acredita proveitosa. Para o mito de individuação, todos os mitos funcionam como fábulas, ou seja, como narrativas utilitaristas que contribuem para um fim: explorar a subjetividade e interagir com o inconsciente, desenvolver uma gramática simbólica, ganhar autoconsciência e, como objetivo último, intensificar o processo de individuação.

O mito de individuação busca um eu individuado, uma pessoa em que, retomando as definições lá da primeira parte do ensaio, não existe diferenciação entre o eu e o mito do Eu: alguém em que eu e Eu são em absoluto sinônimos porque, absolutamente lúcido, este alguém alcançou a autoconsciência mais completa. Para este mito, todo o resto que não este indivíduo é se muito ferramenta, se menos irrelevante.

Há diferentes vertentes. Algumas veem este eu ideal individuado como algo que nunca será absolutamente alcançado (acredito mais neste caminho), enquanto outros são realmente esperançosos de tornarem-se isto. Há também vertentes que, menos cientes destas diferenciações sutis que mencionei, ou propositalmente as ignorando, vinculam mais do mito de individuação aos misticismos. Há também vertentes, como aquela que precisa ser mais secular e regulamentada da psicologia analítica, que seguem o oposto ao se tornarem cada vez mais “pé no chão”. Também há mitos de individuação muito associados ao que já mencionamos no super-homem nietzscheano, ou seja, numa promessa de superioridade em que esse “eu ideal individuado” está acima dos meros mortais de alguma maneira, enquanto há outros que vão no caminho oposto, propondo uma horizontalidade absoluta e uma dissolução do conceito de inferior/superior que, novamente, lembra (aqui até mais) muito ao budismo.

Mas em tudo isso, nos mitos de individuação há uma cultura mais viva, inclusive no sentido bastante irônico de que mitos de individuação podem facilmente evoluir de (ou para) seitas. No seu âmago, acredito que não deveria ser isso que acontece, mas a bem de verdade, até por sua relação mais simpática ao inconsciente e ao irracional (por falta de uma rigidez ao racional, talvez), os mitos de individuação costumam ser menos rígidos e menos apegados aos aspectos seculares.

Apesar de suas diferenças, os mitos anti-míticos e os mitos de individuação possuem uma relação semelhante na maneira como percebem a todos os outros mitos e como constroem práticas propositais nos processos de desidentificação, razão pela qual englobo os dois nesta mesma categoria e capítulo. Enquanto os mitos anti-míticos simplesmente jogam fora os mitos dos quais se dissociam, os mitos de individuação fazem algo que para estes mitos talvez parecesse até mais desrespeitoso, torná-los mera mitologia a ser usada como pecinhas ou ferramentas numa jornada rumo à individuação.

Por suas semelhanças em práticas, mesmo que diferenciem-se em fundamentos, acho que posso também englobar os mitos anti-míticos e os mitos de individuação nas críticas que, na sequência, quero fazer a ambos e que vão começar finalmente o fechamento de meu argumento mais geral dessa terceira parte do ensaio. Nos raros casos em que uma das críticas não se adeque a um deles, vou demarcar a situação.

Capítulo 19: Uma crítica final à desidentificação como prática consciente

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Para começar esta crítica conjunta, acho importante refletir sobre a desidentificação como prática proposital, algo que os mitos anti-míticos e os mitos de individuação compartilham.

Durante este ensaio, muitas vezes defendemos a desidentificação em contextos em que ela parecia necessária ou proveitosa. Para alguém que se sente mal porque identifica-se como feio, a desidentificação ao seu mito atual de beleza pode ser um caminho interessante para sentir-se melhor. Para alguém que acredita que vacinas são uma conspiração do Bill Gates para implantar chips da besta no nosso corpo, definitivamente a desidentificação deveria ser o caminho, por uma questão de proteção aos significados que devem ser manejados em seu estado “de dicionário” para proteger o bem-estar social.

Mas sempre que mencionamos a desidentificação, ela foi posta na situação de vínculo a algo. Se alguém se sente mal, talvez a desidentificação do que acredita funcione; se alguém se sente bem com algo que acredita, mas se este algo é destrutivo para os outros, a desidentificação é uma preocupação em escala social. Existem porém outros casos em que a desidentificação não é uma necessidade, quando manter um mito não traz prejuízos à pessoa ou aos outros.

Já no caso dos mitos que estamos discutindo agora nesse final, a desidentificação é considerada quase que em si mesma, num estado que beira o absolutismo de suas capacidades, quando independentemente do contexto, da razão, do que se sente, a desidentificação passa a ser defendida como a melhor alternativa sempre, para tudo.

Este estado contraditório, antagônico aos funcionamentos da identificação, é bastante problemático por uma série de motivos. Vou citar pelo menos alguns.

Primeiro, a desidentificação de tudo, sem contexto ou razão, destrói pertencimentos. Destrói a autoestima, o conforto, a motivação. É mais difícil se motivar a trabalhar se você não tem um mito que dê esperança de melhorar de vida, ou sem um mito que garanta que seu trabalho tem algum propósito. É difícil ter motivação para estudar e se esforçar para qualquer empreendimento se você desidentifica toda e qualquer narrativa que poderia construir expectativa mítica.

No caso dos mitos de individuação, pode existir pelo menos a motivação de tornar-se mais individuado, mas os mitos anti-míticos não entregam nem isso. E para ambos os casos, pode ainda assim existir certa dificuldade em encontrar uma justificativa na individuação para acordar cedo, tomar um banho de madrugada e pegar duas horas de transporte coletivo no caminho pro trabalho que paga mal.

Por tudo isso, é enorme a resistência mítica para com mitos anti-míticos e mitos de individuação, quase como uma estratégia de sobrevivência. Numa junção de práticas entre os dominados e os dominadores, aos primeiros é incômodo um mito que os furte dos poucos confortos narrativos que tornam sua exploração suportável, enquanto para os segundos é incômodo um mito que ameace às narrativas que dão o mínimo de conforto esperançoso aos seus explorados para que estes se mantenham funcionais. O funcionário que pega ônibus cedo vai sofrer se admitir que é explorado, que não está no ônibus só por responsabilidade própria, que no Brasil existem poucas esperanças de que ele ascenda ou de que tenha dignidade enquanto trabalhador, então é muito tentador repelir as narrativas que o confrontem com esse sofrimento. Ao empregador, narrativas que desconstruam as esperanças iludidas de seus trabalhadores, esperanças essenciais para que sigam trabalhando e se esforçando, são uma ameaça.

Isso vale para tudo. Na religião, aqueles que retiram conforto de pensar que seus pais mortos foram para o céu são pessoas não querem confrontar esta fé: estão no seu direito e, como defendi ao longo deste ensaio inteiro, acho injusto e irreal pensar que poderia se exigir diferente deles. Ao mesmo tempo, ao império de Edir Macedo também interessa que a fé não seja confrontada, então há tanto motivações pessoais, de biografias particulares afetadas, quanto interesses de instituições com dinheiro e poder envolvidos.

A motivação é uma necessidade básica para o funcionamento de sociedades e, da maneira injusta, hierárquica e iludida como são nossas sociedades de hoje, em que é preciso prometer-se muito mais do que se entrega para que as pessoas sigam funcionando como engrenagens a movimentar todo o sistema, os mitos que entregam esta motivação são quase uma função social fundamental, sem a qual nada funcionaria. Quanto mais desacreditados os brasileiros ficam a respeito dos nossos mitos de democracia plena, de capitalismo meritocrático, de uma sociedade digna e justa, mais disfuncional nossa sociedade brasileira se torna, seja quando por conta do desespero e insatisfação os fanatismos conquistam mais pessoas, seja quando as pessoas desesperadas, desacreditadas e insatisfeitas começam a agir antissocialmente, deixando de trabalhar, envolvendo-se com o crime, etc. Se eu não acredito que estudar e ter um trabalho é uma promessa real para mim, a promessa de ascensão do tráfico pode parecer atraente. Se eu não acredito que a democracia me representa, golpes de estado e regimes autoritários parecem interessantes.

Ao mesmo tempo, é difícil defender e convencer as pessoas de que coisas como o capitalismo brasileiro ou a nossa democracia são plenamente funcionais porque, a bem de verdade, não são. Estão longe de ser e o processo de melhora, se alguma melhora for acontecer, é lento, incerto, complexo, arriscado, multifacetado, cheio de nuances — e nada disso vai resolver a vida de cada uma das pessoas que, ao longo desse longo processo, vão precisar viver e acreditar que as coisas já estão melhores do que são realmente para que tudo não desabe antes de talvez (ênfase no talvez) melhorar de verdade num futuro distante.

Para além do sentido social, no sentido individual é difícil também falar sobre desidentificações para quem depende de certas identificações para se sentir feliz. Para alguém que se sente muito mal com tudo na sua vida, alguém que se sente burro, incompetente, sem bons vínculos, enfim, para esta pessoa algo tão superficial e bobo quanto vestir-se “bem”, com roupas de marca ou com algum estilo de roupas em particular, pode ser a identificação que lhe dá um tiquinho de felicidade, um tantinho de conforto, um mínimo de pertencimento, validação, aceitação. Por mais superficial e boba que seja essa identificação, por mais vazia que seja, mesmo se ela contribuir para os piores atores da indústria da moda dependendo das marcas que essa pessoa gosta de vestir, mesmo se essa identificação fizer parte da tragédia que é o consumismo como ato de identidade e terapia, ainda assim me parece cruel e inviável exigir que uma pessoa vulnerabilizada assim seja capaz de abandonar os poucos mitos que lhe confortam.

Estou dando exemplos caricatos e exagerados, mas na realidade eu acredito que todos nós somos muito vulnerabilizados, pelas precariedades do mundo e de nós mesmos com as quais diariamente nos defrontamos, e construímos nossas identificações míticas sempre como o mínimo para proteger nosso aparato mental da insanidade, do desespero absoluto que de outra forma nos entregaria rendidos à letargia. Todos nós temos limitações e para nos dar um tantinho de conforto sobre nossos limites são os mitos que sempre entregam um alívio terapêutico considerável, sejam esses mitos vinculados ou não a retóricas destrutivas. É importante fazer esta distinção para destacar que, nos casos em que mitos devem ser combatidos, é por outros efeitos que possuem, por serem destrutivos, não por serem mitos, não por entregarem conforto.

Se uma pessoa tem um mito de beleza que a faz se sentir feliz quando se olha no espelho, isso me parece perfeitamente aceitável, espero que ela siga sentindo-se feliz com isso, e essa felicidade dela não precisa ser problematizada enquanto não gerar algum efeito social (sempre gera, as noções de beleza costumam ser sociais, mas me ajudem aqui a ter pelo menos um exemplo, imaginem por um momento uma beleza autogerida e que não se possa problematizar). Já se a pessoa tem um mito nazista a partir do qual se sente feliz, esse sim precisa ser criticado — é importante notar, não pelo alívio terapêutico, que é o mesmo do mito inofensivo de beleza, mas pela retórica associada, pelos efeitos nocivos aos outros, etc.

A desidentificação como um absoluto não faz essa distinção: independente da retórica, independente do alívio, ela exige o desnudar-se de tudo. Não é todo mundo que é capaz de fazer isso, e não acredito nem que fosse desejável fazê-lo, mesmo se todos fossem capazes.

Por tudo isso, os mitos que focam tanto nessa desidentificação são sempre de nicho. São atraentes a privilegiados porque é mais fácil resignar-se de confortos míticos e defender a resignação quando se tem um estômago forrado de comidinhas e uma série de seguranças sociais, benesses, estruturas. Mas são atraentes também, por algum motivo misterioso, para algumas pessoas que não conseguem se vincular aos mitos, mesmo quando existem alívios que retirariam de fazê-lo.

Novamente, vou dar um exemplo meu. Quando meu avô faleceu, eu sofri enormemente. Foi um dos maiores sofrimentos da minha vida toda, talvez o maior de todos. Na época eu já não tinha fé e senti com muita clareza e profundidade que eu estaria sofrendo muito menos caso não fosse ateu. Poderia acreditar que meu avô estava melhor em outro lugar, que me observava do paraíso, que sua alma/espírito tinham seguido em frente, e qualquer um desses pensamentos teria me dado conforto. Eu queria acreditar nessas coisas, queria muito mesmo, cheguei até a tentar acreditar nelas, mas eu não conseguia. O que pode ter sido o maior sofrimento que senti na vida não foi suficiente para fazer com que eu conseguisse me entregar a alguma fé que ajudasse a atenuar a dor, então senti a dor em sua totalidade, nua e crua, e precisei lidar depois com todo o processo de entender a morte, de outros e também minha, a partir dessa minha situação resignada — o que foi muito difícil. Não é que eu só não comprei um dos mitos que poderia me ajudar com isso e fui atrás de um outro mito que para mim fosse mais convincente. Eu tive que me resignar de que, em um estado absoluto, nada me convencia, e tive que construir resignação a partir daí.

Disse tudo isso para construir uma ideia que tenho, mas para a qual não tenho tantos argumentos, inclusive porque é algo que acredito que é difícil comprovar: eu acredito que, menos do que um projeto consciente onde podemos agir propositalmente, os caminhos míticos que tomamos são muito decorrentes de questões mais profundas nossas (do nosso contexto social, tanto quanto de nossa personalidade) que não controlamos e pouco entendemos. Eu não escolhi, no momento da morte do meu avô, ser incapaz de encontrar conforto numa narrativa religiosa. Era algo que parecia inerentemente meu, uma incapacidade particular, e o máximo que acredito que posso ter escolhido fazer é ter sido honesto sobre isso.

Volta e meia, eu penso em certos processos sociais que me parecem fazer sentido quando considero uma crescente desidentificação. Para além de todos os que mencionamos ao falar da crise mítica, eu acredito por exemplo que a psicologia, a publicidade e a indústria cultural são ao menos parcialmente responsáveis por sociedades contemporâneas que estão aos poucos construindo resistência a certos mitos — se não totalmente, ao menos nas versões mais ingênuas.

O mito do capitalismo dos anos 50, como era vendido nos filmes da época e nas peças publicitárias de então, parece ingênuo para quem veja essas publicidades e filmes hoje. Quando assistimos coisas tão antigas, é quase como se percebêssemos melhor as engrenagens das tentativas de persuasão, justamente porque estas engrenagens eram mais rudimentares e porque o público que queriam impactar era um pouco diferente (e mais destreinado) do que somos. Hoje, se há um capitalismo que se vende, ele precisa ou ser mais lúcido, mais comedido, menos ingênuo, para gerar convencimento com algum bom senso, ou precisa ser mais fanático, mais extremista, para tentar convencer no grito. E para além de todas as estratégias que possa montar para tentar convencer, existe uma parte do público que simplesmente não se convence. Parte dessas pessoas não são convencidas porque estão vinculadas a mitos diferentes, mas parte dessas pessoas está resignada mesmo. Não são só os que acreditam no futuro socialista que estão desiludidos com o capitalismo como ele é.

Quando escrevi meu ensaio de 2017, eu acreditava que os jovens demonstravam uma narrativa anti-mítica extremista que tinha tudo para se desenvolver quase ao ponto de ruptura da ordem social vigente. Isso não aconteceu e acredito que tenha sido porque, na verdade, toda a geração costuma ser mais desacreditada quando jovem e vai depois com o tempo se comprometendo e mitificando mais. Quando parei para olhar meus amigos de adolescência, e quando os comparo ao que viraram mais velhos beirando os trinta anos, muitos dos que debochavam das narrativas dos adultos acabaram crescendo para se tornarem eles mesmos os adultos comprometidos com algo mítico (e nem sempre isso é ruim). Acho que, voltando à questão das precariedades, a relação de um adolescente com a precariedade é mais lúdica e indireta, menos profunda, o que costuma permitir mais desapego a mitos e mais experimentação com a desidentificação. Quando se é adolescente, também, ainda estão em desenvolvimento os convencimentos míticos que vão atender às demandas de sua geração particular, e os mitos da geração anterior vão parecer obsoletos.

Existem exceções, e eu acho que realmente as gerações de jovens do presente, em alguns países mais do que outro, estão desidentificando muito determinadas coisas, como as construções míticas dos padrões tradicionais de gênero e a meritocracia. Tudo isso vem junto de um forte movimento reacionário de fanatismos, mas não pode ser desconsiderado. Os gritos dos fanáticos sobem o tom tanto porque os desidentificados não os escutam, quanto porque perdeu força até o “mito do consenso neutro” que antigamente regulava a estagnação por meio sobretudo das mídias tradicionais: um meio-termo que, como mencionamos lá atrás, é potente tanto para evitar revoluções fascistas, quanto para proteger o status quo e estagnar a sociedade sem qualquer discussão sobre mudanças estruturais.

Ainda assim, acredito que não seja “a juventude”, enquanto uma promessa, que vai desidentificar o mundo. Os jovens vão envelhecer, colecionar traumas e fustrações, e vão aos poucos construir seus próprios mitos também para lidar com isso. Então hoje acredito que eu estava equivocado em colocar esse papel nos jovens, fossem os da minha geração, a seguinte à minha, ou de qualquer momento.

Sobre a indústria cultural, minhas opiniões mudaram menos — e acho que é um dos poucos pontos em que sigo concordando muito com o que eu disse em 2017. Lá atrás, eu usei a seguinte metáfora:

“Os mitos e símbolos já existiam em estado natural muito antes disso; mas, ao nos tornarmos conscientes de sua existência, fomos capazes de criar versões conscientes e artificiais do que até então era feito de forma inconsciente e orgânica. As narrativas do século vinte, neste sentido, estão para os mitos antigos como a cocaína está para as folhas de coca. As versões sintetizadas se baseiam nas naturais, mas são produzidas com a intenção de impulsionar seus efeitos para atingir determinados fins.”

E hoje, com o que aprendi no intervalo destes seis anos sobre indústria cultural, acredito nisso até mais do que acreditava lá atrás. Os determinados fins que os mitos artificiais tentam promover hoje são muitos: vender produtos, manter trabalhadores motivados, eleger certos políticos. E embora tudo isso tenha sido feito desde sempre, embora desde sempre os mitos que circulam tenham sido vinculados aos interesses daqueles que controlavam sua circulação, eu entendo que mais recentemente, sobretudo no século vinte, o processo de desenvolver e disseminar mitos para determinados fins tenha se tornado mais técnico, mais consciente por parte de quem faz, mais eficiente, mais artificial inclusive.

A cultura orgânica de uma sociedade feudal parecia para mim fluir como mais descontrole, nas mitologias locais, nas canções populares, mesmo diante da repressão pesada dos agentes instituídos da monarquia e da igreja, frente ao que a cultura hoje sofre, pouquíssimo orgânica, quando intermediada e estruturada por algoritmos de interesse, fórmulas no código de sites para engajamento, estruturas de narrativa e roteiro para filmes de orçamento milionário em Hollywood, produção em esteira e com influência de insights de Big Data na Netflix, etc.

Um exemplo interessante: frente à divulgação de pesquisas que comprovavam o dano do cigarro à saúde, a indústria do tabaco no final do século vinte passou a se tornar progressivamente mais mítica. O cigarro abandonou argumentos sobre “frescor na boca” e “saúde e relaxamento”, argumentos mais voltados aos benefícios materiais que os discursos seculares em significado social passaram a desmentir, e se estabeleceu em argumentos voltados ao cigarro como símbolo, como um estilo de vida, como um pertencimento: ideias cada vez mais míticas e divorciadas da necessidade de atender a qualquer critério do discurso secular e do consenso científico. Se alguém entrasse numa convenção da indústria tabagista nos anos oitenta para falar dos malefícios do cigarro para a saúde, poderia ser visto por alguns dos defensores apaixonados e fanáticos do cigarro como alguém tão desrespeitoso quanto seria um ateu indo a uma convenção cristã para falar que Deus não existe. Mas existe uma diferença importante: de maneira descentralizada e orgânica, os mitos sobre a fé em Deus foram construídos ao menos no embrião por milênios, por centenas de milhares de pessoas, e isso resiste em grande parte quando esses mitos são institucionalizados. Enquanto isso, os mitos sobre o tabaco como símbolo de estilo e pertencimento foram construídos em poucos anos, por pouquíssimas instituições e pessoas, em salas de reunião e agências de publicidade. O mito do tabaco foi construído conscientemente, propositalmente, artificialmente, com o único objetivo de refrear a reação da sociedade aos malefícios do cigarro.

Este refinamento técnico do desenvolvimento dos mitos artificiais é uma força do momento presente, ao mesmo tempo que também uma fragilidade. Os convencimentos precisam intrincar-se cada vez mais, nichar-se cada vez mais, desenvolverem estratégias técnicas cada vez mais complexas, porque convencer ficou mais difícil. Era fácil convencer somente com a televisão e o jornal, construir uma ilusão de consenso a partir disso, mesmo nas sociedades “democráticas” dos anos 50.

Tonou-se absolutamente impossível construir hoje uma ilusão verdadeira de consenso e convencer apenas usando da televisão. Com a Internet e as tecnologias mais refinadas de convencimento aplicadas nela, o convencimento é possível, mesmo que ainda muito difícil, até mesmo em sociedades que tentam suprimir dissidências narrativas, como acontece na China ou na Rússia. Nos início do século vinte, era mais do que suficiente uma campanha massiva (mesmo que rudimentar) de jornal, rádio e televisão para convencer jovens e suas famílias de um mito de herói e de um mito de nação para que fossem sacrificar suas vidas lutando guerras. No início do século vinte e um, campanhas massivas do governo em todos os meios de comunicação, construídas de forma muito mais técnica do que as básicas estratégias de antigamente, não conseguem nem convencer direito as pessoas a se vacinarem.

Esta erosão toda dos convencimentos, ainda assim, não me parece garantir um futuro para a desidentificação enquanto projeto social geral. Primeiro porque imagino que a desidentificação seja insustentável demais em larga escala e acabe engolida por algum fanatismo mais palatável muito antes de obrigar todo mundo a se resignar amargamente. Segundo porque, reitero, a desidentificação me parece depender de certas características pessoais também, mesmo que certos contextos contribuam mais ou menos para permiti-la em larga escala.

Idealmente, uma sociedade que exija desidentificação pode obrigar alguém que gostaria de identificar-se a manter-se resignado, somente enquanto for uma sociedade poderosa o suficiente para tal. Mas quando surgir uma alternativa à resignação, na menor das fragilidades do sistema totalizante que abra lacunas e permita concorrências, quem busca os confortos míticos vai se identificar com a alternativa sem pudor ou receio. Porque a identificação é mais gostosa, só quem vai se manter desidentificado se houverem alternativas é quem, de fato, não consegue convencer-se de nada.

Então sim, eu acho que nossa sociedade, por todos os pontos que discutimos exaustivamente sobretudo ao falarmos da crise mítica em larga escala, proporcionou condições que podem impulsionar, fortalecer ou incentivar a desidentificação. Mas eu não acredito que esta desidentificação aconteça num estado irreversível e, do mesmo jeito que as condições criaram este cenário, uma transformação das condições transformaria a situação da desidentificação muito rapidamente (como os extremismos e os fanatismos demonstram que já acontece).

Um exemplo bobo: a pressão social, os significados “de dicionário”, o senso comum, o mercado de trabalho, os acadêmicos, etc., já tentam construir uma rede que inviabilize certas identificações que são entendidas como indesejáveis, seja aos misticismos anticientíficos mais básicos, seja às ideias mais destrutivas de radicalismo político. E todo esse esforço de regulação não é suficiente para impedir que discursos científicos e radicalismos políticos surjam e floresçam.

É como a oferta e demanda no tráfico de drogas: não adianta você conseguir acabar com 99% dos traficantes, caso ainda sobre 1% para seguir como oferta que atenda às demandas do mercado que existe. Enquanto existir a demanda, o melhor que se pode fazer é uma regulação do mercado (a regulação mítica que mencionamos lá atrás) e uma política de redução de danos.

Espero que esses últimos parágrafos tenham deixado melhor evidenciada esta distinção que eu acredito que exista entre a individuação e a desidentificação como partes do processo da identidade que propomos lá na parte 1 deste ensaio, frente à individuação e a desidentificação em suas leituras específicas e exaltadas nos mitos de individuação e mitos anti-míticos, respectivamente. A leitura da individuação e da desidentificação, dentro destes mitos, é também ela mesma uma leitura mítica.

Para além do mito de individuação, portanto, no sentido original da individuação: eu acredito que a individuação seja melhor explicada em uma metáfora circular, de redundâncias rumo a um ponto central, e não como um processo linear ou progressivo. Também não acredito que exista uma potencialidade consciente e controlada que possa dar o pontapé dessa busca, ou que possa gerir este processo. Pessoas que possuem um bloqueio profundo a um determinado processo de individuação, por possuírem um apego à identificação muito grande, podem tomar conhecimento de mitos anti-míticos, inclusive lendo esse meu ensaio, sem absorverem ou compreenderem o que quero dizer devido aos seus vieses, ou até mesmo me compreendendo e mantendo suas identificações particulares ainda assim, devido aos seus próprios processos e escolhas. Eu acredito que isso seja uma escolha, um escolher acreditar em algo, tanto quanto pode ser ainda parte de um mecanismo de defesa da identidade: ou seja, no mesmo sentido em que eu não sinto que escolhi ser incapaz de acreditar em algo religioso para lidar com a morte do meu avô, eu não considero que necessariamente alguém escolha acreditar na fé religiosa que venha a possuir, ao menos não em todos os casos. E esta leitura da individuação e da desidentificação como processos não totalmente controláveis contradiz a leitura destes processos em seus respectivos mitos como escolhas conscientes.

A individuação é mais um processo acidental, no qual descobrimos que estamos desapegando de certos mitos e nos tornando menos convencidos por eles, devido pelo menos em grande parte a um ímpeto que não controlamos. Sendo a individuação descrita por Jung como um processo complementar entre consciente e inconsciente, acredito que faça sentido pensar que a consciência sozinha, mesmo que queira muito, não pode se individuar se não for esse seu ímpeto, se este caminho não atender às suas precariedades, se não funcionar com sua identidade ou seu mito do Eu.

O processo para a definição daqueles que perderão mais convencimentos, que terão mais desidentificações a mitos, parece mais ser uma descoberta do que uma construção: descobrimos que temos esta necessidade de desidentificação, ou esta falta de capacidade de nos convencermos e identificarmos a certos mitos, a partir de contextos extremamente particulares de nossas personalidades e vidas.

E nesse sentido da descoberta, esta desidentificação pode ou não ser lenta, pode ou não ser influenciada e condicionada pelo ambiente (seria mais difícil se desidentificar de um mito religioso nascendo numa família muito católica, ou vivendo na Europa medieval), mas ainda é, numa das suas entranhas que se comunica diretamente com as vontades mais profundas e subjetivas das pessoas, uma questão que se desenvolve democraticamente. Pode ser mais presente em privilegiados, mas se os privilegiados tiverem a necessidade de mitos, voltarão a eles; e pode ser menos presente nos marginalizados, mas se um marginalizado tiver o ímpeto desta desidentificação, ele provavelmente a alcançará, mesmo que em segredo ou mesmo que sem articular este estado com estéticas de erudição, independente do ambiente ao seu redor ser o mais alienante possível, independente das condições serem desfavoráveis.

A individuação, como processo, e a autonomia perante mitos, não dependem de classe social, nem de idade, nem de lugar do mundo. Tudo isso as afetam, e pode ser mais fácil construir esta autonomia mítica no caso que exista alguma erudição, mas essencialmente o processo só pode ou não ser bloqueado pela existência ou inexistência de demandas míticas e, se estas existirem, de bloqueios psicológicos que tentem proteger os mitos que atendem tais demandas. Há ainda uma certa situação de adequação à realidade vivida que, embora exista, também não é determinística: um pai pode ter mais interesse em mitos de paternidade, por exemplo; mas mesmo esses interesses podem ser contraditos quando o convencimento não é uma possibilidade para a pessoa. Em situação à realidade vivida, um mito que desse propósito para meu luto teria atendido aos meus interesses e demandas, quando meu avô morreu, e eu ainda assim não fui capaz de me convencer de um.

A fé, ou a falta de fé, não são, ao menos não totalmente, escolhas conscientes, escolhas propositais. A fé, ou a falta de fé, são mais consequências destes processos internos da identidade, das nossas demandas míticas, das nossas precariedades, das nossas relações subjetivas com a identificação e a desidentificação enquanto conforto e ameaça, respectivamente. A desidentificação não pode ser imposta, não pode ser intensificada em larga escala e não pode ser controlada e não é necessariamente positiva, nem certamente necessária. E frente a essa organicidade incontrolável do processo, da existência do processo como algo que não é necessário nem positivo por si, todos os dogmas, preceitos e iniciativas de ato, todas as promessas dos mitos anti-míticos e de individuação, parecem para mim como equivocados, míticos no sentido de senso comum de falsos, e míticos no sentido deste ensaio em que entregam certas identificações e confortos, por mais contraditório que isso pareça, a quem participa de suas estruturas.

Por tudo isso, eu tenho ainda uma última ideia sobre a qual refleti em relação a tudo isso, também uma ideia muito difícil de se comprovar, de que a desidentificação pode ser não um fim em si mesma, mas uma espécie de “pressão evolutiva” para mitos mais convincentes e sustentáveis.

É sobre isso que gostaria de falar agora.

Capítulo 20: E se tudo que a autofagia mítica fizer for pressionar para a criação de mitos mais convincentes?

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Antes de me aprofundar nessa questão, gostaria de pedir licença para fazer um retrospecto de algumas ideias, afinal este livro é comprido e faz tempo que reforçamos pela última vez a alguns conceitos importantes.

Quando analisadas diante dos mecanismos e estruturas do processo de identificação, todas as narrativas possuem uma função equivalente e dual, em que se aproximam mais das identificações estabelecidas, associando-se mais diretamente ao eu, ou então são repelidas e afastadas da identificação, restritas portando ao Outro. Nesse sentido, diante do processo de identificação, a leitura do mundo está sempre em algum nível mais rudimentar pautada nesse binário entre o que se entende ser e o que se entende não ser. A leitura da identificação, que é primordial para a construção do senso de eu, é também parte importante de como é construída toda a visão de mundo do sujeito.

É por isso que, como um ponto de partida ou um recorte para a análise de todas as narrativas em seus aspectos de semelhança, a leitura de como estar narrativas se portam em relação aos processos de identificação facilita tanta coisa. É somente a partir de um recorte desses que é possível fazer algo como estamos fazendo neste ensaio, em que num só fôlego analisamos tanto narrativas políticas, quanto científicas, quanto religiosas, na maneira como constroem aspectos míticos para participar das dinâmicas da identificação.

Nesse ensaio, defino como mítico o próprio processo de associação entre uma narrativa qualquer e uma pessoa através dos processos de identificação. Defendo que toda a associação entre “eu” e “outro”, ou seja, entre um sujeito particular e um termo abstrato de uso mais geral, é sempre uma aproximação, e que todas estas aproximações são baseadas nas intenções míticas dos processos de identificação dos sujeitos. A construção projetada desses dois conjuntos universo são o que chamamos lá atrás de “mito do Eu” e “mito do Outro”.

Em todos os casos, há características que o sujeito identifica em si mesmo e que projeta nesses objetos externos que supostamente devem servir como validadores sociais e comprovações gerais sobre esta característica. O líder religioso pode, para usar de exemplo, usar da identificação com a bondade enquanto ferramenta de seu projeto de poder, se conseguir estabelecer um discurso convincente em que a experiência religiosa definida possa servir como endosso para a bondade que o indivíduo percebe em si mesmo e com a qual gostaria de articular uma defesa para os outros.

Cada narrativa possui suas características, na maneira como podem ou não obedecer a mais critérios (como por exemplo se moldar diante de novos fatos, realizar investigações ou não) e podem ou não ser mais apelativas. Mas essas características vão ser lidas e afetar processos de identificação, sendo que estes processos de identificação funcionam ainda de maneira marcante em narrativas mais ou menos criteriosas e mais ou menos apelativas, correndo o risco inclusive de que narrativas menos criteriosas, se abandonarem critérios propositalmente para estabelecer associações de identificação mais eficientes, serem capazes de suplantar e construir concorrência desleal com narrativas mais responsáveis. Até no sentido de comparar narrativas mais ou menos responsáveis, analisar os processos de identificação é passo importante.

Existem pelo menos duas maneiras de analisar, com base nisso tudo, qual é a qualidade e a validade das narrativas. A análise sofista é aquela que vai analisar o quanto a narrativa é suficiente em si mesma, como ferramenta apelativa e eficiente para estabelecer identificações fortes e engajadas por parte de seus identificados. Uma análise secular vai perceber o quanto a narrativa é responsável, o quanto ela obedece a critérios de lógica e de abertura a novas evidências, e o quanto convive bem com outras narrativas na esfera pública.

Dando alguns exemplos:

  1. Na religião, uma narrativa sofista seria aquela que associa as vacinas a alguma leitura apocalíptica, como chamá-las de “marca da besta”para entregar um conforto fácil frente ao medo das pessoas sobre vacinas e sobre complexidades científicas que estas pessoas não dominam. Na mesma religião a narrativa oposta, que percebe a vacina como um exemplo da humanidade respondendo aos dons que recebeu do seu criador, seria mais responsável e mais aberta às investigações científicas.
  2. Na ciência, uma narrativa sofista que venda um tratamento milagroso com linguagem apelativa, ou uma narrativa que seja distorcida pelo lobby de alguma indústria que invista mais em uma linha de pesquisas do que em outra, é diferente de uma narrativa secular onde as evidências existam mesmo quando forem incômodas ou desagradáveis aos interesses particulares de uma pessoa, empresa ou instituição.
  3. Na política, o caso das vacinas serve também. Existe uma diferença profunda entre o viés sofista de uma teoria da conspiração, como aquelas que ficam paranoicas contra as vacinas chinesas sem entender os processos científicos de sua produção, e uma narrativa política que possa divorciar até mesmo uma insatisfação ou incômodo com a China, ou com qualquer outro país, dos resultados de um processo que obedece ao método científico e que pode ser validado ou invalidado em qualquer lugar, para além das influências e distorções dos jogos nacionais.

Combater o sofismo parte não só de uma revisão e um fortalecimento constante dos critérios seculares que o evitam ou desestimulam, mas de uma investigação constante sobre o próprio sofismo, analisando quais são os apelos de simplificação que estão sendo oferecidos, como eles podem ser atendidos de forma mais responsável por narrativas diferentes e menos destrutivas, e como esses apelos podem ser atacados diretamente, em críticas que os desconstruam não só a partir das evidências de que estão errados, mas também nas evidências de quais são os apelos que estão sendo atendidos por esta narrativa para garantir que algumas pessoas decidam cegar-se às evidências.

Se o processo de fazer esse combate ao sofismo e uma opção por narrativas mais responsáveis parecer algo absurdo ou inviável, é só parar para pensar que a nossa sociedade foi construída a partir do sucesso de processos desse tipo. O iluminismo em sua luta por instituições seculares, por exemplo, foi capaz de superar uma narrativa anterior que vinculava de maneira íntima a vida pública e o dogma religioso, pondo no lugar narrativas separadas e independentes, uma delas para regular e organizar a vida pública, e outra para atender às demandas de quem busca dogma religioso. Esta separação das esferas, mesmo gradual, foi uma profunda mudança em que uma narrativa apelativa foi desmontada para dar lugar a um sistema diferente de construção das identificações.

O sofismo ressurge quando é subestimada a necessidade constante para lidar com ele. Uma sociedade que se julgue como já tendo superado o risco do fanatismo estará sempre sujeita a ver uma concorrência desleal surgir novamente, com novas narrativas com pouca ou nenhuma regulação que sejam capazes de entregar, com mais eficiência e menos critérios de responsabilidade, as demandas míticas de algum grupo.

Existe, portanto, uma diferença entre as situações em que a negação de um mito é capaz de levar a um refinamento do mito (a uma versão que seja mais responsável aos critérios exteriores à sua própria lógica de apelo e identificação direta para alívio terapêutico) e uma situação em que a negação de um mito leva a uma reatividade que fanatiza o mito negado aos seus defensores, ou que abra um vácuo de demanda a ser atendido por um novo mito fanático, talvez mais fanático que o anterior.

Exemplifico: há um processo construído às vezes no qual narrativas surgem bem próximas ao irracional e vão se adaptam a critérios mais seculares quando são condicionadas ao longo do tempo e conforme se disseminam. Existem pelo menos dois casos muito interessantes que eu gostaria de mencionar sobre esse processo:

A razão, como conceito em si mesmo, a razão enquanto um conceito filosófico tradicional que em certa escola europeia se entende como partindo dos gregos, tem uma construção histórica em que surge íntima dos processos religiosos destes gregos, como uma ideia primeiramente vinculada inerentemente à divindade que a representava (Atena). Com o tempo, há um divórcio ainda no mundo clássico grego entre a divindade enquanto símbolo religioso e a razão enquanto conceito independente e autônomo, parte da banalidade cotidiana. Mesmo nisso, a leitura do grego do que era o conceito de razão ainda era muito mais religiosa, muito mais cultural e contextualizada nesta espiritualidade pagã de seu povo, do que é a razão como entendida hoje em dia, num mundo após o iluminismo, o renascimento e a Revolução Científica. O tempo, bem como uma recursividade aos próprios critérios, consolidou e intensificou a diferenciação cada vez maior entre a razão enquanto ideia contemporânea e a razão como era entendida naquelas suas raízes e origens vinculadas a tradições religiosas. Por exemplo, hoje é considerado suficientemente racional o ato de deixar uma estátua de Atena na entrada de uma universidade, como símbolo da razão a ser celebrada, mas não seria considerado racional ou aceitável erguer um templo a Atena para sacrificar animais em homenagem e celebração da deusa da razão.

Outro exemplo mais recente é do mito fascista em sua variação alemã. O que evoluiu para se tornar o fascismo europeu era uma narrativa primeiramente religiosa e artística de grupos alemães do século dezoito. A tradição literária do völkisch surgiu como algo que parecia um nacionalismo quase inofensivo no resgate dos folclores de região, mas se tornou uma das raízes de inspiração para o fortalecimento do nacionalismo e orgulho alemão que depois foi usado de maneira verdadeiramente bélica no ufanismo extremado que os nazistas alimentaram. Em outra via, o orgulho nacional também tinha surgido ainda no século dezoito como corrente de grupos ocultistas pagãos, que buscavam retomar a religiosidade antiga do povo de maneira semelhante ao que se tentava fazer com os retornos do folclore, e isso era um movimento popular reacionário de certa maneira até progressista, ao partir como resistência de comunidades tradicionais frente à homogeneização da Revolução Industrial. Um desses grupos ocultistas, de forma mais direta do que todos os outros, é a base do nazismo, ao ter envolvido figuras influentes que decidiram comprar um jornal para veicular versões mais palatáveis e seculares de suas ideias, com esse jornal evoluindo finalmente para um partido político, que viria depois a ser o partido nazista como o conhecemos quando Hitler tomou parte. O nazismo de Hitler, ao adaptar seus discursos à estética de critérios mais seculares, como na linguagem do populismo político, ou na linguagem da pseudociência eugênica, estava só trazendo outro verniz para os discursos que tinham nascido antes como simbólicos, folclóricos e até religiosos. A adaptação era uma escolha pragmática: era entendido que, para terem surgido como discursos religiosos, existia força apelativa nas mensagens para parcela da população alemã, faltando somente uma vulgarização do discurso a partir de poucas modulações aceitáveis para que um projeto em larga escala se formasse.

É importante destacar que esse processo não é tão linear quanto estou apresentando para simplificar a situação. Todo o discurso que surge como mais aberto a critérios gerais é um discurso que pode se apropriar de uma série de influências que sejam menos seculares do que ele mesmo, adaptando todas elas ao aceitável e tentando preservar os apelos.

Mais ainda, é importante destacar que esse processo não acontece sempre e que varia de acordo com contexto de cada momento, com o quão rígidos são os critérios em uma determinada época para permitir maior ou menor encaixe do discurso que surge na esfera institucional. Por exemplo, a adaptação simples que o discurso nazista empregou para parecer científico era suficiente para atender aos mais baixos critérios para circular na sociedade alemã de seu período, mas não seria suficiente para que circulasse hoje em dia.

E finalmente, a razão de termos dito tudo isso (e peço desculpas pela enorme volta que demos, num grande circularidade): frente às pressões e critérios específicos de um período, é possível considerar que todas as narrativas que circulam, até mesmo aquelas que parecem mais críticas aos mitos, sejam na verdade mitos tentando se adaptar a uma forte pressão evolutiva dos critérios seculares. Nesta leitura dos fenômenos, algo como o mito anti-mítico, ou o mito de individuação, surgem não como agentes de libertação das mitologias, mas como uma afirmação final e impositiva dos poderes narrativos nas suas situações de mais profunda crise e maior elasticidade. Se o que é necessário para um mito ser ainda convincente for a deformação absoluta de suas características em algo tão ímpar quanto um mito anti-mítico, faz sentido que o mito se adapte a estas características para garantir sua sobrevivência e circulação naquela subcultura. Mesmo nos mais estéreis dos ambientes, com os mais rigorosos dos critérios, é esta pressão evolutiva dos discursos que pode permitir que alguns poucos mitos, profundamente adaptados, ainda circulem.

Com perdão para a metáfora boba, nesse sentido evolutivo a estranheza de um mito anti-mítico poderia ser vista como análoga à estranheza de animais no mar das grandes profundezas. Como é a pressão evolutiva por condições pouco favoráveis que deforma a vida marinha para estar presente nestas condições alienígenas às nossas (daí a estranheza na comparação de nossas adaptações), também um mito em condições alienígenas ao senso comum pode ser capaz de se adaptar e deformar para ainda sobreviver frente às condições mais específicas em que se encontre.

Nesse sentido a autofagia mítica, como proposta pelos mitos anti-míticos, deixa de ser uma ferramenta que viabiliza a libertação dos mitos e que, pelo contrário, serve como pressão evolutiva para adaptar a existência de mitos em cenários cada vez mais surpreendentes. É como se, na promessa de um antibiótico mítico, o que se produzissem nos mitos anti-míticos fosse o equivalente narrativo das superbactérias, capazes de sobreviver a tudo, impossíveis de se combater satisfatoriamente por sua resistência, ainda de nicho porque o resto do mundo ainda não está em condições desfavoráveis semelhantes para impulsionar sua proliferação, mas com potencial para se disseminar sempre que as condições dos seus arredores se deteriorarem. Se for verdade (e como vimos, é questionável) que o mundo está se tornando mais secular, isso envolve uma pressão evolutiva mais constante às narrativas, com critérios cada vez mais exigentes, o que vai desfavorecer narrativas ingênuas do presente e favorecer narrativas mais resistentes e preparadas para lidar com essas exigências maiores, como é o caso nos mitos anti-míticos.

Existe uma muito interessante investigação de caso desses processos que estamos explorando na primeira parte da Dialética do Esclarecimento, de Adorno, em que se parte justamente do esclarecimento ou razão, como ideias dos impérios ocidentais, e se acompanha como o desenvolvimento desta ideia ao longo dos séculos tornou o mundo um lugar mais árido e inviabilizado para sua concorrência. É quase como um desmatamento simbólico, em que o imperialismo torna as paisagens mentais de culturas de todo o mundo mais áridas e entregues exclusivamente à sua monocultura, e ao mesmo tempo este mesmo processo é capaz de refinar a si mesmo, com uma constante autofagia de suas características, que serve para torná-lo cada vez mais eficiente, como no crescimento e na variação biológica de uma praga, ou de uma epidemia.

Com tudo isso, finalmente, não só nos mitos anti-míticos, não só nos processos de estabelecimento de critérios, mas até mesmo na própria desidentificação enquanto prática, bem como na individuação enquanto processo, é possível inverter toda a questão que apresentamos até aqui. Com isso, podemos refletir se talvez a desidentificação e a individuação não seja, ao invés de fins em si mesmas, na verdade partes fundamentais, intrínsecas, de uma pressão para a criação de mitos mais eficientes.

Se for esse o caso, não há esperança de uma superação real das mitologias, somente uma batalha constante em que os discursos frequentemente se adaptam para refinar seu convencimento. Para os processos civilizatórios, tanto importa se for esse o caso: talvez seja até melhor porque, como vimos, são os mitos que viabilizam a estruturação social. Esta possibilidade garantiria que mitos sempre estarão em situação de existência e disseminação, não importando o quanto, diante das adaptações às quais se sujeitarão, pareçam estranhos para a interpretação estética e anacrônica de uma determinada pessoa que observe suas transformações.

Como fiz das outras vezes, vou deixar aqui meus vieses e opiniões: eu, enquanto indivíduo que pensa sobre tudo isso, acredito que sim, exista a possibilidade de desidentificação para além da pressão por mitos mais convincentes. Por isso, eu sou simpático aos mitos de individuação e mitos anti-míticos. Mas estou perfeitamente ciente de que esta minha leitura pode ser também mítica, distorcida pelos exatos processos que estou comentando, e acho que até mesmo esta autoconsciência crítica é um aspecto importante quando nos deparamos com dilemas desse tipo.

Mesmo se puder existir às vezes como algo em si, para além dos mitos que falam dela, a exaltação a este lugar desidentificado ainda assim me parece uma medida de desespero para cooptar de volta aos mecanismos estruturados de linguagem aqueles resistentes demais para as “substâncias/pandemias míticas” mais leves, justamente por uma questão de resistência mediante superdosagem.

É importante refletir sobre isso, sobre o processo dialético no qual a desidentificação nunca vem sozinha. Como contraposto compensatório, a identificação também se reformula em variações mais potentes, mais profundas, mais eficientes.

Por exemplo, a Internet como foi idealizada nos anos 2000, enquanto potencialidade para a caótica liberdade, podia parecer narrativamente coerente, embora fosse profundamente mítica, ao menos até a segunda metade da década de 2010, quando a suposta ferramenta de libertação foi de maneira bastante satisfatória convertida em um panóptico de controle, a partir da persuasão algorítmica e da construção dos “condomínios digitais” que as redes sociais representam. É difícil hoje em dia garantir se a Internet se trata de uma ferramenta que incentiva o caos ou se incentiva a ordem mais sutil e repressiva de todas, que registra cada dado íntimo de humanos desde a infância, impossibilitando qualquer potencial de libertação. Esta Internet ordenada, de certa maneira, representa uma nova droga mais poderosa para desafiar uma nova geração mais resistente.

Conforme a resistência da identidade às projeções se acentua (por conta da superdosagem em narrativas artificiais que viemos desenvolvendo nos últimos séculos), as projeções precisam se fortalecer e se apresentar novamente em novas variações mais coerentes e convincentes capazes de conquistar nossa identificação novamente — isso vale para novos discursos e também até mesmo para a pressão por novas tecnologias, com as novas tecnologias de comunicação representando um exemplo muito interessante de como a evolução da dominação discursiva perpassa uma crescente demanda por controles mais eficientes frente a uma maior pressão de libertação por parte dos públicos.

Com isso, terminamos essa longuíssima parte desse ensaio e posso finalmente partir para as notas de fechamento.

Mal acredito que estou tão perto de terminar esse livro.

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Rodrigo Goldacker
Rodrigo Goldacker

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