Ensaio das expectativas míticas 02

SEGUNDA PARTE

Rodrigo Goldacker
166 min readSep 10, 2023

Capítulo 09: Dicionários, glossários e reflexos

É um pouco com alívio que começo a segunda parte desse ensaio. Sinto que a parte mais difícil era mesmo a primeira, tanto porque era o momento em que eu precisava ser mais organizado e linear nos pensamentos, coisas que raramente sou muito, quanto porque era um pouco burocrático estabelecer tudo que precisava ser estabelecido.

Gostaria de começar essa segunda parte, portanto, com algumas reflexões e satisfações sobre o que falamos até aqui. Depois, vou dar algumas explicações do que vamos falar daqui pra frente.

A primeira parte desse ensaio, tudo que você leu até aqui, nada mais é do que um gigantesco glossário. Eu precisava apresentar os termos da maneira que os entendo em minha particular terminologia, como esses termos estão relacionados da maneira que os relaciono nas estruturas gerais e nas de interações e processos entre eles, para poder aprofundar a discussão daqui para frente. Assim, nas próximas partes quem ler esse texto saberá que quando digo algo como “eu”, “identidade”, “Eu”, “Outro” ou “mito”, estou falando esses termos no sentido mais restrito possível ao que apresentei como significado para cada um desses conceitos na primeira parte do ensaio.

Sem essa apresentação inicial minuciosa, seria simplesmente impossível seguirmos daqui para frente. Para todos os termos que usei na primeira parte do texto, existem centenas de outras possibilidades de leitura. O termo “mito” é talvez o mais simbólico dessa polissemia. E como todos os termos que estou usando são relativamente originais ou bastante adaptados, era também preciso demarcar essa minha criação/adaptação já que ninguém poderia adivinhá-la sozinho.

Acho que o termo “compensação” é ótimo para explicar melhor esse problema. Embora minha leitura seja fortemente influenciada por Jung, o que chamei aqui de compensação é um processo um pouco mais sutil e que aparece mais pelas entrelinhas na obra junguiana, enquanto a compensação para ele é mais percebida em casos de bloqueios reativos ao Outro como forma de proteger determinadas identificações.

Para usar de um caso bem ilustrativo, a compensação de Jung é exemplificada no ódio de um homofóbico aos homossexuais que pode ser compensação exagerada por recalque de alguma tendência homossexual enrustida. Nesse caso, já que a identificação com a homossexualidade é percebida como uma ameaçada e um perigo à construção do Eu, esse elemento deve ficar relegado ao Outro a todo custo, sendo portanto percebido como algo abjeto. A raiva exagerada da homofobia serviria como comportamento compensatório que mantém a rígida diferenciação Eu/Outro, afastando o Eu heterossexual homofóbico de qualquer hipótese de individuação, ou relativização que fosse, da condição do homossexual como um Outro absoluto, ao qual é negada qualquer empatia, sendo negada também até mesmo a associação a características mais básicas às quais o homofóbico se identifica, como a de ser humano.

Esse é, de fato, um caso de compensação; mas gosto de pensar na compensação como qualquer ato de contato com o Outro que provoque uma mudança em relação ao que era o eu antes ignorado deste Outro com quem passa a interagir. Tanto no caso em que há resistência e nojo, como para o homofóbico, quanto naquele caso em que há uma abertura para o novo e diferente e uma quebra da identificação anterior.

Nessa minha leitura mais abrangente ainda é compensatória a homofobia, mas seria compensatória também a experimentação com a homossexualidade por parte de um homem que até então se considerava heterossexual. Em ambos os casos, há um conteúdo que era antes relegado ao Outro, que é percebido e que gera alguma influência ou apelo, e que exige uma nova ação: seja enrijecer a identificação e exagerar a ojeriza ao Outro, no caso do homofóbico, seja desconstruir ou relativizar a identificação e reduzir o distanciamento ao Outro, no caso do homem que passa a investigar melhor sua sexualidade.

A diferença entre essas leituras das compensações é algo sutil e enquanto os casos compensatórios de resistência e nojo são muitíssimo bem descritos por Jung, os casos de aproximação não são adicionados na mesma menção à ideia de algo compensatório, mesmo que a dinâmica da individuação já considere que esses casos necessariamente precisam existir na estrutura que Jung propôs para que a individuação funcione. Acredito que talvez, enquanto psicólogo, interessasse mais a Jung descrever os casos que achava mais problemáticos dos confrontos entre eu e Outro, daí essa ênfase às compensações que envolvem repulsa.

Como esse é um detalhe pequeno, mas ainda existente, eu não poderia dizer simplesmente que a ideia de compensação que trabalho nesse texto é exatamente igual àquela usada por Jung: não é, não só por isso que acabei de mencionar, mas também porque a estrutura em que insiro a compensação é diferente e as interações da compensação com outros elementos, como a identidade, também são diferentes. São diferenças pequenas, muitas vezes, adaptações apenas das minúcias em certas situações, mas são, ainda assim, outros significados.

E se esse é só um dos casos, isso quer dizer que para quase todas as palavras que usei, mesmo quando expressei uma influência maior de algum autor ou alguma ideia, fiz sempre essas pequenas “reformas”. O que aqui chamo de grande Mito do Outro empresta muito do que Jung chama de “Sombra”, embora o conceito dele seja ainda muito útil e de certa forma não conteste e até mesmo sirva ainda de complemento ao que apresentei aqui. A Sombra de Jung é quase o Anticristo do Outro ao Cristo do Eu, enquanto meu Outro é mais abrangente e menos personificável, porque optei por apresentá-lo como parte de uma leitura mais generalista, como um conjunto universo das associações ao Outro com a qual não há identificação.

Foi porque não queria povoar a parte um com estudos comparativos como estou fazendo nesses últimos parágrafos, aprofundando tudo que mantive e tudo que mudei, que decidi que a primeira parte não ficaria se justificando ou dialogando nas citações mais minuciosas e formais às minhas referências, inclusive porque isso tornaria o texto menos acessível para quem não estivesse em contato com esses outros autores.

Em um sentido mais geral, esse “aspecto de glossário” de todo texto até aqui é um pouco interessante de ser analisado.

Um glossário subentende que os termos como estão sendo apresentados podem ser desconhecidos para o leitor, ou podem ter naquele texto uma leitura específica escolhida pelo autor que difere de outras interpretações possíveis dos mesmos termos. Nesse sentido, criar um glossário subentende algum nível de conhecimento projetado (e não invoco a ideia de “projeção” aqui arbitrariamente) a respeito de quais são as leituras sociais do “senso comum” para determinados termos, bem como subentende algum leitor, considerado como público-alvo para a escrita, que talvez não esteja familiarizado com o significado escolhido.

No meu caso com esse ensaio, era um pouco óbvia a necessidade de um glossário minucioso para os termos e seus significados. Primeiro porque estou absolutamente ciente de que, independente de qual é a leitura do senso comum para uma palavra como “identidade”, essa leitura certamente não é a mesma que apresento aqui. Em segundo lugar, porque a ideia que apresento aqui é suficientemente minha, mesmo quando influenciada por outras já bastante consolidadas, para que eu não possa simplesmente presumir um público-alvo informado que não precise de introduções.

Se fosse o caso deste texto seguir fiel e simplesmente a estrutura de Jung, eu poderia presumir com um alto grau de razoabilidade que qualquer conhecedor de Jung já saberia de partida os conceitos que eu utilizaria. Nesse caso, um glossário não seria necessário para que me fizesse entender por este público.

O caso que tenho, em que não posso simplesmente presumir que algum conhecimento prévio é suficiente para que meu leitor vá entender os significados específicos que estou dando para os termos que uso, é paradoxalmente uma complicação burocrática ao mesmo tempo que é uma oportunidade de tornar esse texto mais acessível. É evidente para mim que alguém que tenha contato com qualquer um dos autores até agora mencionados vai conseguir notar paralelos, semelhanças, influências e empréstimos de minha parte. Mas para um absoluto leigo, a leitura no nível mais fundamental não está prejudicada: não estou exigindo conhecimento prévio nenhum para a leitura, já que nenhum conhecimento prévio criou associações exatamente como as que estou utilizando aqui.

Ainda mais, é divertido considerar que, para cada uma das poucas palavras às quais que escolhi dedicar a primeira metade desse ensaio inteiro como glossário, existem centenas de outras palavras que não acreditei que eram necessárias de explicar porque subentendi que a leitura que meu público terá delas é mais ou menos a mesma que a minha. Essa leitura de consenso social é muito bem simbolizada pelo dicionário que, para termos que não são controversos, é uma espécie de ponto pacífico, ao menos superficialmente.

Como o mais bobo dos exemplos, não preciso criar uma longuíssima seção desse ensaio explicando o que a palavra “não” significa. Estou assumindo que todos os meus leitores já estão familiarizados com essa palavra e compartilham comigo uma leitura muito semelhante dela.

Mas vale refletir sobre palavras que não são ponto pacífico, palavras para as quais dificilmente nos satisfazemos com o que diz o dicionário.

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As diferentes leituras do que racismo significa

Se voltarmos a um dos exemplos dados, vamos ver como o dicionário do Michaelis explica “racismo”:

[racismo]

SUBSTANTIVO

1 Teoria ou crença que estabelece uma hierarquia entre as raças (etnias).

2 Doutrina que fundamenta o direito de uma raça, vista como pura e superior, de dominar outras.

3 Preconceito exagerado contra pessoas pertencentes a uma raça (etnia) diferente, geralmente considerada inferior.

4 Atitude hostil em relação a certas categorias de indivíduos.

Eu aposto que, seja você quem for, essas quatro definições não te satisfazem absolutamente para explicar tudo que há para se dizer sobre o significado de racismo. Para começar, são definições que não diferenciam bem o racismo enquanto ato do indivíduo, como aquele praticado por parte de uma pessoa específica que ofende outra em um condomínio devido ao ódio contra uma cor de pele, daquele racismo enquanto consequência sistêmica que, por exemplo, dificulta o acesso de certa etnias a certos espaços e que influencia o comportamento de todo mundo de uma maneira ou de outra.

Essa diferença entre “racismo do indivíduo” e “racismo estrutural” é um ponto que costuma passar um pouco despercebido nas discussões sobre o fenômeno do racismo. Quando alguém diz algo como “eu sou branco e sofri racismo” e é retrucado com algo como “não existe racismo contra brancos”, o que talvez seja um dos exemplos mais clássicos de argumentação repetida em centenas de seções de comentários de qualquer rede social, o conflito está se dando justamente porque o significado de racismo para essas duas pessoas é bastante diferente.

A primeira dessas pessoas, o branco que diz que sofreu racismo, talvez esteja mencionando alguma experiência que realmente pode ter sofrido em algum momento da sua vida. Embora seja improvável, é ainda assim possível imaginar que algum menino negro do Ensino Fundamental tenha de fato ofendido um menino branco da sua turma. Fica mais fácil ainda se a gente imaginar uma escola predominante de negros, em que por qualquer motivo existisse um único aluno branco. É um cenário hipotético e relativamente improvável no Brasil, mas possível. Certamente existem pessoas brancas que já foram ofendidas por sua cor de pele por pessoas negras em algum momento. Se sua definição de racismo depende exclusivamente do que se entende por “racismo do indivíduo”, esse branco poderia de fato dizer que sofreu racismo de acordo com a definição e os critérios de racismo que está adotando. Consequentemente, poderia ainda dizer que segundo seus critérios existe um racismo contra brancos. Essa pessoa poderia até mesmo citar a definição do dicionário Michaelis, destacando que nada na definição exclui a possibilidade de brancos sofrerem racismo, ou que nada na definição torna racismo algo exclusivamente relacionado aos negros.

Mas para quem discorda dessa leitura, o “racismo do indivíduo” significa muito pouco diante da leitura de racismo como “racismo estrutural”, ou seja, de um racismo sistêmico que não está interessado em exceções ou em casos particulares e anedóticos de uma única pessoa, mas que está interessado no efeito aos grupos e nos prejuízos a determinadas coletividades.

Argumentando sobre esse ponto de vista para explicar porque não acredita que exista racismo contra brancos, essa segunda pessoa poderia dizer, com razão, que a sociedade brasileira nunca instituiu medidas para o extermínio, exploração, exclusão e prejuízo dos brancos da mesma maneira que fez com os negros, que não existe uma cultura de racismo aos brancos consolidada no país como legado cultural de um período escravagista e colonial, que brancos costumam ter acesso a melhores estruturas de educação, saúde, empregos, etc. Essa pessoa estaria portanto trabalhando uma outra leitura do que racismo significa, com critérios muito diferentes.

Uma discussão com mais nuances entre essas duas pessoas, que estivesse mais consciente sobre a polissemia do termo “racismo” e do que racismo significa para cada um dos envolvidos, seria uma discussão capaz de mencionar coisas como:

  1. as possibilidades de que a pessoa focando no racismo do indivíduo subestime, não conheça sobre, ou simplesmente não acredite na existência ou relevância de um racismo estrutural;
  2. as possibilidades de que a pessoa focando no racismo sistêmico subestime, não conheça sobre, ou simplesmente não acredite na existência ou relevância de um racismo individual;

A discussão, portanto, não é sobre “existir racismo contra brancos ou não”, pelo menos não no sentido vago do termo “racismo” que essas duas pessoas leem de maneiras muito diferentes. É porque racismo é um termo em disputa, com significados que não estão em situação de consenso ainda, que ruídos vão aparecer sempre que assumirmos que um leitor ou interlocutor necessariamente conhece nossa leitura do que significa racismo e, mesmo se conhecer, que necessariamente concorde com nossa interpretação. A discussão nesse caso é mais sobre a existência ou não de racismo individual e de racismo estrutural e quais são as implicações de uma ou outra leitura da ideia de racismo.

Toda conversa sobre racismo precisa considerar, antes de tudo, uma apresentação pelas partes envolvidas daquilo que entendem como racismo para daí sim ser discutido todo resto. Sem que este branco conheça pelo menos o significado de racismo estrutural, não é possível convencê-lo de que não existe racismo contra brancos, ou pelo menos de que a interpretação de que não exista racismo contra brancos é válida de acordo com um significado específico de racismo, significado este que para esse branco possa pelo menos ser compreensível (mesmo que ele siga discordando dessa interpretação).

Se numa discussão for desmentido de sua afirmação de que sofreu racismo, mas se ainda não compreender que a pessoa com quem está falando na verdade se refere ao racismo sistêmico, esse branco focado no racismo do indivíduo vai insistir no seu exemplo de caso com algo como “eu sofri racismo sim, na segunda série do Fundamental o Fernando que era negro me chamava de palmito, me batia, roubava meu lanche e beijou minha namorada…” e se enveredar por aí.

Essa conversa não vai adiantar de nada: será, se muito, um embate de confiança focado na memória da infância do branco na questão de ele estar falando a verdade ou não sobre os comportamentos do Fernando, ou de qualquer outro exemplo individual e anedótico de situações onde possa ter ou não sofrido algo que entende como racismo. Essa leitura anedótica é de certa forma superficial e, digo mais, irrelevante para a discussão mais geral sobre esses exemplos individuais serem ou não suficientes para um critério de racismo estrutural, sejam esses exemplos verídicos ou não.

Nesse sentido, vale mencionar que eu trapaceei lá atrás quando aproximei Joãozinho de Hitler ao dizer que “ambos eram racistas” no processo de individuação que Joãozinho estava passando. O racismo de Hitler, embora também sistêmico, tinha mais desse elemento do racismo individual e proposital, enquanto o racismo de Joãozinho era mais um efeito de sua sociedade, um subproduto sistêmico que assumi que não era proposital e muitas vezes nem mesmo consciente por parte de Joãozinho.

Se Hitler recebesse um aviso de que algo que fez era racista e se estivesse convencido de que o aviso está correto, isso seria visto por ele como um elogio e um incentivo para fazer aquilo ainda mais. Se Joãzinho recebesse um aviso de que algo que fez era racista e estivesse convencido de que o aviso está correto, Joãozinho se sentiria arrependido, culpado e tentaria mudar seu comportamento. Em um certo sentido de racismo, ambos são racistas: ou seja, ambos possuem potencial para determinadas ações racistas que são consequentes de uma série de fatores estruturais, especialmente os culturais e sociais. Mas em outro sentido, Hitler é “mais racista” ou racista de um jeito diferente daquele de Joãozinho. Tudo isso, relembrando, dependendo ainda de quais são os critérios, associações e significados considerados nesse caso para a ideia de racismo. Para quem não acredita em racismo estrutural, Hitler era racista e pronto porque era proposital e conscientemente racista, enquanto Joãozinho não é racista nunca se não o faz consciente e propositalmente.

É importante abrir essa segunda parte do ensaio com essa reflexão porque as tensões entre significados sociais e significados autogeridos é parte fundamental do processo de criação da identidade em sua interação com o mundo. É também importante considerar ainda que, nesse sentido, o que é projetado como um entendimento do significado social é sempre algo ainda enviesado, uma interpretação possível entre muitas do que é lido sobre um termo em situação de senso comum.

O que importa é que todo mundo pode ter uma leitura sobre o que entende como o significado mais aceito de alguma palavra ou conceito (mesmo se esta leitura estiver equivocada) e pode concordar ou não com essa interpretação e ter ou não a vontade de propor uma interpretação própria e inédita.

Eu conhecia o significado mais aceito para o termo de identidade como algo vago e superficial, mais ou menos no sentido do dicionário, aqui como explicado pelo dicionário do Bing:

IDENTIDADE

SUBSTANTIVO

1. Qualidade do que é idêntico

2. conjunto de características que distinguem uma pessoa ou uma coisa e por meio das quais é possível individualizá-lo

3. ÁLGEBRA
igualdade entre as expressões, que se verifica para todos os possíveis valores atribuídos às variáveis que elas contêm

Mas nenhuma dessas definições mais básicas para mim era suficiente e preferi me apropriar da palavra para um significado mais ou menos inédito meu, esse que discutimos até agora em que a identidade é um agente que participa de uma estrutura maior, agente responsável por criar identificações ao eu com elementos externos e criar como produto desse processo os amálgamas associativos, com destaque para o grande mito do Eu e o grande mito do Outro. Não só desconsiderei a superficialidade do dicionário nesse caso, mas desconsiderei ainda uma centena de outras leituras aprofundadas e mais específicas como, só para citar exemplos, a dos estudos sobre representatividade e a das lutas identitárias dos movimentos progressistas.

Em certos casos, até minhas próprias definições encontraram alguns limites. Precisei diferenciar precariedade percebida de precariedade total como algo que, até então, era uma ideia mais de entrelinhas na minha mente e que não era prioridade até precisar organizar as ideias para apresentá-las nesse ensaio. Mesmo conceitos autogeridos evoluem, desdobram-se e vão se especificando gradualmente.

Agora que já tenho essas definições minhas apresentadas, posso seguir para um aprofundamento nos capítulos daqui para frente trazendo ideias mais densas, complicando mais as questões, criticando inclusive os significados que apresentei até aqui em determinados casos. Fica mais fácil nessa segunda metade aproveitar de certa liberdade na escrita com você, leitor já “formado” que chegou até aqui e com quem tenho agora a possibilidade de desdobrar meus argumentos e reflexões literalmente em meus próprios termos. É por isso também que para mim o resto desse ensaio é mais divertido de produzir.

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Sobre frutos venenosos e guerras inofensivas: limitações das leituras sociais

Acho que a burocracia toda até aqui já demonstra também uma desvantagem bem óbvia de assumir significados pouco convencionais: ter que se explicar sobre os significados que está usando e quais são os motivos para escolher esses significados e não outros. É mais trabalhoso, mais complicado. Se todos nós fôssemos refletir profundamente sobre cada palavra que usamos e criar um significado autogerido e pouco convencional para cada uma delas, um texto que escrevêssemos seria simplesmente incompreensível.

Os significados sociais, por sua vez, também possuem vantagens e desvantagens.

Uma das vantagens mais evidentes é ajudar a construir consenso sem a experimentação e a reflexão individual. Um exemplo divertido sobre isso: se eu moro numa floresta e meu pai me diz que aquela frutinha ali é “a frutinha azul que mata quem comer dela”, esse é um significado social ao qual é razoável que eu não conteste. Se alguém já provou a frutinha e morreu para que ela recebesse essa reputação, vale a pena arriscar uma experiência direta, original e autêntica ingerindo esse fruto só para testar um novo significado criativo e um novo critério?

Você provavelmente respondeu que não, não vale o risco, mas considere que talvez a informação de que a fruta é letal seja incorreta. Talvez quem morreu ao comer a fruta tivesse uma alergia rara a alguma substância que outros não possuam. Talvez a pessoa que comeu a frutinha tenha morrido engasgada, ou talvez tenha morrido até de qualquer outra coisa que não era necessariamente consequente da frutinha, mas a frutinha acabou “culpada” por ter estado próxima da morte o suficiente para desenhar e supor esse padrão. É tênue a linha a separar a superstição do conhecimento, principalmente quando o conhecimento não envolve o método científico, e nesse caso estamos supondo que ninguém envolvido tivesse um laboratório para analisar as substâncias presentes no fruto.

Nesse caso, talvez eu comesse o fruto por teimosia e pudesse criar um novo significado autogerido para aquilo, dizendo que é “a frutinha azul que mata quase todo mundo que come dela, menos eu”. E se mais pessoas embarcassem em testar também e não morressem, aos poucos se desconstruiria a ideia da mortalidade daquele fruto.

Isso vale para bastante coisa. Se lemos um livro ou vemos um filme sobre guerra, recebemos uma leitura externa sobre essas experiências e podemos ficar razoavelmente satisfeitos ao entender essa experiência sob os olhos e vieses de outros, portanto sob um significado mais social daquilo que é a experiência de guerra, em comparação pelo menos ao que é ir ao front para definirmos por nós mesmos o que guerra significaria subjetivamente para nós.

Mas sem ir à guerra de fato, não fazemos ideia do que essa experiência significaria realmente em nossa leitura direta da experiência: para alguns, estar lá poderia ser catártico e libertador, enquanto para outros seria traumático e aterrorizante. Algumas guerras geram euforia e senso de comunidade e otimismo, enquanto outras são cínicas e marcadas por pessimismo. Não existem duas guerras iguais, nem duas pessoas iguais envolvidas em guerras, e portanto é um pouco frágil toda projeção que podemos construir sobre o que significa a ideia de guerra a partir da experiência terceira, “de dicionário”.

É por isso que, parando pra pensar, faz certo sentido que todo mundo reflita e tenha seu próprio significado para cada coisa de acordo com suas próprias experiências. Em certo sentido, todos nós temos sim um “glossário particular” de cada termo que conhecemos, marcado pelas nossas experiências e vieses que carregam nossa leitura de mundo. Mas tentar trabalhar a partir desse ponto de vista para estabelecer diálogos seria absolutamente inviável. Assumimos algum ponto de senso comum como base, mesmo que essa base seja um pouco uma ilusão, para facilitar nossa vida um pouquinho. Seria mais complicado conversar com outras pessoas se precisássemos antes apresentar uma lista detalhada de todas as palavras que conhecemos, com o significado particular que damos a cada uma dessas palavras que pode diferir de algum significado mais social.

Tudo isso dito, acho que vale a pena refinar um pouco mais essa reflexão, lembrando que palavras são se muito exemplos de leis que só se aplicam de forma aproximada aos seus casos.

Seguindo no exemplo da ideia “guerra”: se assumimos que guerra é um conceito que obedece a certos critérios que devem ser percebidos em seus casos para que algum fenômeno seja categorizado como “guerra”, começamos a refletir sobre o que exatamente está inserido nessa ideia de guerra ou não.

Por exemplo, se a Guerra do Vietnã foi tão diferente da Segunda Guerra Mundial, quais são as características que ambas carregam que ainda podem servir para garantir que ambos os eventos são igualmente guerras? Se partirmos por exemplo da ideia de que ambos são conflitos entre nações e que esse é um dos critérios a ser obedecido para definir uma guerra, isso não só desconsideraria todos os conflitos anteriores à ideia de nação existir como existe hoje, como nas guerras entre reinos medievais ou as guerras tribais, como desconsideraria fenômenos contemporâneos como guerras civis. No caso do Brasil, por exemplo, há alguns anos existia um movimento político tentando esticar as fronteiras do que é uma guerra para considerar se o que acontece nos conflitos entre traficantes uns contra os outros, bem como entre traficantes e milicianos, e ainda entre todos esses agentes e o Estado, não é algo que pode ser definido como uma guerra. Há outra leitura, essa com a qual concordo mais, que considera se as ações hostis do governo brasileiro e a tolerância com massacres indígenas até hoje significa que ainda o governo do Brasil, instituição principalmente fundada e influenciada pelos interesses do capital e decorrentes dos colonos europeus, talvez esteja numa guerra velada, desproporcional e não declarada contra os povos brasileiros originários. Será que podemos considerar portanto que guerra é qualquer conflito que envolva violência física? Mas será que esticar a definição esse tanto não significa dizer que uma briga de balada é uma guerra, e que uma guerra narrativa ou uma guerra comercial não são guerras?

Estou trazendo todos esses exemplos sobre um termo muitíssimo disputado para demonstrar como é difícil fazer uma lei que tenha critérios claros para associar diferentes eventos numa mesma nuvem associativa, ou seja, criar e sustentar um conceito em situação semiótica de lei e sua respectiva palavra. Cada fenômeno é único por si e a realidade não se molda de acordo com os critérios do que entendemos ou deixamos de entender como guerras: primeiro as coisas acontecem e depois paramos para pensar como devemos nomeá-las e se elas são próximas o suficiente de outras coisas que conhecemos para estabelecer algum padrão.

De certa forma, toda palavra é uma generalização, o que por si só carrega equívoco, já que todo fenômeno é único. Se é impossível que existam duas guerras idênticas, existe um limite de até onde a generalização pode ser aplicada entre dois fenômenos que estamos nomeando como duas guerras para assemelhá-los. Se cada fenômeno é sempre único, se cada coisa é exclusivamente cada coisa, toda associação é limitada a uma leitura específica e já simplificativa dos casos específicos de ambas as coisas associadas. Não só isso, é discutível toda associação, como convenção aproximada e até certo ponto um pouco arbitrária. Num sentido estritamente lógico de minúcias, no fim do dia a nomeação é sempre um arredondamento, uma desconsideração do detalhe e uma resignação ao incorreto que “passa” porque é suficientemente semelhante e convincente.

Explicar isso é importante para aprofundar o motivo do eu ser essa entidade “indefinível” que discutimos durante a primeira parte do ensaio. O eu não é indefinível por uma razão etérea, de espiritualidade intensa, mas porque na verdade, essencialmente, todo fenômeno puro e singular é indefinível e toda palavra para tentar definir qualquer fenômeno, e mais ainda em ajuntados de fenômenos diferentes, é sempre uma aproximação. Isso vale para o eu, tanto quanto vale para guerras: primeiro as coisas acontecem, seja o eu ou a guerra, e só depois passamos a tentar observar padrões e nomear esses acontecimentos de acordo com alguma lei que conhecemos, alguma generalização que, se for possível de aplicar suficientemente para o caso, ainda é sempre só aproximada.

Essa não é uma diferença ente o eu, como algo além das palavras, e a realidade como um todo; é uma diferença entre a realidade como um todo e as palavras que tentamos usar para explicar essa realidade de uma maneira minimamente satisfatória. A realidade é sempre mais próxima do glossário, dos sentidos muito restritos e nichados para cada fenômeno que demonstra suas particularidades, do que próxima do dicionário, esse mundo do ponto pacífico superficial e convencional que abarca mais casos numa lei mais vaga.

O processo que demarcamos sobre a identidade, em que o eu enquanto um fenômeno primeiro acontece e depois acaba associado a palavras que tentam se muito aproximar-se desse acontecimento, é semelhante ao processo em que compreendemos qualquer outra coisa. A única diferença no caso da identidade é que esse é um exemplo em que a narrativa que se faz a partir disso envolve identificações. De todas as narrativas que usamos para tentar explicar aproximadamente as coisas, a única narrativa com a qual tentamos nos identificar, a única sobre a qual tentamos nos convencer de que é mais do que uma aproximação, é a narrativa do grande mito do Eu.

É mais fácil discutir que o termo “guerra” é uma convenção generalizante que tentamos aplicar a caso diferentes de fenômenos que talvez não se encaixem satisfatoriamente nessa convenção. Essa é uma discussão que, como um tecnicismo da linguagem, não agride o sentido de nossa narrativa particular. É outra coisa, a partir de uma perspectiva muito mais pessoal, discutir o mesmo processo e o mesmo tecnicismo da linguagem quando o fenômeno observado que se tenta descrever é o eu, com as palavras generalizantes que a identidade tenta conectar a esse eu. É comum que pessoas sintam que, ao criticarmos as palavras do mito do Eu associadas ao eu, a crítica esteja sendo feita de fato ao eu. Ou, numa metáfora boba, toma-se a crítica ao reflexo no espelho como uma crítica do objeto refletido.

No casso da guerra, o máximo que pode acontecer, se desconstruirmos suficientemente a ideia de guerra, seus critérios, sua elasticidade e o quanto é apropriada para os casos particulares, é percebermos que essa palavra é, nas suas profundezas, de certa maneira uma convenção oca, uma ferramenta da utilidade, mais do que uma ferramenta da verdade. Se for o casso, podemos nos sentir um pouco mais perdidos sobre esses fenômenos, que não são suficientemente explicados pela palavra “guerra” sozinha porque são complexos demais para que essa generalização apenas os comporte. Mas estar perdido sobre o que são ou deixam de ser guerras, sobre fenômenos específicos como os conflitos entre milícias e traficantes no Rio de Janeiro serem guerras ou não, é uma discussão mais distante e menos incômoda. Parece uma discussão técnica que cabe num artigo acadêmico.

No outro caso, quando desconstruímos suficientemente a ideia do mito do Eu, seus critérios, sua elasticidade e o quanto é apropriada para o caso particular de quem somos, e percebemos como essa narrativa é, nas suas profundezas, de certa maneira uma convenção oca, uma ferramenta da utilidade mais do que uma ferramenta da verdade, essa discussão parece muito mais etérea e gera muito mais resistência, aparenta ser muito menos técnica e gera até mesmo uma certa ilusão estética de ser algo “espiritual”. É um caso que envolve mais incômodos porque o fenômeno sobre o qual estamos nos sentido perdidos dessa vez é o fenômeno da nossa própria existência, do que somos no sentido mais estrito de sermos uma entidade única à qual as palavras não descrevem bem e são no máximo aproximações. É diferente perceber que as palavras usadas para descrever um fenômeno externo podem ser discutidas e não representam necessariamente esse fenômeno externo como mais do que um retrato, em comparação a perceber que as palavras que usamos para nos descrever seguem sendo retratos tanto quanto.

O máximo que podemos fazer ao perceber dois eventos é compará-los, sem garantia de que esses eventos sejam mais do que similares. Essa percepção de similaridade envolve um grande ruído nas minúcias, já que não se trata de uma reconstrução perfeita. Os dois eventos agrupados sob uma mesma categoria ou definição poderiam ser agrupados de infinitas outras maneiras, com infinitas outras coisas, a partir de critérios diferentes.

Na situação em que ocorre como um evento irreproduzível e exclusivo daquele tempo específico em que aconteceu, tudo é fenômeno único. Por mais úteis que sejam, abstrações de abrangência não são nunca onipotentes e seguem sendo, por mais convincentes que sejam, somente mapas, feitos em escala pela grandeza daquilo que tentam descrever. É fundamental nunca se convencer de que mapas representem a totalidade do terreno, sejam mapas geográficos para lugares reais, sejam mapas míticos narrativos tentando representar a grandeza e totalidade singularíssima do eu.

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A identificação autogerida e a desidentificação do social em Dorian Gray

Uma história é ótima para explicar esse ruído entre o fenômeno e o retrato: o livro O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde. Para quem não conhece, resumidamente: a história fala de um homem muito rico, muito bonito e imortal, um autêntico bon vivant que leva uma vida sofisticada de ócio e de luxos. Mas esse homem possui um retrato de si que funciona mais como um espelho de sua alma, um retrato que envelhece e apodrece com o tempo e como consequência dos atos do protagonista.

Assim, se o Dorian de “carne e osso” é imortal, sempre bonito e jovem, seu retrato durante a história vai se tornando cada vez mais apodrecido, deformado e horroroso. O retrato é mantido em segredo do círculo social do protagonista, como algo que só ele conhece, só ele entende e só a ele aterroriza.

E não preciso de mais do que esse entendimento superficial da sinopse do romance para explorá-lo aqui como uma ótima metáfora.

Em certo sentido, o argumento e o terror do livro estão no entendimento do contraste entre os significados gerais e os significados autogeridos. Dorian sabe que é percebido como o belo jovem imortal, mas ao mesmo tempo entende que se identifica nas suas profundezas como aquilo que o retrato podre representa. O retrato é quase um espelho subjetivo que reflete o interior de Dorian, enquanto a casca agradável segue a mesma, e esse retrato interior é um exemplo poético de significado subjetivo e autogerido.

No fim das contas, Dorian não é exclusivamente nenhuma das duas coisas, nem apenas o bon vivant das aparências e nem apenas o retrato podre de sua paisagem interna, mas uma mistura dessas duas leituras, a depender da perspectiva e contexto. O retrato alcança uma parte de Dorian e, pelas razões metafóricas e mágicas do livro, esse retrato é suficientemente convincente para Dorian, ao ponto de que ele se assombre e acredite que o retrato de fato o representa. Se Dorian não acreditasse no vínculo entre seu ser e a imagem no retrato, se não acreditasse que o retrato é um espelho de algo em si, não existiria nenhum problema em sua vida. A identificação com o homem podre da pintura é o grande conflito dele.

As pessoas ao redor de Dorian pode se apaixonar por sua casca, a superficialidade de sua beleza, de sua juventude e seus bons modos, por sua expansividade e banalidade, mas fazem tudo isso percebendo Dorian em seu “ser social”, sua versão “dicionário” das aparências ao senso comum. Essas pessoas mal podem imaginar que aquilo que para elas é apaixonante se trata, para Dorian, de nada mais do que uma camada de superfície rasa que oculta um interior terrível.

Dorian sofre porque se identifica mais com a podridão do seu retrato do que com sua imagem pública. Enquanto a imagem pública é uma performance, algo divertido e leve, ele não consegue evitar o entendimento de sua interioridade nos termos subjetivos e particulares do retrato. Ninguém mais além de Dorian concordaria com a visão dele mesmo como algo podre e terrível, até porque todos ao seu redor o veem como um imortal belo rapaz e não sabem da existência do retrato. Mas isso não importa: é Dorian quem não se convence dessa visão que emana para os outros porque ele é o único vinculado ao seu significado autogerido de si, à sua narrativa de Eu que não consegue desconsiderar que seu retrato horroroso é vinculado como reflexo de como se sente e com o qual realmente vincula sua identidade.

Vale reforçar algo que já foi mencionado antes: um significado não é mais ou menos verdadeiro necessariamente por ser social ou não. A identificação com os significados é uma ilusão generalizante seja no caso em que estamos construindo esses significados do zero, seja no caso em que estamos aplicando critérios sociais. Para dar um exemplo oposto ao de Dorian, é de se argumentar que alguém que se diga “a pessoa mais inteligente que já viveu” por um critério autogerido está, de certa maneira, iludindo-se. Essa pessoa estaria negando a realidade social para algum ganho emocional interno ao acreditar que é tão inteligente assim, mas sem ter que dar satisfações a ninguém e sem levar a opinião de mais ninguém em conta.

A desconstrução do mito não depende do que é menos ou mais social. Depende do que é mais ou menos incômodo.

O caso de Dorian é de uma desmistificação necessária ao significado autogerido porque esse significado é menos confortável do que o significado social; no caso dele, existe menos conforto emocional e menos alienação à precariedade no mito autogerido, portanto é mais importante nesse caso que Dorian se confronte com esse mito se estiver interessado em gerar alguma compensação, com uma desidentificação e uma posterior individuação de si.

No caso do moço que se acredita gênio a despeito de todas as opiniões do mundo ao redor que são contrárias a isso, o processo é oposto. É mais desconfortável para essa pessoa considerar os significados sociais, que refutam sua identificação como gênio que lhe provê conforto emocional, e portanto se estiver interessado em gerar uma compensação, uma desidentificação e uma posterior indivuação de si, é mais interessante que essa pessoa foque nessas leituras externas para ultrapassar sua atual rigidez mítica que, apesar de trazer conforto, é de certa forma alienante.

É muito divertido perceber como esses diferentes critérios autogeridos e sociais são percebidos pela sociedade como um todo, especialmente nas discussões do presente momento sobre relativismos e desconstruções. O progressismo, por exemplo, tende a priorizar a leitura autogerida nos casos de alívio terapêutico: um exemplo clássico é aquele do padrão de beleza, em que se argumenta que é mais importante desenvolver um conceito autogerido de beleza para construir a própria autoestima do que ficar dependendo das limitações e restrições dos critérios e conceitos de beleza sociais. É um caminho argumentativo bonito e edificante, mas não é sempre que esse critério autogerido faz sentido. Nos casos em que abandonar o critério social é prejudicial para a sociedade, esse mesmo progressismo argumenta que os padrões sociais são mais importantes que as opiniões autogeridas. Isso vale por exemplo para o método científico, para os fatos e para a ciência como um todo, percebidos muito mais como ideias a proteger em seus significados convencionais do que a permitir que cada um adapte como achar melhor para ser conveniente à sua própria autoestima.

Se eu me sinto mal porque me acho feio, argumenta-se que eu devo desconstruir minha ideia de beleza, especialmente se ela for condicionada socialmente, e construir uma ideia de beleza nova que me englobe para que me sinta feliz. Mas se eu me sinto bem porque sinto que sou especial ao acreditar que vacinas são uma conspiração da Nova Ordem Mundial e que sou um dos poucos inteligentes que sabem “da verdade”, argumenta-se que eu devo abandonar essa crença autogerida que me faz bem e privilegiar uma leitura mais social e convencionada sobre vacinas.

Faz sentido: ninguém se prejudica quando alguém muda o conceito de beleza para se sentir melhor, enquanto mudar o conceito de vacinas é muito mais destrutivo socialmente. O importante aqui é perceber como a estrutura por trás é semelhante.

E, de forma ainda mais profunda, a provocação que quero fazer diz respeito à necessidade de se convencer dos significados, sejam os autogeridos ou sociais, para “se sentir melhor”, esse papel terapêutico dos mitos.

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Um exemplo dos caminhos de readequação ou individuação mítica a partir dos critérios de beleza

Insistindo no exemplo da beleza: existem na verdade quatro caminhos para uma pessoa que se sente mal porque se sente feia. Quero detalhar esses quatro caminhos:

  1. O primeiro caminho é desconstruir as ideias que possui atualmente de beleza e de feiura de maneira a construir um novo critério que englobe a pessoa como ela é. Se a pessoa se sente feia porque tem cabelo crespo, por exemplo, é um processo interessante esse de desconstruir a ideia de que cabelo crespo é feio e de passar a entender o cabelo que tem como bonito. Isso pode ser feito de forma autogerida, construindo o novo critério do zero (o que é muito mais difícil e raro), ou ao encontrar uma narrativa social diferente daquela à qual existia identificação anterior.
  2. O segundo caminho é o de não tentar revolucionar os critérios que já possui sobre beleza ou feiura, mas agir para mudar a aparência de forma a se adequar melhor aos critérios já existentes. Esse é o caminho mais comum na maioria dos caos para a maioria das pessoas. Se eu acho que estou feio porque não gosto do meu corte de cabelo, eu mudo para um corte de cabelo que combine mais com meu critério de beleza; se eu acho que estou feio porque me visto mal, eu compro roupas novas que combinem com meu critério de beleza; se eu acho que estou feio porque estou gordo, eu tento emagrecer para me adequar à magreza que está no meu critério de beleza, seja fazendo academia, seja vomitando depois de almoçar. Coloquei propositalmente exemplos menos problemáticos (cortar o cabelo, trocar de roupa) e mais problemáticos (vomitar depois do almoço pra tentar emagrecer) pra mostrar como esses critérios podem ser mais ou menos destrutivos. Vale lembrar que esses critérios aos quais tentamos nos adequar também podem ser autogeridos ou sociais. Se eu acredito que ter o corpo cheio de tatuagens é bonito, mesmo que esse não seja o critério social, faz sentido que eu queira encher meu corpo de tatuagens.
  3. Um terceiro caminho é resignar-se de se sentir bem ou mal por conta da beleza ou falta dela e tentar focar em outras coisas para construir a própria autoestima. É o caminho do “eu sou feio, MAS sou engraçado”, “eu sou feio, MAS sou uma boa pessoa”, “eu sou feio, MAS sou muito inteligente”. Aqui, desconsidera-se também se esses outros critérios são autogeridos ou sociais para inteligência, ser boa pessoa, etc. O que importa é deslocar a necessidade de autoestima e de se sentir bem daquilo em que não se gera uma identificação mítica proveitosa nesse sentido, para aquilo que consegue gerar essa identificação com ganho de autoestima. Se eu me identifico como feio e como inteligente, faz mais sentido que eu tente focar no me identificar como inteligente, quando quiser me sentir bem, do que me focar na minha feiura.
  4. O último caminho é um questionamento da estrutura da autoestima como um todo. É um caminho de questionamentos muito abrangentes e profundos que segue mais ou menos por essa linha aqui: por que eu preciso me identificar como bonito para me sentir bem? Por que minha autoestima precisa depender de me convencer de que sou bonito de alguma maneira? Por que minha autoestima depende de me convencer de que sou outra coisa para além de bonito, para substituir o se sentir bem pela beleza, caso eu não consiga me convencer de que sou bonito? Por que a minha autoestima depende de me convencer de que sou certas coisas, seja esse convencimento para uma característica autogerida ou a partir dos significados sociais?

Só pela descrição, já deve ter dado perceber que esse quarto caminho é um pouco raro porque é muito abstrato e porque é exatamente aquele em que se confrontam os mitos e as identificações diretamente. Optar por essa desconstrução é encerrar um dos potenciais caminhos da identidade na geração de alívio terapêutico às precariedades, ou seja, é confrontar-se com o encerramento de uma fonte de conforto emocional e de geração de autoestima.

Quando vale a pena optar por esse caminho? Depende muito especialmente do quanto você está ou não conseguindo se adequar aos critérios dos mitos que deveriam te gerar autoestima. Se você é uma pessoa vomitando para emagrecer, talvez faça sentido questionar os mitos que estão exigindo que você seja magro para se sentir bem, mesmo se isso envolver questionar a ideia de beleza como um todo como algo que gera autoestima. Esse é um caminho mais drástico, mais profundo e mais abstrato do que aquele em que simplesmente se questiona a associação entre “beleza” e “magreza”, mas é ainda um caminho também possível. Se você não consegue se convencer de que é bonito sem ser magro, talvez valha a pena tentar quebrar a ideia de que você precisa ser bonito para ser feliz.

Por outro lado, se você é uma pessoa que se sente extremamente fragilizada e sem autoestima por conta de um sério complexo de inferioridade, por ter muitas inseguranças e por se sentir muito pouco inteligente, mas que consegue “pelo menos” retirar alguma autoestima do fato de que se sente muito bonito, é meio cruel querer desconstruir sua ideia de beleza, sua identificação com esta ideia e sua autoestima por achar que é alguém bonito. E pode parecer mais poético e aceitável para um leitor progressista essa ideia se a pessoa que estou descrevendo for alguém com um significado de beleza autogerido ou construído em situação de resistência, como alguém que se sente bem por acreditar que é bonito tendo cabelos crespos e pele negra, mas a estrutura vale da mesma maneira para alguém que se sente inseguro e estúpido, mas que se sente bonito no sentido social e mais superficial e normativo possível do significado de beleza, como uma moça que achasse que não é inteligente, mas se sentisse bem por “pelo menos” seguir o padrão de beleza ao ser branca, magra, de olhos verdes vívidos e de rosto simétrico como o das atrizes dos comerciais de perfume.

A discussão das identificações e dos mitos assume um caráter importante de discussão ética quando falamos de autoestima e dos casos particulares de pessoas que talvez precisem mais ou menos de determinadas narrativas que servem para lhes dar ou não conforto. A discussão também envolve os potenciais sociais destrutivos ou não dessas narrativas que dão ou não conforto para as pessoas. E ainda envolve um fator sobre possíveis grupos de poder que retiram benefícios políticos ou econômicos do controle que possuem diante de certas narrativas (vamos falar disso mais para frente).

É um assunto muito complexo em que cada caso é um caso. Pensando sobre isso, mais do que nunca sinto que estou sempre pisando em ovos. Quando eu era mais jovem e pela primeira vez fiquei fascinado e apaixonado por essa ideia de questionar os mitos e tentar quebrar a necessidade de minha identidade de retirar alívio e autoestima deles, eu acreditava veementemente que a desidentificação de mitos e a busca por uma individuação intensa eram sempre as melhores respostas para todas as pessoas. Mas fui amadurecendo e vendo que esse não é o caso para todo mundo e que em muitas situações a desidentificação de mitos pode ser cruel, se determinadas pessoas precisam da autoestima, da segurança contra ansiedades e de forma mais geral do conforto e do propósito que certos mitos e certas identificações entregam.

Em certos casos, questionar os mitos pode ser mesmo um importante passo para abandonar certa rigidez: se eu não me deixo comer um rodízio japonês porque tenho medo de engordar e minha autoestima depende muito da minha ideia de beleza associada à magreza, faz sentido que eu deixe de viver limitando minha vida por essa narrativa que está cerceando meus atos e meu eu.

Mas existe uma negociação em todos esses casos: ganhar mais autonomia abandonando mitos significa deixar de ganhar autoestima quando obedecemos estes mitos. Se eu consigo me manter magro deixando de comer o rodízio e se eu me sinto feliz porque deixei de comer o rodízio, porque esse “não comer o rodízio” teve enquanto ato um propósito que fez eu me convencer mais de que sou bonito e me sinto bem sendo bonito, talvez eu sinta que é mais vantajoso me limitar nos atos para continuar seguindo a receita dos critérios do mito, ao invés de jogar tudo fora.

A negociação nesse caso é sobre colocar coisas na balança: o que me faz mais bem e mais feliz, comer o rodízio porque é gostoso, porque tenho a autonomia e a liberdade de comer, ou não comer para obedecer ao critério do meu mito de beleza?

Essa é uma negociação complexa em todos os casos e que realizamos muitas vezes inconscientemente. Vários dos processos da identidade que discutimos, a respeito das evoluções das identificações míticas em situações que as tornem mais convincentes, consideram esses cálculos para estabelecer a vantagem associada ou não a obedecer determinados mitos.

No sentido dos termos estritamente psicanalíticos (e peço desculpas por trazer isso subitamente em um único parágrafo), é psicótico e pautado em impulso de Id o caso em que obedecemos aos mitos que bem entendemos desconsiderando a realidade e qualquer outra coisa, como no caso de pacientes comuns em qualquer ala psiquiátrica que acreditam ser Jesus Cristo, enquanto é neurótico e superegóico o caso em que insistimos na rigidez de acreditar em algum mito mesmo quando esse mito nos faz mal, como no caso de alguém com complexo de inferioridade que acredita que é a pior pessoa do mundo, ou da pessoa que se sente feia e se sente mal por isso porque não obedece aos critérios sociais de beleza propostos pelas modelos nas capas da Vogue.

Nesse sentido ainda, é importante pensar como esse processo trabalha a partir de dois aspectos contrastantes, aspectos estes que estão sempre pressionando um ao outro e sendo conciliados pela identidade em seus mitos constantemente atualizados ou substituídos por outros mais convincentes:

  • um aspecto emocional, em que os mitos reagem às precariedades, servem para nos alienar dos medos, de alguma forma suprem desejos/sonhos e oferecem conforto e alívio terapêutico;
  • um aspecto racional, em que os mitos precisam ser suficientemente convincentes, por pressão da individuação e pela interação da pessoa com os significados sociais, com os critérios desses mitos, com a realidade como um todo, com as previsões e expectativas desses mitos que se concretizam ou não, bem como com os resultados e consequências dos atos influenciados por tais mitos.

Dando meu caso pessoal, eu sempre privilegiei a autonomia mais do que a autoestima inclusive no caso de um mito que chegou a ser neurótico de individuação (também vamos falar mais sobre isso lá na frente). Eu desconstruí propositalmente vários critérios que me geravam autoestima, inclusive sobre inteligência e sobre beleza, porque me parecia mais importante me sentir livre para atos e leituras de mim que não seguissem a critérios de qualquer espécie, do que me sentir bem por obedecer esses critérios para assim me sentir feliz ao me convencer de ser bonito ou inteligente. Mesmo isso foi feito ainda sob a motivação de identidade de um mito mais profundo e particular meu, esse vinculado ao retirar autoestima da minha noção de liberdade. Eu me sentia melhor me sentindo mais livre, com mais autonomia, do que me sentia bem ao me limitar à obediência de certos critérios tentando me convencer de que era mais bonito ou inteligente. Então fazia mais sentido obedecer às poucas regras da receitinha vaga do meu “mito de liberdade”, mito este que era um mito destrutivo às receitas de todos os outros mitos e que no fim foi autofágico, sendo destrutivo inclusive a si mesmo.

Mas estou me empolgando para além da conta e esse tema da autofagia e do mito individuatório é mais uma questão que vamos discutir melhor depois.

Eu acho que já me excedi nesse trecho específico para além do que ele pretendia. Eu avisei que nessa segunda parte eu ia me empolgar mais porque escrever sobre esses problemas mais complexos é muito mais divertido.

Capítulo 10: Amálgamas associativos entre mitos políticos contraditórios

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Lá atrás, esboçamos muito superficialmente a ideia de amálgamas associativos. Porque será fundamental para o restante desse ensaio, gostaria de voltar a essa ideia nesse capítulo para aprofundá-la a partir de alguns de seus exemplos no campo político, já que este é o campo onde percebo os problema destes amálgamas mais frequentemente.

Para isso, vamos começar imaginando um indivíduo cindido entre opiniões que, embora não sejam necessariamente contraditórias, são defendidas por grupos opostos. Nesse nosso caso hipotético, digamos que o momento político no Brasil de 2023 não é lá muito propício para uma pessoa que seja liberal na economia, a favor de uma política de mercado neoliberal com defesa ao Estado mínimo, e que seja ao mesmo tempo a favor das pautas progressistas de combate à homofobia, ao radicalismo, ao racismo, à xenofobia e à intolerância religiosa.

Se pararmos para pensar bem, não necessariamente esses dois posicionamentos precisam ser lidos em condição de contradição por todas as pessoas. Faz certo sentido pensar que alguém poderia, ao menos em tese e mesmo se discordarmos dessa pessoa, defender simultaneamente essas duas ideias. Teoricamente, as questões econômicas e as questões de costumes não estão diretamente ligadas, pelo menos na leitura mais básica de ambas, embora existam infinitas argumentações feitas pra estabelecer ou não essa associação.

Dá para considerar que mesmo se essa associação entre costumes e economia for real (se assumirmos, por exemplo, que o grupo econômico mais poderoso é capaz de impor os costumes que desejar para a sociedade como um todo), esse fenômeno é algo que acontece em situação social e coletiva, o que não impediria ainda assim um indivíduo em particular de discordar ou não enxergar essa situação e insistir na defesa de uma posição com argumentos sobre economia e costumes que não seja a posição usual.

No Brasil de 2023, quando escrevo esse ensaio, o neoliberalismo e suas políticas econômicas ficaram fortemente associados ao conservadorismo nos costumes porque o governo Bolsonaro “defendia” ambas as pautas concomitantemente e construiu a partir disso um amálgama associativo a partir do qual passou a ser entendido que, necessariamente, o conservadorismo moral e o capitalismo neoliberal andam de mãos dadas.

Essa posição, por mais prevalente que tenha sido nos quatro anos do governo bolsonarista, não é uma posição que necessariamente deixa felizes todos os neoliberais, nem todos os conservadores.

Conservadores como aqueles mais aproximados das ideias de Enéas, que até hoje ainda é figura importante na retórica da direita brasileira, não são nem de longe neoliberais. São conservadores interessados em fortalecer a autonomia do Brasil e cortar sua dependência do mercado internacional; se assumem a retórica de Enéas como um todo, talvez defendam inclusive que o Brasil deveria priorizar questões de autonomia e autossuficiência de seus interesses nacionais, mesmo quando isso prejudicasse suas relações comerciais no mercado global neoliberal.

Para essa ideia não ficar muito abstrata, o exemplo mais potente do que isso quer dizer é a defesa de que o Brasil passe a ser um país com seu próprio arsenal atômico. É sabido que se o Brasil investisse numa ideia dessas, sofreria no mínimo gravíssimas sanções econômicas semelhantes às que sofre a Coreia do Norte.

Além disso, existiria até mesmo o risco de uma invasão por forças estrangeiras. Nos anos 2000, o Iraque foi invadido por uma infinidade de motivos, mas a retórica que viabilizou a invasão foi em grande parte aquela de que existia o risco de que o país estivesse desenvolvendo armas nucleares — nesse caso, a mera ameaça (depois desmentida) de que essas bombas nucleares estivessem em desenvolvimento foi considerada justificativa suficiente para a invasão.

Seja com sanções ou invasões, é evidente que o Brasil que seguisse esse plano seria muito prejudicado em sua economia, pelo menos até terminar suas bombas nucleares (isso se conseguisse terminá-las), mas provavelmente ainda depois, porque apesar de o arsenal até certo ponto impedir que o Brasil fosse invadido, as sanções econômicas muito provavelmente permaneceriam e se intensificariam para pressionar o país a desistir de manter seu arsenal. Para os defensores dessa proposta, o prejuízo econômico não importa: as amarras da economia global que impedem ou pesam contra uma ação radical do Brasil nesse sentido são vistas como algo a desconsiderar e sacrificar. Para essas pessoas, a soberania nacional e a autonomia do governo brasileiro são mais valiosas do que um capitalismo em situação de globalização e do que a participação em um mercado neoliberal internacional. Um Brasil atômico seria um Brasil mais capaz de orquestrar um governo autoritário, tal qual a já mencionada Coreia do Norte, ou de intimidar e talvez até invadir seus países vizinhos, como faz a Rússia agora na Ucrânia. E esse Brasil atômico seria capaz de fazer essas coisas sem se preocupar em dar satisfações a ninguém porque o ônus de confrontar nosso governo diretamente nesse caso, correndo risco de talvez começar um conflito nuclear, superaria em muito o bônus de interferir nas questões internas do nosso país ou no máximo nas questões da América do Sul. Qualquer plano imperialista ou autoritário do Brasil seria facilitado por ogivas nucleares que fortalecem muito o poder de barganha de qualquer soberania, quanto mais alguma com interesses considerados periféricos.

Na mão oposta, podemos considerar que existam, no mínimo como hipótese, pessoas neoliberais na economia que não necessariamente concordam com as pautas e retóricas conservadoras do governo Bolsonaro. Essas pessoas viam essas pautas como um inconveniente que tinham que engolir por um governo que teoricamente deveria defender seus interesses e filosofias econômicas, como medidas de desprivatização de empresas estatais, redução da burocracia e maior participação de capital e empresas estrangeiras na economia do país.

Para esses agentes, uma participação maior do Brasil na economia global é preferível, mesmo que isso reduza a autonomia do governo brasileiro em uma série de situações. É a posição de quem defende, por exemplo, que o Brasil não pode construir armas nucleares, invadir seus vizinhos ou se tornar uma ditadura, mesmo se quisesse fazê-lo, não por razões morais ou éticas, mas porque acreditam que fazer qualquer uma dessas coisas seria prejudicial para o mercado, com sanções que partiriam das parcerias comerciais estratégicas do Brasil. É também a posição daqueles que defendem que, quando confrontado com questões como as tensões entre China e Estados Unidos, o posicionamento do Brasil deve ser de neutralidade, não porque necessariamente concorde o mesmo tanto com ambos os países, mas porque essa posição em cima do muro é melhor para os negócios.

São também pessoas que defendem que uma intervenção dos interesses internacionais no Brasil é preferível, desde que venha junto de algum benefício econômico, seja com o crédito de carbono que impede o desmatamento amazônico, seja com outras medidas sustentáveis como a capitalização do país a partir do Fundo Amazônia, seja com exigências sobre qual o discurso ético é preferível para empresas e bancos nacionais, inclusive se estes discursos forem progressistas e defenderem pautas de diversidade para atender aos critérios de alguns fundos de investimento internacionais, ou seja ainda com a desindustrialização do país para torná-lo mais focado (e consequentemente dependente) na mais barata e fácil venda de commodities, com o benefício adicional de desagradar menos parceiros comerciais com alguma possível concorrência de nossa parte para setores industriais desses parceiros.

Os exemplos da desindustrialização e da entrada de empresas estrangeiras no país talvez sejam os que melhor representam como, nesse caso, o privilégio aos benefícios econômicos neoliberais de curto e médio prazo não necessariamente se traduzem em ganhos perenes para o Brasil como um todo.

Dá para perceber que esses dois perfis são um pouco contraditórios. Para um deles, o que importa é a rigidez de um discurso de propósito nacional, em detrimento da economia; para outro, o que importa é a economia e discursos e propósitos nacionais devem ser maleáveis para atender aos interesses econômicos. Teoricamente, não deveriam se dar bem uma primeira pessoa de direita que seja defensora da soberania nacional e de uma postura isolacionista do Brasil e uma segunda pessoa de direita que seja defensora do Brasil neoliberal participando dos mercados internacionais. São pontos de vista quase diametralmente opostos, mesmo que ambos estejam incluídos no amálgama associativo da “direita”. São também pontos diametralmente opostos que, paradoxalmente, foram mantidos como a base que elegeu Bolsonaro.

Essa contradição foi percebida logo nos primeiros meses de governo: as retóricas mais “olavistas”, que tomaram forma principalmente no Itamaraty, não conversavam bem com as retóricas neoliberais defendidas, por exemplo, na gestão feita por Paulo Guedes. Para além da questão sobre o quanto essas duas pautas foram ou não bem-sucedidas (e, dando minha própria opinião, acredito que nenhuma das duas foi), existe uma contradição já de partida sobre amalgamar essas duas perspectivas conflitantes sob um único projeto de governo.

Ainda assim, foi isto que foi feito. E hoje é difícil para um neoliberal se dissociar do conservadorismo moral, mesmo que como mostramos acima tenha razões coerentes para querer fazê-lo, tanto quanto é difícil para um conservador defensor da soberania nacional se dissociar do neoliberalismo mesmo se for esta a sua vontade. Isso porque a posição intermediária entre os dois, o neoliberal-soberanista com todos os paradoxos que carrega, é aquele proeminente na figura do “bolsonarista”, um encontro desses dois universos que, fortalecido durante quatro anos como instituição de governo, é aquele que ainda hoje domina o cenário retórico da direita nacional.

(Aliás, como um pequeno parênteses, de certa forma todos os posicionamentos da direita saem “queimados” da associação ao bolsonarismo em maior ou menor grau, sejam mais ou menos responsáveis pela crise do fim do governo, de forma semelhante ao que aconteceu quando todos os posicionamentos de esquerda saíram queimados devido aos atores implicados no lavajatismo.)

De certa forma, os projetos contraditórios do governo bolsonarista foram todos prejudicados por conta dessa cisão entre interesses opostos. Para citar apenas um exemplo mais evidente, um Brasil mais isolado e que se importasse menos com a pressão internacional seria um país em que a viabilidade de um golpe militar seria maior. E se esse isolacionismo veio nas políticas externas do país no período, não foi complementado com uma política econômica que seguisse o mesmo viés. O mesmo governo que manteve relações frias com os Estados Unidos após a derrota de Trump foi o governo que recebeu Elon Musk com toda pompa e circunstância pela esperança de acordos comerciais e de investimentos do bilionário que pudessem ser aportados por aqui.

O mesmo acontece do outro lado da discussão, mas a respeito de outras contradições decorrentes do amálgama.

Escuto vários podcasts progressistas que, discutindo questões profundas sobre como foi construída a desigualdade no Brasil, quase nunca se sentem constrangidos ao serem patrocinados por bancos como o Itaú, Santander ou Bradesco, ou por empresas como a Coca-Cola. Muitas vezes, esses podcasts são até mesmo abertamente anticapitalistas enquanto seguem patrocinados por empresas multinacionais e grandes bancos. Se as retóricas do conservadorismo brasileiro durante os últimos quatro anos foram propagadas com uso indevido de dinheiro público e por empresários brasileiros, como no suporte da Havan ao antigo governo bolsonarista ou nos pequenos e médios empresários que apoiavam Bolsonaro e que financiaram acampamentos golpistas, o dinheiro que hoje financia as retóricas progressistas costuma por sua vez ser consolidado no suporte de atores econômicos mais relevantes na dita economia global.

É impensável que a Coca-Cola ou o Itaú assumam uma posição abertamente bolsonarista, mesmo se agirem favoráveis a estas posições na encolha, e seria um escândalo se estas grandes empresas financiassem os acampamentos que pediam intervenção pelo país a fora, ou mesmo se defendessem pautas conservadoras de costumes em comerciais televisivos. Isso porque costuma ir na contramão desse conservadorismo toda a estruturação corporativa, todos os critérios de fundos de investimento, toda a cultura da academia que forma os especialistas da publicidade e todo funcionamento das agências de marketing e empresas de entretenimento com seus profissionais criativos.

Existem exceções, evidentemente, mas reforço os exemplos: entre 2018 e 2022, vi propagandas do Madero e da Havan que defendiam posições conservadoras queridas ao bolsonarismo, mas o Itaú e a Coca-Cola mantiveram suas campanhas bastante progressistas e o mais distantes que foi possível de qualquer associação com Bolsonaro. Mesmo durante a Copa do Mundo existia toda uma ciência sobre como usar a camiseta da seleção brasileira em materiais publicitários para evitar qualquer associação política.

Para um anticapitalista ferrenho de esquerda, atenua alguma coisa no seu desgosto aos bancos que o Itaú ou a Coca-Cola façam propagandas sobre diversidade? Se não atenuar, essa pessoa se vê numa situação complicada entre as esquerdas. O pacto entre o discurso progressista e os setores de marketing e RH de grandes empresas é um dos mais importantes atores políticos contemporâneos e talvez o principal a viabilizar as esquerdas em sociedades capitalistas. Talvez as entidades mais poderosas a de fato defenderem a diversidade sejam mesmo as agências de marketing e grandes corporações midiáticas, atores mais vinculados ao neoliberalismo global, e talvez sem estes atores não existisse alternativa para combater as opiniões normativas, mais conservadoras e costumeiramente mais preconceituosas, financiadas pelas pequenas elites locais. As corporações não assumem essas posições progressistas por serem boazinhas, vale mencionar só para não parecer ingênuo, e voltaremos a essa questão mais para frente.

O governo petista que agora começa carrega essas contradições também. Para garantir sua governabilidade ao definir aquilo compreendido agora como uma esquerda instituída e vigente, é necessário que esta esquerda atenue ansiedades ao se apresentar na figura do sujeito de esquerda moderado, capitalista e social-democrata, a favor de reformas e não de revoluções. O governo inevitavelmente precisa ignorar e até mesmo repelir outras esquerdas possíveis, como a do sujeito de esquerda revolucionária, o sujeito da esquerda autoritária, ou o sujeito da esquerda a favor de mudanças mais estruturais e fundamentais em nosso modelo econômico.

Ninguém votou em Lula acreditando que seu governo teria a ambição de revolucionar as estruturas do capitalismo no Brasil, quanto menos abandoná-lo totalmente. Pessoas de esquerda que defendem esse abandono do capital existem, mas não possuem viabilidade política e são amalgamadas à esquerda viável como um todo quando votam em Lula porque consideram que o seu governo de capitalismo moderado ainda é melhor do que outras possibilidades. Em governos democráticos em que as disputas se afunilam entre poucos candidatos, esse tipo de concessão é, via de regra, inevitável.

Vale mencionar também que às vezes esses amálgamas vão se transformando com o tempo.

Digamos que um grupo fez um movimento nas ruas sendo contrário à influência internacional no Brasil e a favor de uma forte identidade nacional. Esse grupo poderia ser de esquerda, se eu estivesse falando da Marcha Contra a Guitarra Elétrica de 1967 que criticava a influência da cultura internacional, sobretudo norte-americana, no Brasil da época. Mas esse grupo também poderia ser de direita e olavista em 2019, na pegada de Ernesto Araújo, o ex-chanceler das Relações Exteriores do Brasil durante parte do governo Bolsonaro, em suas críticas a um globalismo que ele enxergava como propagador de um suposto “marxismo cultural”.

É mais difícil para alguém de esquerda ter hoje um posicionamento contrário às influências internacionais, mesmo se essa pessoa considerar que o imperialismo do capital norte-americano segue a todo vapor na globalização homogeneizada do seu projeto econômico e cultural, não só porque hoje as esquerdas são um fenômeno mais coeso internacionalmente, quanto porque o “anti-globalismo” da direita é fenômeno mais recente e mais disseminado de crítica à influência internacional. Portanto, esta crítica à influência externa agora está mais amalgamada à direita. Em um futuro hipotético no qual o Brasil estivesse consolidado como um país de quase consenso à esquerda e em que a influência externa viesse no sentido de tentar tornar o país mais de direita, talvez a crítica à influência internacional florescesse na retórica das esquerdas brasileiras novamente. Isso poderia ser mais provável ainda considerando que desde já a pauta do globalismo está sendo um pouco abandonada pela direita brasileira, seja devido à prioridade dada ao neoliberalismo, seja por conta do escanteamento de Ernesto de Araújo, seja pela morte de Olavo de Carvalho que era o principal defensor desse tema nas direitas brasileiras.

Existem outros posicionamentos políticos combinando esses dois debates que, de tão improváveis, costumamos desconsiderar. Quero citá-los porque é divertido lembrar deles e porque vale mencionar que existem em algumas dessas pessoas por aí. Por exemplo, nada impede que exista (e tenho certeza que existe em algum lugar) uma pessoa que seja, numa tacada só, anticapitalista e defensora de um Estado forte e socialista, ao mesmo tempo em que seja a favor de um conservadorismo forte dos costumes e de perseguição aos homossexuais, imigrantes e ateus. Esse “conservador de costumes socialista” é uma figura quase invisível dos nossos debates políticos contemporâneos. E não é porque não exista, mas porque é irrelevante frente à maneira como amalgamamos as posições políticas atuais, maneira esta quase que diametralmente contrária a esse possível posicionamento que entendemos como mais contraditório, embora outros posicionamentos tão contraditórios quanto, como vários dos mencionados aqui, tenham sido naturalizados pelas alianças de conveniência e a necessidade de viabilidade política.

Tentando resumir tudo isso de uma maneira muito mais simples e reducionista, o governo de Bolsonaro se elegeu com uma máxima bem conhecida por sua base de eleitores, essa tese de que seria “liberal na economia e conservador nos costumes” e, sendo o governo de direita instituído, tornou quase consenso esta sua leitura do que era ser de direita no Brasil do período. Diante disso, fica fácil pensar que a posição de esquerda seria a oposta, algo como a antítese de ser “conservador na economia e liberal nos costumes”. Mas nesse maniqueísmo, ficariam de fora pelo menos as opções de quem quisesse ser “liberal na economia E nos costumes”, que seria a ideia de um neoliberal progressista que mencionamos, ou “conservador na economia E nos costumes”, como no caso do nacionalista inspirado por Enéas que também trouxemos.

E é interessante perceber que esses pares nem sempre são suficientes, já que “conservador na economia” não é suficiente para explicar o petismo que, sem ser liberal no sentido neoliberal, também ainda está longe de ser algo que dá pra se dizer conservador. Mas vamos passar por cima dessas nuances pelo bem do exemplo continuar simples.

Essas posições não representadas nos embates principais de um momento vigente são sempre amalgamadas para um lado ou para outro, ou são sumariamente desconsideradas. Talvez alguém que queira ser liberal na economia e nos costumes precise, olhando para uma eleição entre Lula e Bolsonaro que não defendem essa conciliação específica, escolher se prioriza mais a liberdade nos costumes, para votar em Lula, ou a liberdade na economia, para votar em Bolsonaro, e a partir disso fazer uma concessão e estar amalgamado, meio a contragosto, a algum desses espectros políticos, mesmo que algumas de suas opiniões sejam defendidas pelo espectro oposto. E se não existir concessão a ser feita, se priorizar for impossível e a liberdade nos costumes e na economia forem irreconciliáveis, essa pessoa ficaria sem uma viabilidade de voto numa eleição de segundo turno que não permitisse outra opção.

Dei esses exemplos todos para contextualizar só alguns dos exemplos de amálgamas políticos recentes, nos quais características e posicionamentos políticos são associados de maneira a impedir que determinadas posições sejam tomadas se desrespeitarem tais amálgamas. Com os exemplos dados, acho que temos o suficiente para aprofundar o que isso tem de relação com tudo que estávamos discutindo até aqui.

Para começar, acho importante retomar a ideia de que, enquanto discuto esses amálgamas políticos associativos por seus aspectos míticos vinculados à identidade, não estou me debruçando sobre a viabilidade técnica desses projetos. Não porque eu não tenha minhas próprias opiniões, mas porque não sou um estudioso com conhecimento técnico desses assuntos para ser capaz de fazer uma defesa ou crítica aprofundada nesse sentido.

Eu posso dizer que existe um ponto de vista em que a influência internacional é criticada e observar esse posicionamento no que ele pode ou não gerar de identificação mítica, considerando até mesmo quais podem ser as razões para que essa identificação aconteça e como ela se articula nos amálgamas, e no geral me sinto confortável para discutir o que pode tornar mais atraente uma determinada ideia de acordo com a estrutura que estamos articulando durante esse ensaio inteiro. Mas não estudo e observo essa questão da influência internacional em sua viabilidade em si: não fiz nenhuma graduação ou pós-graduação em Relações Internacionais, não sou diplomata nem economista, não tenho conhecimento técnico suficiente sobre o tema para tal. Com essa mesma lógica valendo paras todos os exemplos que dou, não tenho nem a ambição, nem a propriedade, de argumentar sobre a viabilidade de nenhum dos posicionamentos políticos mencionados.

Demos um exemplo lá na primeira parte que demonstra isso bem, quando mencionamos o apelo que um jovem paulistano poderia ter para acreditar na ideia de meritocracia, enfatizando que eu não tenho propriedade suficiente para desmentir ou defender a meritocracia em si, mas que posso pelo menos propor razões para o jovem paulistano gostar dessa ideia e querer que a meritocracia exista, independentemente dela existir mesmo ou não.

Eu, Rodrigo, enquanto pessoa física, não acredito na meritocracia enquanto uma possibilidade real, pelo menos não como possibilidade real que seja relevante para a sociedade brasileira em que vivo, para além de exceções muito restritas e eventuais. Mas eu não sou capaz de defender essa minha opinião em seus pormenores de maneira técnica. E mesmo se eu fosse capaz de fazer isso, não é este ainda o foco desse ensaio, então tanto faz o que acredito ou não.

Isso vale exatamente da mesma maneira não só para todos os pontos de vista políticos, mas ainda, de forma mais geral, para todos os mitos mencionados. De acordo com a estrutura que construímos, eu posso propor motivos que podem levar alguém a querer acreditar em Deus, mas não posso provar que esse Deus exista ou não. Eu posso propor razões emocionais para que alguém leia a matemática de maneira mítica, mas não posso nem de perto desmentir ou criticar a existência da matemática.

Outro exemplo que demos lá atrás que é útil de retomar é o da “batata quente” que é o nazismo, com a direita tentando se dissociar dele o máximo que for possível justamente pelo problema retórico do amálgama. Novamente, vou retomar inclusive a questão levantada lá atrás: essa tentativa de afastamento acontece por quê?

Por que o jogo político costuma ser menos sobre discutir tecnicamente a viabilidade de projetos e opiniões, enquanto costuma ser mais um jogo entre quebrar ou fortalecer associações e estabelecer amálgamas via generalizações? Por que ao assumirmos a posição de “ser de direita”, ou “ser de esquerda” é esperado que assumamos o “pacote completo” das opiniões da visão generalizada desta identidade política e que desconsideremos qualquer opinião que está amalgamada ao conceito oposto?

Essas perguntas são ambiciosas e envolvem uma infinidade de fatores na resposta que não tenho competência para aprofundar, como desigualdade e enviesamento no acesso à informação, bem como pressão dos grupos de poder; mas envolve algo que eu acho que posso detalhar melhor: a estratégia por trás dessa “venda casada” da política, em que a pressão social acaba obrigando que um critério novo seja considerado para a identificação com uma determinada identidade e em que o desejo de identificar-se com essa construção é tão grande que parece mais proveitoso moldar-se de determinadas maneiras para continuar viabilizando a identificação.

Quero retomar exemplos dos dicionários e dos caminhos diante de construções da identificação para explicar melhor esse fenômeno.

Vamos partir de um termo extremamente disputado, a ideia de “esquerda” como um todo, no que deveria ser sua definição em “ponto pacífico”, a mais superficial possível, pelo que define como esquerda o dicionário Michaelis:

ESQUERDA
es·quer·da

sf
1. O lado oposto ao direito.

2. O lado que corresponde ao do coração humano.

3 A mão esquerda; sinistra, sestra.

4 A perna esquerda.

5 (Política) A oposição parlamentar representada por partidários com ideias contrárias às dos conservadores.

6 (Política) Grupo de indivíduos de uma nação, de uma organização não governamental de uma comunidade, que preconiza a superioridade dos sistemas políticos socialistas ou comunistas sobre o capitalismo e defende a igualdade social.

Como aconteceu com outras tantas palavras que discutimos nesse ensaio e que estão em situação de disputa, é muito provável que, independente de quem você seja e de qual seja seu posicionamento político, sua definição do que acredita que “esquerda” significa ultrapasse em muito essa superficial definição do dicionário. É divertido ainda considerar que existe ponto pacífico na leitura literal da palavra, o lado oposto ao direito, e que dificilmente alguém tentaria discordar disso, mas a leitura política é muito mais polissêmica, controversa e discutida.

Para começar, a ideia de que esquerda é necessariamente a posição “com ideias contrárias às dos conservadores” é um tanto vazia. Se o mesmo sentido for dado para os conservadores, ou seja, ao definirmos que estes são as pessoas “com ideias contrárias às que são de esquerda”, não teremos absolutamente nenhuma ideia sobre o que qualquer um dos dois grupos acredita. Além disso, já estamos complicando durante toda essa segunda parte do ensaio a ideia de que a direita seria necessariamente óbvia de vincular ao conservadorismo. A depender do critério para os termos, é possível considerar um conservador de esquerda, ou um direitista progressista. Na mesma seara, um homem gay capitalista não necessariamente defende políticas socialistas ou comunistas, mas talvez ainda se diga de esquerda se as pautas de diversidade forem a base de sua identificação política e se para esse homem o conservadorismo e o preconceito forem associados à direita. Existem homens gays de direita que rebatem essa associação, dizendo que ser favorável à diversidade sexual não é questão de direita ou esquerda, ao que são rebatidos por críticas de que a maior parte dos conservadores e homofóbicos associam-se via de regra à direita.

Todas essas complicações e nuances são incômodas e acredito que serão as ideias mais criticadas desse ensaio por dois motivos que acho importantes de se mencionar agora.

  1. Primeiro, as associações associativas rígidas servem a interesses políticos, seja como vantagens ou desvantagens aos argumentos que convencem determinadas pessoas a se identificar ou não com determinados grupos.
  2. Segundo, existem defesas complexas e técnicas, muitas delas bastante razoáveis, sobre por quais motivos algumas associações seriam inerentemente incoerentes.

Esse segundo motivo precisa ser explicado também e acho que um exemplo demonstra bem a questão.

Existem setores inteiros da esquerda que argumentam que deveria existir uma associação rígida ente ser anticapitalista e ser feminista, ou aliado do feminismo, ou ser alguém contrário ao patriarcado. Essa defesa constrói o argumento, bastante coerente, de que o capitalismo foi estabelecido por sociedades patriarcais e que é parte fundamental da estabilidade de tais sociedades atualmente, contribuindo estruturalmente para a desigualdade entre os gêneros. Outro argumento semelhante, ainda na esquerda, defende que é incoerente ser de esquerda e manter um relacionamento monogâmico, partindo da mesma ideia de que a monogamia também é uma estrutura do status quo. E há diversos outros exemplos de argumentações parecidas, mais ou menos técnicas e mais ou menos convincentes: nas eleições brasileiras de 2022, pastores evangélicos disseram em seus cultos que era impossível ser evangélico e de esquerda; setores da esquerda ateia do Twitter muito provavelmente concordariam, criticando qualquer um de esquerda que se identifique como cristão. Dentro da direita, há o embate do que é “a verdadeira direita” entre os focados em determinadas posturas econômicas, como os neoliberais, e os focados em determinadas pautas dos costumes, como a bancada evangélica. Como no caso que demos antes sobre o neoliberal progressista, é igualmente difícil a posição de um evangélico de esquerda no Brasil de 2023, após quatro anos do governo de Bolsonaro fazendo de tudo para se associar a este grupo e com a já mencionada bancada evangélica sendo sobretudo de direita conservadora.

Como no caso dos próprios argumentos, aqui também independe para nossas análises nesse ensaio se essas defesas ou críticas a determinadas associações são mais ou menos verdadeiras. Desde que existam pessoas que se identifiquem com uma determinada associação, isso é suficiente para nossa análise independentemente de fazer sentido ou não a crítica a alguma incoerência dessa associação.

Eu, Rodrigo, pessoa física, tenho minhas opiniões: ridicularizo a posição de quem diz ser impossível que existam cristãos de esquerda, por exemplo, mas é útil saber que existe essa opinião e que para alguém convencido desta opinião a esquerda pode ser uma inviabilidade se a identificação com “ser cristão” for mais importante. Se eu quero que essa pessoa considere mais a esquerda, fará mais sentido questioná-la da associação rígida entre “ser cristão” e ser “de direita”, talvez ressaltando maneiras nas quais a direita pode ser também pouco cristã, do que tentar exigir a desconstrução dessa pessoa à sua cristandade para que ela talvez considere abandonar também seu direitismo. Se for exigido que todos os de esquerda sejam necessariamente não-cristãos, a esquerda terá inviabilizada toda uma possível parte de sua base de pessoas que poderiam ser cristãs e de esquerda e que, se essa possibilidade parecer não existir, talvez sintam que estão sendo pressionadas a ter que escolher entre sua religião e sua política.

E inclusive é justamente por isso que esses embates existem: normalmente, eles tentam moldar um novo critério para alguma característica que se subentende que as pessoas priorizem em suas identificações. Quando um pastor evangélico argumenta que “ser de esquerda é pecado”, ele espera que esse argumento convença seus fiéis porque, se convencê-los, a escolha do espectro político passa a ser muito mais fácil.

Afinal, o que é preferível, se sou religioso e isso importa muito para a ideia que tenho sobre quem sou?

  1. preservar minha identificação com o cristianismo e seguir sem pecado, ou
  2. considerar a tentação argumentativa de um outro espectro político que pode me negar minha identidade enquanto cristão, seja esta negação acontecendo socialmente na comunidade cristã com a qual me importo e sinto pertencer, seja ao esta negação acontecendo subjetivamente se acredito na importância desses significados sociais?

É da mesma forma, mas do inverso, que atua o incômodo da direita com a associação ao nazismo. O argumento de alguém de esquerda nesse sentido vai tentar desconsiderar a nuance, reforçando que se o nazismo existe no grande amálgama associativo das direitas, isso de alguma forma compromete a direita como um todo e dá a todos que estão nessa esfera uma implicação de associação mais ou menos implícita ao nazismo. Se uma determinada pessoa for convencida dessa construção em máximas e não for capaz de perceber a nuance (coisa raramente possível quando nos confrontamos com as retóricas emocionadas, manipuladoras e ditas aos gritos nas frases reducionistas dos debates políticos), talvez se identificar como de direita perca um pouco do apelo. Isso pode parecer preferível caso afastar-se do nazismo for mais importante do que ser de direita e caso seja impossível negar que o nazismo faz mesmo parte das direitas.

Esses exemplos associativos acontecem o tempo inteiro: se um político de esquerda foi pego roubando, isso é argumento para desmontar e implicar a esquerda como um todo; se um político de direita é pego roubando, isso é argumento para também propor que a direita como um todo está falida. No Brasil, em que problemas sistêmicos implicam muitas vezes na corrupção dos dois lados do espectro político, para construir verdadeiras armas retóricas se desconsidera a importante existência de algo estrutural anterior ao bipolarismo político.

Como no caso do nazismo mencionado lá atrás, a discussão isenta sobre esses problemas fica restrita aos acadêmicos e técnicos. No dia a dia, o amálgama associativo é a ferramenta retórica mais utilizada nas discussões políticas emocionadas dos leigos, eu mesmo me incluindo nessa categoria. Não tenho conhecimento suficiente para apresentar opiniões finais e bem resolvidas sobre a maior parte dos dilemas políticos que apresentei até aqui. Acho que parece uma coisa descabida a ideia de um Brasil que resolve brigar com o mundo todo para ter armas nucleares, mas não sou capaz de escrever uma argumentação técnica para justificar esse meu achismo. Confio em determinados técnicos que parecem coerentes, vi superficialmente algumas matérias, artigos e estudos, mas não posso me dizer especialista, como não podem se dizer especialistas a maioria das pessoas que discutem política no dia a dia.

Na falta dessa informação embasada e fundamentada do estudo aprofundado, o que sobra é a generalização, a tomada do caso como lei e a tentativa, que muitas vezes nem percebemos que estamos fazendo, de mudar os critérios do que direita ou esquerda significam ou devem significar para, em última instância, atrair a identificação de terceiros e de nós mesmos para determinados posicionamentos e repeli-los de outros. E essas técnicas retóricas mais básicas normalmente são feitas mais para garantir o conforto do mito já identificado e o pertencimento a determinado grupo.

É aí que entramos na questão da identificação a um determinado amálgama político e como ela funciona. Quero dar um exemplo para repetir algumas das estruturas que mencionamos antes, mas mostrando como operam nos casos políticos.

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Um exemplo de readequação mítica ou individuação no caso político

Digamos que Joãozinho se identifica como alguém de esquerda porque votou no Lula e é a favor de políticas sociais mais inclusivas e de ações que combatam o preconceito. Joãozinho é a favor das diversidade sexual, racial e de gênero, de um país laico, de cotas; mas Joãozinho é um homem branco que assume relacionamentos monogâmicos e inclusive casou-se, é heterossexual e acredita que o capitalismo pode funcionar. Só para dar mais ironia ao exemplo, vamos dizer ainda que Joãozinho acredita que a meritocracia no capitalismo pode existir a partir de pequenas correções às desigualdades históricas do sistema, entendendo que ações como as cotas e vagas afirmativas são algumas dessas medidas possíveis para aos poucos resolver o problema.

Um leitor de esquerda e um leitor de direita, diante dessa classificação, nesse mesmo momento poderiam suspirar ao chamarem Joãozinho de “ingênuo”, cada um por seus motivos. Para a pessoa de direita, talvez Joãozinho tenha sido alienado a acreditar incorretamente que a direita odeia homossexuais e só por isso não se identifica como direita em sua defesa ao capitalismo; para a pessoa de esquerda, talvez Joãozinho tenha sido alienado a acreditar incorretamente que o capitalismo pode ser reformado, enquanto uma revolução mais drástica seria necessária para que mudanças reais acontecessem.

Na vida real, a todo momento nossos posicionamentos estarão em disputa com os dois amálgamas políticos que tentarão nos puxar por nossas semelhanças. Um argumento que Joãozinho escutou algum dia na vida, sem qualquer sombra de dúvidas, é de que ele “deveria” ser de direita porque, sendo um homem branco, heterossexual e casado, é a direita quem supostamente “defende” os interesses do seu grupo. Ele talvez tenha escutado também de alguém de esquerda que não dá para ser de esquerda de verdade sendo casado, já que o casamento é uma instituição que reforça o patriarcado, e deve ter ouvido também que é impossível ser de esquerda sem ser anticapitalista.

Para deixar esse exemplo um pouco mais simples, vamos considerar só o caso do diálogo de Joãozinho com alguém de esquerda, no exemplo considerando que este alguém de esquerda possui uma leitura diferente das leituras de Joãozinho sobre o que ser de esquerda significa. Vamos considerar que a pessoa com quem Joãozinho está conversando fez uma argumentação suficientemente coerente para que Joãozinho acreditasse que não é “de esquerda de verdade” porque não é anticapitalista revolucionário. Digamos que se identificar como de esquerda era parte importante do grande mito do Eu de Joãozinho e que ele está se sentindo mal por agora se perceber um pouco como uma fraude.

Vamos partir desse exemplo para detalhar os mesmos quatro caminhos no caso do sentimento de Joãozinho que anteriormente aplicamos ao caso de uma pessoa que se sentia feia:

  1. O primeiro caminho é desconstruir as ideias que possui atualmente de esquerda de maneira a construir um novo critério que volte a englobar Joãozinho. Nesse caso do debate, é a mais simples das saídas: por comportamento meramente reativo, de protecionismo mítico de sua identificação que lhe faz bem, ou por alguma argumentação suficientemente convincente, Joãozinho volta a acreditar que pode sim ser de esquerda sem ser um revolucionário anticapitalista. Talvez Joãozinho até mesmo adicione um novo demarcador ao seu ponto que o diferencie da pessoa com quem está conversando: nesse caso, Joãozinho poderia se sentir bem por dizer que é de uma “esquerda moderada” enquanto se afasta da pessoa com quem conversa ao classificá-la como uma “esquerda radical”. Considerando que Joãozinho acredite ainda que ser moderado é melhor do que ser radical, essa seria uma identificação cômoda e resolveria o problema muito facilmente. Pode ser tanto uma posição tomada por negação e teimosia, quanto por um ato criativo de estabelecer novos critérios autogeridos, ou por buscar outros critérios sociais que representem sua posição e entreguem essa validação externa, ou pode até ser a posição conquistada por sorte após um processo honesto de investigação da questão; mas fato é que este se trata do caminho que envolve menos mudanças por parte de Joãozinho em sua maneira de se enxergar e em sua maneira de agir.
  2. O segundo caminho é aquele em que não se tenta revolucionar os critérios de esquerda como necessariamente anticapitalista. Nesse caminho, Joãozinho realmente foi convencido pela argumentação de que a esquerda moderada ainda vinculada ao capital é antiprodutiva e ineficiente. Nesse caso, sobra a Joãozinho tentar mudar suas posições e atos para tentar se adequar melhor a esse novo critério de esquerda que quer alcançar. Porque ser de esquerda é mais importante para a identidade de Joãozinho do que defender o capitalismo, nesse caminho Joãozinho desistiria da defesa ao capitalismo para priorizar sua identificação com a esquerda que, na associação da qual ele se convenceu, necessariamente precisa ser anticapitalista. Se eu fui convencido de que não obedeço ao critério de esquerda social do grupo ao qual quero pertencer e se esse critério é mais importante para mim do que algum critério autogerido do esquerda talvez não signifique muita coisa em minha leitura (ou caso esse critério autogerido nem exista), a adequação ao critério, a busca por fazer o suficiente para se adequar, é o caminho para reconquistar a identificação e a validação social desta identificação a partir de uma determinada série de opiniões e atos.
  3. O terceiro caminho é aquele em que Joãozinho decide resignar-se de se sentir bem ou mal por conta do seu posicionamento político e que abandona o “ser de esquerda”, seja mudando critérios ou atos, como um objetivo de sua identificação. É uma posição da “compensação reativa” que mencionamos lá atrás. Aqui, poderia ser construída com um Joãozinho que fosse convencido de que não é de esquerda de verdade: nesse caso, ele pode sentir culpa disso e ainda não se identificar como uma pessoa de direita, ou sentir-se indiferente. Mas também poderia ser construída como um Joãozinho que se convertesse à direita. As frases que ele diria nesse caso seriam coisas como “eu não me entendo mais como de esquerda, MAS ainda sou uma boa pessoa”, “eu não me entendo mais como de esquerda, MAS ainda me importo com a diversidade e sigo a favor de cotas”, ou até mesmo “eu agora me entendo como de direita, MAS ainda me importo com diversidade e sigo a favor de cotas”. Nesses casos, Joãozinho focaria mais em outros aspectos que antes estavam amalgamados à sua identidade como alguém de esquerda. Também existira a possibilidade dele negar a discussão política completamente com um posicionamento como “eu não falo mais de política e não gosto mais de pensar nesse assunto, MAS sou uma pessoa muito divertida e engraçada que tenta fazer o bem para meus familiares e amigos”.
  4. O último caminho é aquele em que Joãozinho questiona a estrutura de sua autoestima como um todo. Novamente, como foi no caso do exemplo sobre beleza e feiura, é um caminho de questionamentos muito abrangentes e profundos que seguiria mais ou menor por essa linha: por que Joãozinho precisa se identificar como de esquerda para se sentir bem? Por que a autoestima de Joãozinho precisa depender do convencimento sobre participar de uma determinada posição política? Por que a autoestima de Joãozinho depende de convencê-lo de que ele é algo para além de “alguém de esquerda”, como um defensor das cotas ou uma pessoa engraçada que faz bem aos seus familiares, para substituir o se sentir bem pela posição de esquerda, caso Joãozinho não consiga se convencer de que ainda é de esquerda? Por que a autoestima de Joãozinho dependeria de convencê-lo de que ele é certas coisas, seja esse convencimento por características em leituras autogeridas ou a partir de significados sociais?

Se esse último caminho já era um bastante improvável no caso da beleza que detalhamos no capítulo anterior, porque esse abandono de uma identificação gera sempre um sentimento de estar perdido de si e de vazio, acredito que seria mais improvável ainda que alguém seguisse para essa opção no caso de uma identificação política. E é justamente porque o caso político é bastante interessante que decidi usá-lo como principal exemplo desse capítulo.

Em teoria, existe um “amálgama das associações ao conceito de beleza”, se quiséssemos insistir no exemplo de antes, e embora esse amálgama certamente fosse possuir conotações políticas, acredito que suas defesas seriam menos apaixonadas. A identificação com a beleza é construída num sentido que parte principalmente da autoestima; a identificação política envolve o mesmo elemento de autoestima, já que normalmente assumimos o posicionamento político que acreditamos ser o correto e portanto nos definimos como pessoas corretas a partir dele, mas envolve também um importante elemento de pertencimento a grupos e de consequências sociais.

Uma pessoa que se entende como bonita talvez não se importe em ser a única bonita em um grupo de gente que entenda como feia (na verdade, talvez ela até prefira); mas ter uma identidade política sozinho é muito mais complicado e ineficiente, inclusive porque os embates políticos são muito mais hostis.

A explicação dessa questão da hostilidade dos embates é muito importante, então também quero explicá-la melhor.

Debates e até mesmo disputas políticas costumam acontecer através de alianças e de auxílio entre aliados. Para além das conveniências retóricas associativas, existe um aspecto pragmático nos vínculos que o campo político forma.

Na direita, o neoliberal econômico e o conservador isolacionista podem muito bem estar cientes da contradição entre seus posicionamentos, mas consideram que é mais importante se unirem para viabilizar um enfrentamento à esquerda, antes de resolverem suas disputas internas na direita. Do outro lado, muito provavelmente os progressistas de esquerda moderada, que defendem o capitalismo com cotas, sabem muito bem que existe contradição em seu ponto frente pessoas de esquerda revolucionária que buscam o desmonte do capitalismo como um todo; mas ambos podem considerar que é mais importante se unirem para viabilizar um enfrentamento à direita, antes de resolverem suas disputas internas na esquerda.

Nada na história recente do Brasil exemplifica isso melhor do que a frente ampla simbolizada muito apropriadamente pela aliança entre Lula e Alckmin, anteriormente adversários que se uniram para viabilizar o enfrentamento ao bolsonarismo. As contradições do amálgama não são um acidente: não às vezes partes necessárias da tessitura das articulações míticas e retóricas da política.

Mitos políticos autogeridos são inúteis

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Agora vamos considerar uma pessoa independente, com um posicionamento político absolutamente autogerido, que desconsidere totalmente qualquer leitura social e que não busque formar nenhuma aliança. Para começar, normalmente posições políticas envolvem a expectativa mítica de consequências práticas e, num sistema em que é necessário consolidar algum consenso, é improvável que a opinião inacreditavelmente individuada, subjetiva ao extremo de fazer sentido para um único fulano, seja potente o suficiente para concretizar atos políticos ou ganhar relevância no campo político. Para além disso, essa opinião autogerida ainda seria lida socialmente por outros que certamente ainda a classificariam em alguma posição do espectro.

Um exemplo bom é do “isentão”, lido pela direita como alguém de esquerda e lido pela esquerda como alguém de direita. Outro exemplo bom, novamente emprestando dos casos recentes do Brasil, foi da candidatura do Ciro Gomes. Em um momento em que a leitura social dos amálgamas políticos pendia muito fortemente para a cisão maniqueísta entre esquerda simbolizada por Lula e direita simbolizada por Bolsonaro, Ciro quis dizer que era uma outra coisa, a partir de seu próprio significado autogerido do que o espectro político deveria ser em sua opinião. O resultado foi um Ciro sem aliados na esquerda e nem na direita, que apanhou dos bolsonaristas ao ser visto como esquerdista e que apanhou dos petistas ao ser visto como bolsonarista; sem alianças, Ciro lutou sozinho contra tudo e contra todos e não foi a lugar nenhum. A imposição dos significados sociais dos amálgamas de esquerda e direita foi na época mais poderosa do que a proposta de Ciro para reformar esses significados à sua maneira.

Usei desse exemplo do Ciro porque seria o único suficientemente conhecido para leitores brasileiros, mas a verdade é que até mesmo Ciro construía alianças e significados sociais, mesmo que com menor escala e eficiência do que seus adversários, e que uma pessoa que fosse realmente completamente solitária no campo político, sem qualquer aliança de amálgama ou qualquer mínimo consenso “de dicionário” para suas identificações, seria absolutamente irrelevante, fosse apanhando dos dois lados da disputa ou, até mais provavelmente, sendo só ignorada mesmo.

Existe uma negociação estratégica nas identificações e pertencimentos aos amálgamas políticos. Vou dar um exemplo usando o Twitter. Digamos que eu sou um influenciador no Twitter que está sendo perseguido por pessoas de direita porque fiz um comentário favorável ao Lula. Eu só vou receber suporte dos usuários de esquerda na rede social e de figuras-chave da esquerda no Twitter se, e somente se, eu obedecer a certos critérios que me identifiquem suficientemente como de esquerda para merecer receber esse suporte. Tanto Felipe Neto quanto Danilo Gentili já foram perseguidos e ameaçados por bolsonaristas no Twitter, mas só Felipe Neto recebe apoio e suporte da esquerda quando algo assim acontece. Por quê? Porque só Felipe Neto obedece suficientemente aos critérios sociais do que essa esquerda considera como mínimo para “ser de esquerda”, ao ponto de justificar sua defesa e sua proteção como um importante aliado estratégico.

O mesmo acontece da mesma maneira, e eu diria até que de forma mais exagerada, na direita digital brasileira. Para citar só alguns nomes dos que perderam os “privilégios” de defesa no amálgama da direita e foram deixados sozinhos para lutar contra porradas recebidas dos dois lados do espectro político: o já citado Danilo, Joice Hasselmann, Alexandre Frota e Nando Moura, todos foram figuras políticas relevantes na direita nacional em algum momento que, excomungados ao confrontar Bolsonaro de alguma maneira, perderam relevância política e, no caso dos que eram eleitos, perderam inclusive sua base de votos para garantir novos mandatos.

Além da ideia aprofundada sobre os amálgamas, esses exemplos do mundo político são particularmente relevantes para adicionar um aspecto importante à discussão sobre identificações que até então estávamos tendo: esse das negociações com leituras sociais dos significados, especialmente quando determinadas identificações dependem mais acentuadamente desses critérios sociais.

Por exemplo, parece legal e poético dizer que você acredita ser bonito por um significado autogerido de beleza. É poético dizer que você acredita que esse critério autogerido de beleza devia ser mais do que o suficiente. Mas ninguém vai te deixar entrar num hospital e realizar uma lobotomia num paciente só porque você acredita, por algum significado autogerido de medicina, que é um neurocirurgião.

Novamente, como mencionamos lá atrás, as identificações implicadas em consequências sociais costumam ser mais controladas do que aquelas identificações “inofensivas”. Ninguém é prejudicado se você se convencer de que é bonito independentemente de qualquer um ao seu redor concordar, ou a partir do endosso de um grupo pequeno.

Mas mesmo se você se convencer sozinho, ou até se convencer com o endosso de algum grupo de fanáticos, de que você é um neurocirurgião sem nunca ter estudado medicina, então essa sua identificação pode ser perigosa para outros que sejam seus pacientes/vítimas. É comum que sejamos relativistas e permissivos nos assuntos inofensivos que beneficiam a autoestima (“se você acha essa camisa bonita, use-a independente das opiniões dos outros!”), mas somos, ou pelo menos deveríamos ser, criteriosos e técnicos nos assuntos com resultados práticos (“se a opinião dos médicos for a de que você não é um deles e não tem permissão para realizar cirurgias em ninguém, não interessa que você acredite sozinho que é um médico e que pode realizar cirurgias!”).

Capítulo 11: O mito político em suas semelhanças e diferenças frente a outros mitos

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A discussão das identificações políticas é mais bagunçada ainda porque, embora envolva essas pressões sociais mais fortalecidas que supostamente deveriam exigir maior conciliação dos significados sociais e critérios mais “pé no chão” e desapaixonados, existem pelo menos três aspectos que mantêm as identificações nesses casos tão terapêuticas e apaixonadas quanto seriam em qualquer outro contexto.

O primeiro, e mais óbvio, é que identificações políticas constroem autoestima tanto quanto identificações de qualquer outro tipo. Se alguém se identifica como bonito e se sente bem por isso, o apego a manter essa posição será maior do que se a beleza fosse uma característica lida de forma desapaixonada, sem gerar autoestima e sem vínculo tão proeminente aos significados amalgamados do mito do Eu. O mesmo vale para identificações políticas. Se eu me identificar como de esquerda fizer bem para minha autoestima, vai ser mais complicado me convencer a revisar meus critérios de esquerda, trazer nuances para minha leitura dessa esquerda como sua associação com os exemplos mais condenáveis das piores pessoas de esquerda que já existiram na terra, ou até mesmo me exigir uma leitura da esquerda como algo para além de uma lei evidenciada por determinados casos generalizados. No geral, vai ser mais difícil exigir de mim uma leitura mais isenta e menos apegada da esquerda, já que dela dependo em algum nível para sentir que sou quem sou e que me sinto bem em ser como sou. No nível mais básico, até inconscientemente, existirá uma primitiva associação entre “esquerda” e “bom” e dessas duas características com minha identificação: ser bom por ser de esquerda, ou ser de esquerda por ser bom.

Para além desse aspecto do alívio terapêutico e do apego, que existe em basicamente todos os mitos e consolida a resistência mítica à mudança em todos os casos, o caso dos mitos políticos carrega ainda algumas outras especificidades que nem sempre aparecem em outras discussões de identificação mais “inofensivas”, ou só menos disputadas.

O segundo aspecto é o já mencionado do pertencimento. O significado da identificação política costuma vir associado à participação em algum grupo. Nesses casos, as leituras da identificação costumam ser mas condicionadas às exigências e critérios sociais e a autonomia de significados autogeridos perde potência. Para participar do grupo “esquerda” e colher os benefícios dessa participação, como a proteção e o apoio de outras pessoas de esquerda se você for atacado por alguém de direita, ou só as amizades e até mesmo parcerias profissionais que pode fazer entre seus aliados deste campo, não adianta seguir um critério autogerido de esquerda. É importante seguir os critérios associativos básicos do que é socialmente lido como esquerda.

Esse aspecto do pertencimento define muito do comportamento de manada que as disputas políticas costumam ocasionar em determinadas situações. É o que motiva, por exemplo, a resistência a abandonar o barco quando um grupo que era amalgamado ao redor de um determinado político descobre que este político era corrupto. Negar a realidade da corrupção da pessoa é importante não necessariamente para proteger ao político em si, mas para proteger toda a rede de contatos e toda a comunidade que se construiu ao redor daquela figura, tanto quanto para proteger a própria identidade e a narrativa do mito do Eu. Conforme mencionamos na primeira parte, qualquer mudança por mais mínima no mito do Eu afeta todas as associações constituídas e uma mudança drástica gera uma verdadeira revolução em todas as associações e na identidade como um todo.

O terceiro aspecto, que se vincula muito a esse do pertencimento, é justamente essa maior força das leituras sociais nos mitos políticos, bem como as disputas de poder, de interesse e de tomadas práticas de decisões relacionadas a esse aspecto social.

Um problema bastante evidente disso é o quanto essa significação condicionada aos critérios e exigências sociais pode servir para um apagamento da autonomia e até mesmo do senso próprio de construção da identidade. Se o grande mito do Eu é dependente em demasia desses critérios sociais manobrados por determinadas lideranças, a pessoa perde controle de sua própria sensação de existência e depende de terceiros que lhe apresentem os critérios a obedecer para continuar participando do grupo e se identificando com aquilo que considera bom.

Isso acontece tanto nos fanatismos políticos mais exacerbados, em que há um apagamento do eu diante da vontade de participar do grupo e de obedecer aos critérios sociais desse grupo para seguir viabilizando um determinado mito do Eu, quanto nas situações de cultos e seitas. O que a pessoa identificada costuma desconsiderar nesses casos é quais são os atos que estão sendo dados como critério para permanecer no grupo: votar em um político que sabe-se que vai roubar, ou dar apoio a esse político mesmo caso ele cometa atrocidades? No caso de uma seita, tomar veneno porque é o critério para pertencer e ter o aval social que condiciona sua sociedade dado pelo grupo, mesmo quando o critério para esse pertencimento e existência envolver suicídio, como foi no caso da seita de Jim Jones?

Quem está “dirigindo” esses critérios sociais pode sequestrar significados valiosos à identidade e sequestrar ainda o pertencimento a determinados grupos que são valiosos para seus membros. Se fizerem isso, esses agentes de controle podem associar critérios que os beneficiem ao exigir do grupo que busca a identificação determinados atos que garantam seu próprio benefício. É o caso, por exemplo, do sequestro do cristianismo por certos atores políticos que exigem determinados atos políticos de seus fiéis para conceder aos membros desse grupo a leitura valiosa à identidade de que, para aquele grupo, o sujeito continua validado cristão ao obedecer os critérios políticos estabelecidos pelo pastor.

Finalmente, existem aspectos importantes sobre a potência desses mitos políticos e de seus amálgamas na sociedade contemporânea, tendo em vista que a identificação política ganhou cada vez mais protagonismo para a construção da identidade e das disputas sociais.

Nas guerras entre católicos e protestantes da Europa no medievo, existiam certamente componentes políticos; mas esses componentes estavam tão vinculados às identidades religiosas que seria difícil separá-los. A prioridade estava na identificação religiosa, mais do que nos posicionamentos políticos, se não para as elites que talvez não ligassem tanto para isso sempre, pelo menos no povo que era quem disputava essas questões mais frequentemente.

É importante dizer que sempre existiram atores motivados principalmente por motivos políticos que usavam a religião como um verniz para suas verdadeiras razões; mas é importante também dizer que esse verniz se tornou menos necessário com a secularização da sociedade. Não é que não exista ainda, só não é mais tão protagonista assim, pelo menos por enquanto.

Explicando outra vez com exemplos: o apoio da maior parte dos evangélicos foi com certeza um fator importante para a viabilidade de Bolsonaro na política; mas Lula não precisou se vender como o “candidato dos católicos” para enfrentar Bolsonaro nas urnas. A religião segue parte da discussão e a identificação política pode e costuma ser construída atrelada à identificação religiosa, inclusive com uma delas associada por critérios e amalgamada à outra em boa parte dos casos de um país tão religioso quanto o Brasil (generalização presente nos preconceitos como “é preciso ser de direita para ser cristão”, ou no menos comum “é preciso ser ateu para ser de esquerda”).

É de se considerar se, conforme perde sua potência para definir os conflitos políticos, a identificação religiosa não abre espaço para que a identificação política seja talvez uma substituta para construir as bases do grande mito do Eu. Se existir secularização (e é questionável se existe, ainda mais no Brasil), talvez a defesa apaixonada pela direita por parte de um conservador seja tão importante para seu senso de identidade quanto seria a defesa apaixonada do catolicismo para um católico.

Talvez, melhor do que ficar pisando em ovos para evitar sugerir que a religião perdeu potência nas identificações míticas, porque essa é uma ideia que me atrai embora eu saiba que não é exatamente verdade, faça mais sentido dizer que pelo menos o leque de potências nas identificações cresceu e que as associações ficaram mais descentralizadas.

Posso pelo menos considerar hipoteticamente que exista hoje uma pessoa priorizando sua identificação política, uma pessoa que se sinta mais confortável em se identificar como semelhante aquele que partilhar dessa identidade política, do que identificar como semelhante aquele que partilhar de outras identificações possíveis. Para dizer isso de forma menos abstrata e com um exemplo: para um evangélico de direita, talvez seja mais importante manter amizade com um ateu de direita do que com um evangélico de esquerda. Nas disputas medievais, esse tipo de escolha seria um tanto quanto impensável: em nenhuma hipótese um protestante se aliaria a um católico de qualquer maneira, até porque via de regra seus interesses políticos estariam muito mais fortemente vinculados aos seus interesses religiosos.

Outro exemplo mais fácil é o do crescente fenômeno da identificação mítica pelo consumo. Uma pessoa que defende apaixonadamente sua identificação como fã da franquia Star Wars, uma pessoa para quem essa identificação seja prioritária em sua construção de identidade, possui uma experiência tão fanática, e diria talvez até tão religiosa, com os produtos desta franquia quanto um católico terá com os elementos de sua religião, ou uma pessoa de direita terá com os discursos de seu posicionamento político.

Em todos esses casos, eu gostaria de retomar o básico (antes de complicar mais um pouco) ao lembrar que as identificações míticas são construída para garantir o senso de existência, um alívio terapêutico e um Eu e um Outro construídos para a identidade. Ao se identificar como de esquerda, há uma série de associações ao grande mito do Eu que são estabelecidas, uma série de associações ao grande mito do Outro que são portanto relegadas para a direita se essa for vista como absolutamente oposta à esquerda, há um alívio terapêutico para a ilusão mais convincente do mito do Eu que faz com a pessoa se sinta menos “perdida” de si e mais segura dos seus comportamentos prévios, presentes e até numa probabilidade dos comportamentos futuros, enfim, há uma série de seguranças, expectativas míticas, definições para perceber e construir uma hipótese do Eu e uma hipótese do Outro.

E finalmente, com base nisso tudo, é importante lembrar que para que essas identificações aconteçam elas precisam ser em alguma medida convincentes e, para serem míticas, em algum nível prazerosas, capazes de resolver determinadas precariedades como ansiedades e inseguranças. Vamos falar mais para frente sobre algo que até agora propositalmente evitei, como as identificações negativas de pessoas que se identificam como “ruins” ou “feias”, mas adianto que mesmo nessas existe ainda o alívio de se definir como alguma coisa, que ainda é melhor do que a incerteza de não conseguir se definir como coisa nenhuma.

Nos argumentos dos conflitos associativos, como em todos os debates que propomos entre os amálgamas e seus devidos critérios, é necessário existir ainda um componente mítico pelo qual “vale a pena” lutar. Se alguém me desmentisse de que sou de esquerda, mas eu não retirasse nenhum proveito de ser de esquerda ou não, daí não existiria reatividade para tentar defender minha posição, seja na defesa ao meu critério de esquerda, seja me adequando a um critério novo. Se existe o ato de proteção à identificação com o mito, é porque o mito possui alguma função terapêutica, nem que seja a de ser suficientemente convincente enquanto retrato do eu para que sinta que me conheço; se um mito foi escolhido em detrimento de outros para ser aquele que gera identificação, é porque esse mito mais do que outros é capaz de gerar essa função terapêutica e esse convencimento.

O caso político pode ser complicado um pouquinho nesse sentido porque, como mencionei, existem benefícios sociais da leitura como participante de determinados mitos. Mas normalmente esses benefícios sociais não são suficientes para gerar uma identificação real. Podem, se muito, como no caso que dei lá atrás sobre Dorian Gray, impor uma performance social do que é esperado para colher determinados frutos. Eu tenho certeza que boa parte dos políticos é cínica demais para acreditar verdadeiramente em qualquer coisa, mas eles são capazes de estabelecer uma performance convincente quando interpretam o significado social que é esperado por seus grupos de interesse para conquistar determinados benefícios.

Mas para além desse cinismo, quero falar dos casos em que existe identificação real porque, de certa maneira, a sustentabilidade de mitos depende de uma paixão real de alguém em algum lugar, mesmo que oportunistas cínicos se aproveitem dessa autenticidade depois. Mitos precisam ser testados e provados nessa capacidade de gerar identificação para alguém, antes que possam ser tornados posteriormente oportunidades retóricas para aqueles que não acreditam neles.

Portanto, quero falar sobre a viabilidade mítica das narrativas políticas, explicando algumas questões que acho importantes sobre como acontecem as transformações dessa viabilidade devido a questões como os processos históricos, a cultura de consumo e as novas tecnologias.

Capítulo 12: A viabilidade política dos mitos (e uma crítica longa ao que já escrevi antes)

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Para começar essa outra parte da discussão, queria antes voltar a um ensaio anterior que fiz e que é de longe um dos meus textos mais problemáticos, apesar de ter sido muito importante para mim na época e fundamental (no sentido mais literal da palavra, como uma fundação que deu base mesmo) para que esse ensaio de agora existisse. Vou fazer essas revisita apresentando os principais pontos desse ensaio antigo e criticando os principais equívocos do Rodrigo de cinco anos atrás.

Escrevi e publiquei o Ensaio sobre o Amanhã em meados de 2017, quando eu tinha 22 anos de idade. Antes que eu me aprofunde um pouco mais nos problemas específicos, gostaria de começar com duas abstrações mais vagas:

  1. Primeiro a de que, em intenções e teorias, muito do que eu queria expressar lá atrás é semelhante ao que quero expressar nesse ensaio aqui.
  2. Segundo, que os principais erros que tornaram aquele ensaio problemático foram minhas empolgação, ambição e imaturidade.

Com essas abstrações dadas, vamos aos exemplos de caso que explicam isso e detalham os problemas e intenções daquele trabalho. Vou constantemente usar exemplos do que fiz diferente aqui, já que esse ensaio de agora em muitos sentidos é uma revisão em que apliquei as lições que aprendi com meus equívocos anteriores.

Minha vontade no Ensaio do Amanhã era mais ou menos a mesma que tenho agora: falar sobre estruturas míticas, sobre individuação, sobre todos os processos que estamos discutindo até aqui. Mas dois problemas amaldiçoaram esse ensaio anterior. Primeiro, foi um foco em tratar de tudo isso a partir de uma aplicação a casos políticos da época, o que serviu para deixar o texto (ironicamente devido ao título) muito datado. Segundo, foi a intenção de argumentar como técnico a respeito desses casos políticos mencionados, algo que se ainda não tenho propriedade para fazer aos 28 anos, tinha menos propriedade ainda para querer fazer aos 22.

É uma nuance de abstração que acredito que, olhando em retrospecto, faz sentido que eu não possuísse na época, até porque só alcancei a lucidez que apliquei nesse trabalho de agora pelo meu incômodo com os tais problemas desse meu trabalho anterior. Se eu queria falar sobre a meritocracia como um mito, eu achei que precisava me posicionar a respeito disso de alguma maneira, considerando as questões práticas e critérios do que esta meritocracia era. Mas esse posicionamento me prejudicou muito: eu não era técnico em quase nenhum dos exemplos que queria dar, muitos deles exemplos abrangentes que envolviam grandes complexidades sistêmicas e viabilidade estratégica de determinadas propostas macroeconômicas, e a ênfase dada aos detalhes técnicos dos meus exemplos tirou o foco da leitura mítica que era o que deveria importar para esses exemplos serem sequer mencionados.

Nesse ensaio de agora, eu soube explicar melhor por que quis falar de meritocracia, quando a mencionei, pelo apelo mítico que essa meritocracia pode ter a determinadas pessoas; consegui tangenciar a partir disso a arriscada discussão, que pouco domino, sobre as tecnicidades da meritocracia como proposta em si, como algo que pode ou não funcionar na prática. O que me interessa aqui não é a existência ou inexistência prática, é o apelo, o desejo de que algo exista ou não exista, a função de algo como narrativa mítica.

Em 2017, eu não tive essa esperteza e me aprofundei em uma série de debates complicados que, reitero, eu não teria propriedade para me posicionar ainda hoje, quanto mais lá atrás. Agora, eu consegui fazer o difícil recorte de que, independente de qualquer conteúdo que eu esteja mencionando, a menção é sempre para a viabilidade mítica desses conteúdos, nunca para sua viabilidade em aspectos práticos, nunca uma análise de sua existência (ou inexistência) no “mundo real”. É por isso que pude num só fôlego mencionar deuses gregos e a meritocracia como sinônimos no quesito do apelo mítico, sem ter que me debruçar sobre provar a existência ou inexistência nem de deuses, nem de sistemas meritocráticos. O que interessa é que existam pessoas que acreditem ou queiram acreditar na existência dessas coisas.

Mas esse foi só o primeiro dos equívocos do meu Ensaio sobre o Amanhã e acredito que esse é um erro “menos grave”, embora tenha prejudicado ainda boa parte do texto, por se tratar de um erro metodológico. Existem problemas mais graves nesse meu ensaio anterior, sendo que os considero mais graves porque se tratam de erros conceituais.

E um dos maiores equívocos foi minha acepção na época de que direita e esquerda eram ideias ultrapassadas que em certo sentido não existiam mais. Quero me aprofundar na lógica que regeu esse meu posicionamento lá atrás e na sequência já criticar o que então eu acreditava, explicando o que me fez mudar de opinião.

Quando disse lá em 2017 que esquerda e direita não existiam, minha lógica foi mais ou menos esta:

  1. As pautas da esquerda e da direita eram principalmente tradições legadas do século vinte, sobretudo nos conflitos da Guerra Fria e, mais profundamente, na tradição das disputas sindicais que foram talvez o grande tema da relação entre classes durante toda a fase de industrialização do mundo;
  2. Com o fim da Guerra Fria, numa acepção que na época eu entendia bem próxima à do “fim da história” no sentido de Fukuyama, com o neoliberalismo e a hegemonia norte-americana desde meados dos anos 90, com a crescente automação de funções que erodiu a tradicional relação entre classes e, finalmente, com o esvaziamento sindical decorrente da perda de poder de barganha por uma classe trabalhadora organizada, decorrente tanto do neoliberalismo que exporta trabalhos quanto da automação que os extingue, eu acreditava que as pautas que definiam direita e esquerda no século vinte estavam já mais ou menos resolvidas, para bem ou para mal, e que o apego a mencionar essas pautas era uma miopia de “anacronismo inverso” que tentava “século-vintezar” o presente.
  3. Quando olhava para as pautas que realmente entendia como inéditas de nossa era, disputas importantes do século vinte e um, eu observava principalmente a crise narrativa dos estados-nação de um lado, com tentativas resolver essa crise principalmente via novas narrativas mais exageradas e apaixonadas, e de outro lado uma nova proposta de organização social descentralizada, construída principalmente via redes digitais, em que a crise narrativa do estado-nação gerava a oportunidade de uma categoria nova que era concomitantemente mais secular e cínica às grandes narrativas, enquanto também era mais suscetível a mitos personalizados via algoritmos, e ainda era participante de novos mitos mais amplos em escala mundial. Nesse sentido, eu argumentava que um adulto cosmopolita de trinta anos do Brasil tem mais semelhança, devido ao seu consumo digital de informação, ao que é culturalmente um adulto cosmopolita francês ou argentino, frente a um também brasileiro de outra idade e de outro conjunto de valores, e que a identidade nacional pouco significava frente esses novos agrupamentos culturais digitais que ultrapassam as fronteiras dos países.

Agora em 2023, os argumentos que me fazem perceber que eu estava errado anos atrás são os seguintes:

  1. É equivocado acreditar que os critérios para o que é direita e o que é esquerda deveriam ser cristalizados em qualquer momento do tempo, quanto mais nas questões tradicionais do século vinte e menos ainda naquelas da Guerra Fria. Enquanto amálgamas políticos, esquerda e direita possuem uma história muito mais longa e muito mais plasticidade e dinamismo de significados, com constantes revisões nos critérios de cada uma. Fixar que esquerda e direita são “tradições”, no sentido que precisem ser rígidas a qualquer determinado conjunto de ideias e responder e remeter a algo que antes foram, desconsiderando o que podem ser ou são agora, é um equívoco porque ignora a constante transformação dos critérios associativos dos amálgamas políticos.
  2. Nada impede que as pautas que eu percebi como mais vinculadas ao século vinte e um, como o neoliberalismo pós-queda da União Soviética, a automação, etc., sejam amalgamadas para as direitas e esquerdas que existem (fenômeno que de fato ocorre); se os amálgamas da esquerda e da direita não precisam cristalizar seus conteúdos a partir dos critérios do passado, isso também quer dizer que podem sempre adicionar novos critérios para englobar questões atuais. A crítica à automação ainda é uma pauta profundamente vinculada às esquerdas, mesmo que no presente não exista suficiente coesão e participação sindical que organize movimentos políticos realmente transformadores para a pauta.
  3. Finalmente, meu erro mais grave na lógica que seguia: eu acreditava que pessoas diferentes, caso tivessem opiniões semelhantes, perceberiam essa semelhança e abandonariam seus grupos antigos para formar novos grupos a partir de suas opiniões em comum. Não é assim que amálgamas políticos funcionam.

Esse último ponto é aquele que quero aprofundar na análise.

Da maneira muitíssimo ingênua que eu enxergava as coisas, já que os conflitos que estabeleciam direita e esquerda eram questões ultrapassadas, novas prioridades ao presente se consolidariam para além das divisões anteriores. Um “argumento” que parecia evidenciar esse movimento era de que tanto pessoas que se identificavam como de esquerda quanto pessoas que se identificavam como de direita podiam compartilhar críticas muito semelhantes a determinados fenômenos. Diante dessas críticas semelhantes, eu acreditava que essas pessoas poderiam abandonar sua divisão anterior e formar um novo grupo baseado nessas semelhanças. EU acreditava que esses seriam os grupos para viver os embates políticos do atual momento.

Vamos trabalhar com o exemplo mais significativo de como eu acreditava que as coisas aconteciam. Só a partir desse exemplo, muito do que era absurdo sobre meu antigo posicionamento vai transparecer.

Digamos que uma pessoa de esquerda percebesse que, na verdade, um conflito mais relevante nas disputas contemporâneas é aquele entre as organizações de narrativas , estruturas e questões nacionais, frente a um imperialismo de mercado neoliberal internacional. Uma pessoa desse tipo argumentaria que o Brasil não deveria se render às análises de crédito de fundos internacionais para frear seus programas sociais, algo que prejudica brasileiros em prol de investidores de países ricos, no sentido em que se o Brasil quiser se endividar para acabar com a fome no país, ou se o país quiser estatizar determinados setores de sua indústria, ou ainda se quiser realizar uma reforma agrária muito profunda, a opinião dos mercados internacionais não deveria importar, nem ameaças que esses mercados tenham para com esta decisão.

Digamos que uma pessoa de direita, por sua vez, percebesse como um conflito relevante nas disputas contemporâneas a questão de reafirmação da autonomia nacional, frente à influência de aculturamento e padronização internacionais. Uma pessoa desse tipo argumentaria que se o Brasil é um país proeminentemente cristão, não deveria se moldar às instituições laicas e seculares por pressões internacionais que partissem das relações diplomáticas com outros países, com a ONU, ou com as pressões de determinadas culturas corporativas, especialmente aquelas vinculadas a determinados critérios para investimento por parte de alguns fundos com determinados compromissos éticos e discursivos. Se o Brasil é um país com problemas como racismo, intolerância religiosa, homofobia, desigualdade social, violência policial, milícias, corrupção, tráfico ou crime organizado, essas questões deveriam ser localmente resolvidas (ou, mais precisamente, localmente deixadas de propósito sem resolução), de acordo com a cultura e as prioridades do país, e nenhuma tentativa de influência de órgãos externos deveria ser considerada, fossem via propaganda militante de determinadas multinacionais, via atuação de ONGs, via notas de repúdio de embaixadas, ou via a recusa de investir em algo no Brasil pelo fracasso do país em atingir determinados critérios que outros agentes externos estão pedindo que ele atinja.

De certa forma, por mais que as especificidades dos casos em que se incomodam variem muito, essas pautas são semelhantes na sua essência: tanto essa pessoa de direita quanto essa pessoa de esquerda seriam críticas da influência internacional de alguma maneira e gostariam que questões locais fossem priorizadas.

Na minha visão ingênua e otimista de 2017, essas pessoas de esquerda e direita conseguiriam perceber isso, abandonar suas antigas divisões entre esquerda e direita e formar um novo grupo em que se identificassem como os defensores da priorização das pautas locais, enquanto críticos às pautas internacionais.

O que aconteceu na realidade foi muito mais complicado do que isso. O amálgama associativo das esquerdas construiu sua própria crítica às influências internacionais, especialmente no amadurecimento de sua crítica ao neoliberalismo; nas direitas, a crítica às influências internacionais evoluiu para o absurdismo das teorias sobre uma conspiração globalista.

E chegamos agora ao termo globalista que, dentre todos os termos que já usei em todos os textos que já escrevi, é de longe aquele que mais me arrependo de ter utilizado.

Em 2017, cometi o enorme erro de nomear como globalismo esse fenômeno de crescente pressão e aumento da relevância das articulações internacionais, frente a um esvaziamento do estado-nação tradicional com a redução da autonomia e relevância deste. Embora esse fenômeno aconteça em várias escalas, eu queria priorizar o aspecto narrativo, esse em que o Estado perde, enquanto mito, cada vez mais a potência para construir, impor e tornar relevante uma construção de identidade para algo como “brasileiro”, especialmente frente a novas identidades digitais que são internacionalizadas através das comunidades de nicho online.

Eu estava correto que esse fenômeno de fato existe e nisso continuo em 2023 concordando com o Rodrigo de 2017. Mas eu estava errado sobre praticamente todo resto.

Para começar, sobre o equívoco do nome. Em 2017, o bolsonarismo ainda estava se articulando e o globalismo ainda era um termo disputado. Lembro que, nas pesquisas para aquele ensaio, encontrei por exemplo um artigo publicado por um professor da FGV lá no ano 2000, intitulado “Entre o globalismo e o velho nacionalismo”. O texto argumentava que o globalismo seria “uma ideologia que afirma que com a globalização os estados nacionais perdem sua autonomia” e que o Brasil deveria ser nacionalista, protegendo o mercado de trabalho interno e o capital nacional: uma posição que para mim na época parecia suficientemente lúcida e suficientemente técnica.

Ainda assim, mesmo em 2017 eu tinha certas apreensões porque desde então eu já estava ciente de que algumas das leituras mais problemáticas do termo existiam. Num dos equívocos que também mostram minha ingenuidade da época, achei que, frente a essas disputas do significado social do termo globalismo, eu poderia me resolver com (adivinhem?) nada mais do que um pequeno glossário.

Após o último capítulo do ensaio original, adicionei um pequeno apêndice chamado “Alguns necessários adendos sobre terminologia, indicações de bibliografia e agradecimentos”. Já começa errado por aí, por ter feito a ordem errada e deixado o glossário por último, lição que também aprendi para onde posicionei a “parte glossário” do ensaio de agora. Naqueles “necessários adendos” no ensaio de 2017, fiz questão de posicionar minha leitura do termo globalismo da seguinte maneira:

Outro termo que usei e que é especialmente vago e utilizado de muitas formas, algumas mais lúcidas e outras mais questionáveis (sendo base para muitos mitos, ideologias reacionárias e correntes conspiratórias, inclusive), é globalismo. Aqui, pretendo por globalista definir o funcionamento do quarto setor, que tenciona a dissolução das grandes narrativas do segundo e terceiro setor, a destruição das posses destas duas e o advento de um novo tipo de poder pautado em suas capacidades algorítmicas e em sua proposta de domínio da cultura (a estratégia de todos ou ninguém que citei). Qualquer definição além desta não me cabe, especialmente aquelas que utilizam o globalismo como justificativa para preconceito e ódio. Mesmo assim, é um fenômeno real e precisa ser discutido lucidamente para além das ideologias por ele afetadas (que sempre o demonstrarão da forma mais apocalíptica possível) ou por ele beneficiadas (que tentarão, na medida do possível, esconder sua existência). Acredito que o estudo sério e neutro sobre o que o globalismo efetivamente é seja uma das necessidades mais importantes de nossa época porque, quando não é feito (como acontece com os estudos sobre a crítica da dialética relativista), se abre espaço para que adversários ideólogos apontem os fatos a seu respeito e os utilizem na construção de seus próprios mitos. Considero isso muito perigoso. Mas tive ainda o desejo nesta série de igualar o globalismo aos seus adversários: ele não é melhor nem pior do que eles, somente diferente. Exaltá-lo como a solução última de todos os problemas, um anjo salvador que não merece ser questionado, é tão perigoso quanto demonizá-lo simplesmente.

Evidentemente, essas minhas boas intenções de tentar posicionar uma leitura autogerida do termo globalismo foram esmagadas pelas disputas sociais do termo durante os anos seguintes. Em 2023, eu não tenho nenhuma expectativa de “redimir” o termo globalismo porque os últimos anos serviram para consolidar a posição dessa palavra naquele lugar dos significados conspiratórios da direita radical. Globalismo hoje é termo do amálgama das direitas que participa convenientemente de associações das mais diversas para dar liga a este campo, desde o antissemitismo dos que acreditam numa cabala de elite mundial judaica que governa o mundo via globalismo, até aqueles que acreditam que o globalismo “impõe a homossexualidade como controle populacional”, incluindo ainda aqueles que acreditam que o globalismo esconde a “verdade” de que a Terra é plana. Por mais que “globalismo” tivesse outros significados possíveis e alguns deles até mesmos consolidados por autores acadêmicos antes disso (como no exemplo que dei sobre um acadêmico que já usava essa palavra em 2000), a ideologia das direitas conseguiu sequestrar esse termo para si de tal maneira que hoje o termo é irrecuperável para qualquer outro uso.

Embora eu não tivesse como saber exatamente o que aconteceria com a ideia de globalismo no Brasil durante os anos seguintes com Bolsonaro, em 2017 muito dessa retórica já existia em Trump, coisa que desconsiderei por ignorância minha na época a respeito das retóricas do ex-presidente americano. Além disso, em 2017 eu também não estava tão familiarizado com as críticas das esquerdas ao que categorizam como a crise do neoliberalismo (talvez por pura ignorância minha naqueles tempos, talvez por essa discussão existir com menos força naquela época). Então eu não conhecia muito naquele momento sobre o quanto o termo globalismo já estava mergulhado nas direitas, não tinha como prever o quanto mergulharia mais ainda nos anos seguintes, nem conhecia nenhuma alternativa da discussão nas esquerdas para que eu pudesse pelo menos estudar melhor os termos.

E para além de tudo isso, pelo pouco que eu já conhecia sobre o posicionamento nos amálgamas políticos da época para o termo globalismo, era minha intenção assumir uma “linguagem neutra” no ensaio, emprestando termos que encontrasse na esquerda e na direita para tentar criar a ilusão de estar além dos vieses. Como eu usava muitos termos da esquerda quando criticava o capitalismo tardio (aliás, a própria ideia de “capitalismo tardio” é um tanto quanto inerentemente de esquerda), acreditei que usar o termo “globalismo ”serviria para equilibrar um pouco as coisas. Acreditei que poderia estar a salvo de qualquer interpretação equivocada ao meramente adicionar uma nota de rodapé no fim do texto inteiro dizendo algo como “globalismo para mim é só isso aqui, não me interessam as maluquices que outras pessoas chamam de globalismo!”.

Por mais que seja repetitivo, queria ressaltar mais uma vez o quanto fui ingênuo em todas as decisões que tomei relacionadas a isso lá em 2017.

Hoje em dia, é interessante perceber como tanto nas esquerdas quanto nas direitas há grupos que são críticos da influência internacional e da dissolução do poder dos estados nacionais, mas como essa crítica é deformada pelas associações e alianças que cada lado precisa fazer com outras ideias do seu amálgama político particular. Quero dar o exemplo de como isso acontece.

Tanto direita quanto esquerda reconhecem que há sintomas problemáticos: a interferência internacional corrói a autonomia do estado nacional, reduz o poder de ação deste estado, beneficia atores já estabelecidos no cenário internacional em detrimento dos atores nacionais em desenvolvimento. Mas os culpados desses sintomas precisam ser muito diferentes.

  • Nas esquerdas, o culpado desse estado das coisas é o mercado neoliberal. São as forças do mercado internacional e do neoliberalismo que estão impondo suas vontades e cerceando as possibilidades de ação dos estados nacionais. Nessa crítica, o neoliberalismo é entendido ou como um passo inevitável do capitalismo tardio em seu processo imparável, ou então como uma adaptação exagerada do capitalismo em certas frentes (nesse segundo caso, sem considerar que essa adaptação precisaria ter sido uma progressão linear dos processos sistêmicos de tal capitalismo). Em qualquer um dos caminhos, é argumentado que esse neoliberalismo está em crise, como está em crise o próprio capitalismo dito como tardio, e que o ressurgimento de nacionalismos extremistas é um efeito colateral dessa crise. Ignora-se um pouco nessa leitura das esquerdas os aspectos mais culturais desse neoliberalismo, como na imposição da hegemonia cultural de Hollywood, porque existe uma aliança entre essa ala cultural da internacionalização e os valores progressistas. Hollywood e grandes empresas no geral fazem um bom negócio ao garantirem um pouco de justificativa moral para sua existência, ao supostamente cumprirem alguma função social, e ganham dinheiro dos grupos aos quais se alinham que acreditam nessa função social que supostamente estão exercendo.
    Resumindo, é uma leitura que entende o processo como uma globalização, usando este termo, como consequência das políticas neoliberais, com o mercado corroendo os estados.
  • Nas direitas, o mesmo fenômeno da redução do poder dos estados nacionais é observado, mas evidentemente não é possível associar essa consequência com um causador como o capitalismo — nas direitas, o capitalismo enquanto sistema deve ser defendido. Então, desconsiderado o neoliberalismo como agente da internacionalização, sobram dois caminhos mais ou menos conectados: no primeiro, os responsáveis são alguns indivíduos poderosos e a culpa é dessas pessoas em particular, não de qualquer sistema em larga escala. Nesse caso, a culpa é de George Soros que usa o capitalismo de determinadas maneiras; a culpa é de alguma elite conspiratória que se reúne no Clube de Bilderberg para ditar como vão acabar com os estados-nacionais e impor seu “globalismo”; a culpa é das elites judaicas, russas, chinesas e/ou islâmicas que querem destruir o Ocidente cristão; e assim sucessivamente, com cada interessado podendo adicionar no grupo da conspiração aquilo que particularmente odeia. Para além disso, existe o aspecto em que as direitas consideram que o fenômeno é ideológico, o dito “marxismo cultural” — e esse marxismo cultural pode ser visto como causa em si mesmo, ou como apenas uma ferramenta das elites conspiradoras antes mencionadas que utilizam dos “idiotas úteis” da esquerda para seus fins de desestabilização. Por mais que essa leitura seja muito mais míope e equivocada, ela pelo menos observa mais do que a leitura das esquerdas o aspecto cultural do fenômeno.
    Resumindo, é uma leitura que entende o processo como um globalismo, usando este termo, como consequência das políticas marxistas, com a ideologia e grupos de poder específicos corroendo os estados, e nessa leitura o capitalismo e o mercado neoliberal não são culpados de nada.

Quero usar um único exemplo que mostra melhor as perspectivas desses dois amálgamas para a questão da internacionalização: a Coca-Cola.

Vamos tomar por exemplo a ideia de que a Coca-Cola está presente no Brasil, tanto com fábricas de refrigerantes quanto com uma presença institucional e comunicacional. Para tornar o exemplo mais específico, ao mesmo tempo que mais hipotético, digamos que a Coca-Cola acabou de fechar uma fábrica no interior de São Paulo porque está produzindo em uma fábrica no Paraguai onde a mão de obra é mais barata; vamos dizer ainda que a Coca-Cola está reduzindo a fatia de mercado da Dolly, que é um dos seus competidores nacionais. E digamos também que ao mesmo tempo em que fez tudo isso, a Coca-Cola acabou de lançar uma campanha publicitária contra a homofobia como patrocinadora da Parada Gay.

O agente que fez todas essas coisas ainda é uma mesma Coca-Cola, uma única entidade que agiu defendendo seus interesses enquanto uma multinacional gigantesca. Mas as esquerdas e direitas vão focar em diferentes e determinados aspectos da empresa.

  • As esquerdas vão focar nos aspectos do mercado neoliberal. Vão mencionar, com razão, que a fábrica fechada da Coca-Cola está prejudicando os trabalhadores brasileiros que precisam competir com a mão de obra paraguaia e que são precarizados e recebem menos em decorrência da competição num mercado internacional que busca mão de obra barata. Vão questionar que existe um desequilíbrio na ideia de que a Coca-Cola possa explorar o mercado interno brasileiro vendendo Coca-Cola por aqui, mas sem que tenha que gerar empregos e produzir seus refrigerantes por aqui; vão questionar como é injusto que, considerando que a mão de obra é paraguaia e os consumidores são brasileiros, uma parte do lucro seja levado até os Estados Unidos porque lá é a sede da companhia. Vão discutir como é problemático que a Coca-Cola esteja competindo de maneira desproporcional com a Dolly, reduzindo as possibilidades de mercado desta segunda e com isso prejudicando ainda mais o mercado interno do Brasil e a geração de empregos nacionais. Essa esquerda poderia propor um boicote à Coca-Cola e uma preferência pela compra de Dolly porque a primeira é uma multinacional que pouco contribui para os empregos no país, enquanto a segunda é uma marca nacional que gera demanda de empregos para brasileiros.
  • As direitas vão desconsiderar todos esses aspectos que acabei de mencionar dizendo que são todos parte da “mão invisível do mercado”, questões do capitalismo que devem ser deixadas para seguir seu próprio curso com o mínimo de interferência do Estado ou de leis nacionais. Em compensação, as direitas vão focar muita atenção na interferência da Coca-Cola na cultura e na política nacionais, criticando o posicionamento da empresa em patrocinar a Parada Gay e recriminar a homofobia. Vão dizer que a Coca-Cola não tem direito de tentar intervir nos posicionamentos dos brasileiros sobre essas questões, que enquanto empresa não é seu lugar nem seu papel este de se meter com nada disso, e talvez proponham até um boicote à Coca-Cola. O boicote não será feito para fortalecer a Dolly, mas a Dolly pode ser beneficiada porque faz comerciais “autenticamente nacionais”, sem mencionar nada em suas musiquinhas repetitivas que possa ser entendido como controverso para um público brasileiro conservador. A Coca-Cola, enquanto isso, merece a punição porque está incomodando determinadas sensibilidades e “se metendo no que não devia” com suas propagandas progressistas que essa direita diria como lacradoras. Nessa leitura, se um governo de direita cristã conservadora foi eleito e não quiser falar nada sobre diversidade sexual, incomoda que a Coca-Cola possa insistir em pautar parte da discussão passando por cima dos desejos do governo nacional.

Por motivos muito diferentes, tanto essa direita quanto essa esquerda poderiam propor um boicote à Coca-Cola; ao mesmo tempo, por motivos muito diferentes, tanto essa esquerda quanto essa direita poderiam focar ou desconsiderar certos aspectos da Coca-Cola como estrutura. Por motivos diferentes, tanto essa direita quanto essa esquerda podem criticar partes dessa Coca-Cola e talvez, também por critérios muito diferentes, defender a Dolly.

Porque é conveniente aos seus interesses, as direitas ignorariam a presença dessa Coca-Cola como uma força de mercado neoliberal internacional que intervém na economia nacional tanto quanto (na verdade muito mais) intervém na cultura nacional. Porque é conveniente aos seus interesses, as esquerdas ignorariam a presença dessa Coca-Cola como um agente de comunicação que é aliada às suas pautas progressistas como parte de uma estratégia mais geral para ganhar endosso e justificativa moral no próprio lucro e próprio poder, relevando que esse agente “aliado” que reproduz os discursos com que as esquerdas concordam na esfera das lutas por costumes é o mesmo agente que aprofunda o capitalismo neoliberal ao qual as esquerdas vão contra na esfera das lutas de classe.

Essas contradições e semelhanças mostram muito sobre a situação das alianças amalgamadas de conveniência. A Coca-Cola é grande o suficiente para incorporar aspectos que agradam e desagradam às esquerdas e direitas simultaneamente; cada uma dessas vai se aliar ao que lhe agrada e criticar o que lhe desagrada, incapaz de ver o todo de uma única Coca-Cola que utiliza desses aspectos só nas aparências contraditórios com um objetivo único e comum: ser uma empresa que se sustenta, cresce, gera lucro e se estabelece em mercados internacionais, agradando um pouco tanto gregos quanto troianos para impedir que desestabilizem sua estrutura.

Porque não podem passar por cima dos seus amálgamas associativos originais, nem sacrificar o pertencimento a esses amálgamas, agentes críticos da internacionalização tanto nas direitas quanto nas esquerdas precisaram adaptar suas críticas às realidades, vieses e gostos de seu próprio campo. Quem quer criticar a internacionalização nas direitas pode fazer isso focando em propagandas progressistas, mas não pode mencionar críticas ao mercado capitalista neoliberal; quem quer criticar a internacionalização nas esquerdas pode fazer isso focando nas críticas ao mercado capitalista neoliberal, mas não pode focar nas propagandas progressistas.

De certa forma, eu acredito que é mais importante discutir os aspectos do mercado neoliberal do que aqueles das propagandas progressistas, inclusive porque acredito que as próprias propagandas progressistas são ainda decorrentes do mesmo mercado neoliberal (e porque na verdade o problema não é serem progressistas, mas serem propagandas, e o poder dado à comunicação de quem paga mais); mas fato é que não existe uma palavra em consenso social que reúna os aspectos desconsiderados pelas direitas e pelas esquerdas ao problema; globalismo é uma leitura que desconsidera o mercado, neoliberalismo é uma leitura que costuma desconsiderar as alianças das multinacionais com discursos progressistas. Embora esse aspecto dos discursos seja menor do que o aspecto de mercado e de indústria, eu não acho que é um aspecto irrelevante que possa ser totalmente ignorado.

No que diz respeito a essa aliança das multinacionais com os discursos progressistas, existe uma miopia pela necessidade das esquerdas de não mencionar o inconveniente. É incômodo às esquerdas, especialmente as liberais, admitir que muitas vezes as mesmas multinacionais que criticam em seus feitos nos mercados neoliberais são as multinacionais capazes de agir como os agentes de veiculação mais poderosos para algumas de suas pautas mais queridas. Nenhuma campanha governamental contrária à homofobia teria budget suficiente para competir com uma campanha do mesmo tema feita pela Coca-Cola. Além disso, como mencionamos, governos de direita quando eleitos podem nem mesmo ter interesse em fazer campanhas do tipo, enquanto o suporte da Coca-Cola às pautas de diversidade está se consolidando nas últimas décadas como algo mais estável e independente das variações consequentes da alternância entre poderes.

Porque esse é um tema em disputa, profundamente amalgamado às esquerdas e direitas em algumas de suas características e nunca visto em sua totalidade, simplesmente não existe “termo técnico” que seja capaz de englobar todos os aspectos com nuances que as alianças das direitas e esquerdas precisam ou não desconsiderar. Essa discussão técnica pode existir se muito na academia — e olhe lá. Hoje em dia, é um pouco de praxe assumir que as esquerdas e a academia podem discutir influência internacional nos mercados, através de sua crítica ao neoliberalismo, enquanto não existe discussão séria nem na academia sobre a influência internacional neoliberal na cultura e nas discussões políticas, já que esse tema ficou relegado aos conspiracionismos absurdistas da “cabala judaica do marxismo internacional de George Soros”, ou seja, às leituras de globalismo das direitas. Nem mesmo as direitas mais lúcidas e menos radicais querem mexer nesse vespeiro, focando muito mais em exaltar o neoliberalismo que as esquerdas criticam do que em criticar uma possível influência progressista e de esquerda das mesmíssimas multinacionais neoliberais que estão defendendo.

Essa falta da palavra específica dificulta muito a discussão e foi parte do meu desafio durante esses anos todos na tentativa de descobrir a maneira certa de revisar o que tinha escrito lá em 2017.

Eu acreditava que a crítica à influência internacional poderia unir pessoas que antes eram de direita e esquerda, esvaziando as esquerdas e direitas tradicionais. O que aconteceu é que as direitas e esquerdas tradicionais se mantiveram e repartiram a crítica à influência internacional em duas diferentes versões que se adaptassem melhor à divisão que já possuíam, no processo esvaziando um pouco a crítica à influência internacional porque era mais importante proteger as ideias de direita e esquerda. E como o que aconteceu foi tão inverso àquilo que eu acreditei, isso desestruturou completamente meu pensamento daquele tempo, tornando difícil retomar as ideias e saber como reorganizá-las após esse golpe tão profundo nas minhas antigas convicções.

Apenas porque é importante mencionar, eu discuti aqui o caso da crítica às internacionalizações porque achei que era o mais elucidativo, mas tanto nas direitas quanto nas esquerdas existe também quem seja crítico aos nacionalismos. Nas esquerdas, isso se expressa principalmente na crítica ao patriotismo exagerado como foi pauta do ufanismo-militarista de Bolsonaro; nas direitas, isso se expressa principalmente na crítica ao nacionalismo de mercado, como na existência de empresas estatais. A verdade é que dentro da esquerda existem setores pró nacionalismo e pró internacionalização que discutem entre si, enquanto nas direitas acontece o mesmo, com setores de direita pró internacionalização e setores de direita pró nacionalismo que também entre si discutem. Era por isso que eu acreditava que os setores pró internacionalização das esquerdas e direitas se uniriam para discutir com os setores pró nacionalismo das esquerdas e direitas, mas hoje essas discussões ficam ainda restritas aos seus amálgamas.

Por mais que partilhem no mínimo em essência de muitas opiniões, um crítico do nacionalismo de direita e um crítico do nacionalismo de esquerda ainda vão se manter distantes e se identificando mais fortemente aos seus “iguais” nos campos esquerda/direita, mesmo quando esses iguais forem defensores do mesmo nacionalismo que criticam. É mais importante ser ou não de direita, esses amálgamas tão amplos, do que ser ou não crítico do nacionalismo. E é por isso que, contrário ao que eu imaginava, seguem tão fortes quanto nunca as ideias de esquerda e direita como amálgamas políticos, associativos e míticos. Ambos os lados foram capazes de se reinventar para engolir novas discussões.

Mais do que isso, alguém de esquerda nunca vai se aliar a alguém de direita só porque ambos criticam a internacionalização, já que a maneira como criticam isso é muito diferente. As críticas, portanto, ficarão ainda inseridas nas discussões dentro de seus próprios amálgamas e pessoas de esquerda só discutirão internacionalização/nacionalização de forma construtiva com outras pessoas de esquerda, enquanto pessoas de direita só discutirão nacionalização/internacionalização de forma construtiva com outras pessoas de direta.

Também era muito difícil para mim entrar nessa discussão sem ser amalgamado de alguma maneira. Como esses termos estão em disputa e são profundamente marcados por suas associações políticas e leituras sociais, é muito improvável que eu pudesse analisar a comunicação progressista da Coca-Cola como parte desse fenômeno neoliberal sem que fosse lido por alguém de esquerda como um conspiratório globalista ao fazê-lo, tanto quanto seria improvável que eu criticasse a parte do mercado capitalista internacional desse fenômeno sem que fosse lido por alguém de direita como um marxista cultural se assim tentasse.

Como mencionei no começo dessa segunda parte, significados políticos muito raramente se curvam às vontades dos significados autogeridos.Eu aprendi minha lição quando fracassei ao tentar me posicionar com um “significado autogerido” de globalismo lá em 2017 que durante anos invariavelmente me associou com pessoas e discursos aos quais eu não gostaria de ter sido associado. Foi por isso que nesse ensaio me posicionei com minhas opiniões quando quis, deixando claro que eram opiniões meramente, e desisti da aposta por uma neutralidade discursiva que tentasse defender possíveis significados políticos autogeridos.

Ufa. Acho que com tudo isso já dito, eu terminei esse trecho em que eu queria criticar o que foi dito lá em 2017 pelo Rodrigo de 22 anos. Já consegui apresentar todas as maneiras como fui demasiadamente ingênuo e todos os pontos em que estive equivocado lá atrás. Sigamos em frente.

Capítulo 13: A função social dos mitos

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Tirando tudo isso da frente, quero falar um pouco sobre o que acertei lá atrás também e começar a aprofundar a discussão novamente na questão da viabilidade mítica das narrativas políticas.

Essa é a discussão que eu realmente queria ter tido em 2017, embora não soubesse na época me articular suficientemente para ser bem-sucedido nessa vontade; era uma discussão que eu poderia ter proposto sem ter feito a ousada e incorreta afirmação de que esquerda e direita não existem, inclusive porque essa discussão afeta ambas de maneira semelhante.

Essencialmente, é a discussão de que, para além de uma crise de sistemas práticos e técnicos, estamos vivendo uma crise mítica e narrativa que é influenciada por e também aprofunda outra grande crise da maneira como nos organizamos socialmente (e me rendendo a citar terceiros de novo, Lyotard especificamente e os movimentos pós-modernistas como um todo já fizeram constatações parecidas). Embora existam certamente conexões entre a crise mítica e a crise prática (é mais difícil acreditar em um sistema quando ele não parece estar dando retornos concretos), a crise narrativa acontece de maneira um pouco diferente dos seus efeitos mais evidentes no mundo prático, no sentido em que envolve questões mais sutis de perceber, embora com semelhante relevância. Questões essas de pertencimento, de apego, de construção de identidade e de identificação, de compensação e individuação, enfim, de tudo que discutimos nesse texto.

Uma crítica narrativa do capitalismo, por exemplo, é muito diferente de uma crítica técnica a partir da economia. Esse é um ponto que eu não compreendia bem em 2017 e para o qual consigo olhar atualmente com muito mais nuances. Quero dar alguns exemplos sobre isso.

Em 2017, um dos assuntos que trouxe para o Ensaio sobre o Amanhã era um “pós-capitalismo” que era defendido por um jornalista chamado Paul Mason a partir de uma abordagem marxista que tentava ser principalmente técnica e econômica. O livro citava ciclos econômicos, efeitos possíveis de determinadas tecnologias e, no geral, argumentava por uma crise e superação do capitalismo por razões técnicas e práticas.

Eu prometi poucos parágrafos para cima que ia deixar de me criticar no passado, mas essa é a última vez: no ensaio de 2017, eu utilizei a ideia de pós-capitalismo de Mason porque era um exemplo de crítica ao capitalismo que me interessava, mas existia uma diferença importantíssima, que na época eu simplesmente ignorei, entre os argumentos e a crise do capitalismo que ele estava descrevendo (que diziam respeito a realidades econômicas e técnicas) e os meus argumentos e a crise do capitalismo que eu descrevia (que diziam respeito a aspectos narrativos e míticos).

Um livro que é uma crítica narrativa e mítica ao capitalismo, realmente no modelo do que queria propor, é o Realismo Capitalista, de Mark Fisher (que em 2017 eu ainda não conhecia). O livro critica o capitalismo muito mais por sua alienação narrativa (a ideia de que não existe nada melhor que o capitalismo e que portanto não vale nem a pena perder tento pensando em alguma alternativa) do que por qualquer questão necessariamente prática, como ciclos econômicos ou variação do PIB. Outra referência na mesma linha é o livro The Myths That Made America, este só disponível em inglês, da autora Heike Paul, um trabalho que é quase um dicionário de abordagem mítica para objetos diversos. Em ambos os livros, ainda existe uma ideia de que o objeto precisa necessariamente ser falso para ser mito, o que diferencia um pouco da minha abordagem: acredito que existir um objeto verdadeiro ou falso não importa no fim das contas para os aspectos emocionais de um mito. Mas exceto isso, o processo de análise é bastante semelhante.

Para deixar essa ideia ainda mais clara, quero voltar ao exemplo da meritocracia.

Uma análise técnica da meritocracia vai fazer o que mencionamos lá na primeira parte desse ensaio: tentar descobrir se a meritocracia é viável nas sociedades capitalistas, se pessoas realmente podem ascender socialmente de acordo com seus próprios méritos e o quanto a desigualdade permite ou não permite que essa ascensão aconteça com esforço, inteligência e trabalho duro. Uma análise técnica vai analisar quais são as sociedades e organizações mais ou menos meritocráticas, quais são as causas e consequências econômicas e sociais da meritocracia e quais políticas públicas podem ou não contribuir para maior meritocracia. Tentando resumir, os argumentos de uma análise técnica da meritocracia envolvem a questão de o quanto a meritocracia existe ou não. São argumentos que vão envolver números, tabelas, pesquisas quantitativas e complexas análises econômicas sobre ascensão social em diferentes sociedades em diferentes momentos históricos.

Para uma análise mítica da meritocracia, por sua vez, o quanto a meritocracia existe ou não existe concretamente é apenas um dos fatores a analisar. Além de analisar o quanto a realidade confirma ou não esta crença, a análise mítica da meritocracia vai estudar o quanto as pessoas estão ou não dispostas a acreditar na meritocracia (com dados como vendas de livros que promovem a meritocracia, comentários e visualizações em vídeos sobre, etc.), quais são os critérios que podem contribuir ou impedir esta crença, qual é a interação com a realidade (seja a realidade qual for) e quem são aqueles que ainda mantém esse posicionamento. A análise mítica vai analisar ainda os motivos pelos quais alguém poderia querer ou não acreditar na meritocracia, quais são os efeitos sociais de acreditar na meritocracia independentemente dela ser real ou não, e como se formam determinadas identificações, pertencimentos e alianças a amálgamas políticos por parte das crenças que determinados grupos possuam em relação à meritocracia. Uma análise mítica pode ser feita independente do objeto factual atrelado ao objeto de estudo mítico um objeto factual verdadeiro ou não. Por exemplo, a existência da meritocracia enquanto mito independe da existência (ou inexistência!) da meritocracia na realidade factual.

Essa é uma distinção pequena, mas importante, entre a imagem de mito que estamos construindo desde o começo desse ensaio e outras: aqui, o mito é mito pelo papel que desempenha na identidade, pela sua função terapêutica e emocional, e não porque necessariamente é falso. A meritocracia teria função mítica da mesma maneira para aqueles que se sentissem bem em acreditar nela, mesmo se ela fosse incontestavelmente real para as pesquisas científicas.

A meritocracia não precisa ser necessariamente real para que um homem de classe média baixa acorde todo dia no Brasil e trabalhe muito duro porque se sente motivado pela promessa meritocrática de que seu trabalho duro inevitavelmente o levará para uma ascensão social. Se essa ascensão social vier ou não, isso provavelmente seguirá sendo só um dos fatores que vão implicar na crença desse homem a respeito da meritocracia ser ou não mantida. A leitura mítica da meritocracia vai considerar os aspectos emocionais dessa possível vontade de acreditar que a meritocracia existe e podem também considerar a quais grupos é ou não conveniente que essa crença na meritocracia seja mantida.

Se eu sou o chefe desse homem de classe média baixa, pode ser interessante para mim que a crença na meritocracia seja mantida, já que ela serve para que meu funcionário esteja motivado. Enquanto chefe, inclusive, o equilíbrio perfeito para meus interesses é justamente um cenário em que a meritocracia não exista enquanto realidade prática e técnica, para que meu funcionário nunca enriqueça e vá embora, enquanto exista enquanto narrativa mítica, para que meu funcionário continue sempre motivado a trabalhar duro acreditando que vai ascender algum dia.

Os aspectos míticos são no mínimo tão importantes quanto os aspectos técnicos e pragmáticos para que um projeto político se viabilize e sustente, isso se não forem mais importantes. É perfeitamente possível manter o capitalismo em voga sem que a meritocracia exista na prática, mas é mais insustentável manter o capitalismo em uma sociedade em que a meritocracia não exista enquanto mito. Nenhum projeto político começa a ganhar a mente de grandes grupos só porque apresenta tabelas, estatísticas e fórmulas matemáticas. Seja a esperança de uma sociedade menos desigual na viabilidade do mito que os soviéticos venderam ao proletariado, seja a esperança de uma utopia racista vendida pelos fascistas aos conservadores alemães, seja uma sociedade mais livre e com oportunidades aos que se esforçarem vendida no capitalismo neoliberal, todas as propostas políticas enquanto movimentos populares começam com promessas mais emocionais do que técnicas. Se essas promessas depois se cumprem ou não, já é outra história.

É claro, um projeto mítico depende de algum nível de confronto com a realidade. Um critério importante da expectativa mítica, como mencionamos lá atrás, é justamente a ilusão de algum poder sobre os resultados futuros. Mas outros critérios tão importantes quanto são o pertencimento e o senso de existência. Se a minha motivação para acordar todo dia e trabalhar depende profundamente da minha fé na meritocracia, eu serei menos propenso a considerar que ela possa não existir, mesmo que me apresentem todos os argumentos racionais e técnicos do mundo. Se toda minha família, todos os meus colegas de trabalho e todos os meus amigos e conhecidos da igreja acreditam na meritocracia e vão me isolar e tirar sarro da minha cara caso eu seja o único que não acredite, também vai ser mais difícil me desvincular da meritocracia mesmo frente aos argumentos.

Um exemplo mais exagerado do mesmo fenômeno: a mentalidade de uma seita. Para quem está imerso num desses cultos, a probabilidade de saída devido a um confronto com a realidade é mínima, por mais absurdas que as crenças da seita sejam, porque normalmente a estratégia que sustenta organizações deste tipo envolve o apagamento de qualquer interação social com quem não participa do grupo. Pode ser quando uma seita exige que um membro deixe de falar com todo mundo que conhece que não quiser também se converter, ou quando uma seita está estabelecida o suficiente para que pais já criem seus filhos na estrutura desde que nascem.

O jeito como funciona a dissociação dos Testemunhas de Jeová, quase como uma excomunhão medieval, é um exemplo: quem nasce numa família de Testemunhas de Jeová cresce desde sempre mantendo contato quase que exclusivamente com pessoa que partilham da mesma fé (as únicas exceções são as famosas pregações na casa de desconhecidos e contatos superficiais necessários para a rotina). Para quem decide sair da religião, o ostracismo é absoluto: deixa-se de se conviver com todo mundo que até então se conhecia desde que nasceu: amigos, conhecidos e inclusive familiares próximos, até mesmo pai, mãe e irmãos. Consequentemente, quem sai sacrifica absolutamente o pertencimento que até então se possuía. No estado de completa ruptura mítica depois de sair do sistema de significados da fé, situação que é de um baque enorme para o mito do Eu e de confronto direto com precariedades profundas, faz falta uma rede de apoio de todas as pessoas que se conhecia até então, pessoas que até então ajudavam o agora sozinho excomungado a inclusive se significar.

Quem sai do universo paralelo dos Testemunhas de Jeová acaba perdendo não só o vínculo com outros, mas o vínculo que tinha consigo. Para alguém que cresce nessa fé sendo desde sempre levado a priorizar a religião como parte fundamental de sua noção de si, essa identificação é parte importantíssima do que se torna possível entende que se é. O mito do Eu de um testemunha de Jeová é absolutamente diluído e revolucionado quando a fé deixa de ser parte da identificação da pessoa. É uma completa reinvenção de si, processo que pode ser muito sofrido e dramático, especialmente para quem for lidar com isso sozinho após ser expulso do mundo inteiro que conhecia até então, e não é de se surpreender que tanto os retornos à igreja quanto os suicídios sejam resoluções comuns para quem passa por isso.

Diante disso, importa alguma coisa qualquer aspecto prático sobre acreditar se Deus existe ou não? A decisão de permanecer como testemunha de Jeová está longe de ser meramente um conflito racional sobre pareceres técnicos e crenças individuais. Se sair da fé nesse caso significa sacrificar todo seu pertencimento e toda sua ideia de Eu, isso no mínimo vai ser colocado na balança na hora de tomar uma decisão.

Sim, esse exemplo é muito extremo. Mas de formas mais sutis, colocamos isso na balança frequentemente. Somos reativos a ideias que confrontem nossos vieses por um protecionismo mítico que envolve proteger associações míticas importantes ao nosso mito do Eu, tanto quanto são também importantes para manter nosso pertencimento a determinados grupos. Também muitas vezes aceitamos ideias que nem concordamos tanto assim porque elas estão amalgamadas a alguma outra ideia com a qual nos identificamos profundamente. É comum que pessoas de direita e de esquerda aceitem determinados argumentos que são amalgamados à esquerda e direita não porque necessariamente concordem com o argumento ou conheçam o assunto, mas porque entendem aquele argumento como critério associado ao amálgama político do qual querem participar. Uma pessoa de direita não precisa entender de economia para defender o mercado neoliberal, se entende que essa é uma pauta “de direita” e se essa pessoa quiser ser de direita para defender o conservadorismo cristão.

O mundo é complexo e técnico demais para que sejamos especialistas em tudo. Eu não entendo o suficiente e em profundidade sobre política, sobre medicina, sobe urbanismo, sobre gestão, para ser realmente capaz de ter opiniões totalmente lúcidas e racionais a respeito de cada um desses temas. Entender a complexidade dos assuntos envolve variáveis demais e um conhecimento acadêmico aprofundado ao qual pouquíssimas pessoas possuem acesso. Mas ainda assim precisamos nos posicionar e articular politicamente de alguma maneira, coisa que costumamos fazer com base no pouco que conhecemos, em associações, achismos e com base ema visão subjetiva das nossas experiências, nossas necessidades e prioridades.

Exemplos:

  1. Um homem gay que não entende absolutamente nada de economia muito provavelmente vai estar mais disponível a ouvir e confiar na opinião sobre economia que parta de um economista de esquerda que, pelo amálgama político, esteja de alguma maneira associado às pautas de diversidade. Talvez um economista homofóbico de direita esteja mais correto nos aspectos técnicos das discussões econômicas, mas esse homem gay que usamos de exemplo pode acabar ignorando esses aspectos técnicos, afinal é leigo no assunto, e focar em outras associações.
  2. Pela mesma lógica, um homem evangélico conservador que não entenda absolutamente nada de economia muito provavelmente estará mais disponível a ouvir e confiar na opinião sobre economia que parta de um economista de direita que, pelo amálgama político, esteja de alguma maneira associado às suas pautas cristãs e conservadoras. Talvez os aspectos técnicos desse economista de direita estejam absolutamente incorretos, mas a conveniência da proximidade ideológica vai servir para torná-lo mais convincente e palatável já de partida. Como leigo no assunto, a defesa da personalidade próxima por associação pode passar facilmente por cima dos aspectos técnicos que esse hipotético cristão nem entende tanto assim.

Tomar uma escolha por um argumento ou outro quer dizer que qualquer um desses dois homens tenha uma real capacidade de compreender exatamente todas as especificidades técnicas de uma proposta econômica e todas suas implicações? Longe disso. O que se constroem são redes de confiança, redes estas que passam para frente uma versão mais superficial e didática das especialidades de outros agentes da mesma rede. Nesse caso existem ainda aspectos técnicos a serem contrapostos, considerados (e muitas vezes ignorados), mas boa parte das discussões e pertencimentos são relativas demais até para poder contar com pareceres técnicos que poderiam ajudar a resolver alguma disputa.

A razão desses exemplos é mostrar como no dia a dia somos levados muito mais por aspectos míticos, achismos, amálgamas e confiança nos nossos pertencimentos, do que somos levados por conhecimento verdadeiro. Não só o processo de estabelecer conhecimento envolve aprofundamento técnico, que é algo que poucos dominam, como envolve tempo e investimento em pesquisas com método científico. Se não somos pesquisadores que estão na linha de frente da testagem de qualquer teoria para descobrir sua validade frente aos resultados que produz, temos que confiar também que esses pesquisadores estão nos apresentando resultados que não são enviesados e que estão produzindo suas pesquisas apropriadamente.

Eu não tenho como estabelecer uma pesquisa de método científico com testagem e coleta de dados para decidir, com base num parecer que produzi, se aspirina é ou não um veneno mortal. Preciso confiar na pesquisa que algum pesquisador já fez sobre isso. Se essa pesquisa foi enviesada porque a farmacêutica que produz aspirinas influenciou de alguma forma os resultados, não tenho como controlar essa realidade. Se sou de esquerda e esse farmacêutico está se vendendo como de esquerda só para que eu confie mais nele pela associação, ainda assim não tenho como confrontar os seus pareceres técnicos diretamente e preciso usar de indícios indiretos (confiança pela associação no amálgama) para formar alguma opinião. A associação pode não ser política, embora vá ser se existir a oportunidade, e normalmente vai considerar uma gama de critérios variados para ler e avaliar a ideia de reputação. E para cada uma coisa que resolvemos desconfiar e investigar a fundo, deixamos de lado centenas de outras nessa situação de confiança.

A função social do jornalismo seria justamente a de contribuir para um processo de construção de opiniões que fosse menos enviesado e mais confiável. Eu posso confiar na informação do Doutor Fulano de que aspirina não é um veneno porque, se a Folha de São Paulo e o Estadão estão replicando esta informação, isso quer dizer que alguma apuração foi feita antes, primeiro entre outros doutores e especialistas da área farmacêutica e depois pelos jornalistas. Essa apuração é o que teoricamente garantiria a veracidade do que é dito.

Mas existem pelo menos dois sentidos em que, até nos melhores dos casos e nos assuntos menos polêmicos, essa função social do jornalismo possui seus limites:

A primeira é que em diversas situações o jornalismo tem tanto poder quanto eu tenho de criticar ou analisar o financiamento que venha de uma empresa farmacêutica que pode enviesar a pesquisa. Às vezes, escândalos do tipo são descobertos (ou só permitidos de se discutir) apenas anos depois de terem acontecido. No funcionamento do sistema, esses financiamentos e consequentemente seus vieses são comuns o suficiente para não ser possível chamá-los nem mesmo de exceção.

A segunda é que o jornalismo no sistema capitalista também é enviesado por questões econômicas. Se o dono do jornal tem participação nas ações da farmacêutica produzindo aspirina, ele muito provavelmente vai puxar a sardinha mesmo que sutilmente para aquilo que melhor contribui para seus próprios interesses.

Até meados do século vinte, este era mais ou menos o cenário dado. Existiam limitações e vieses para os discursos públicos, certamente, controlados tanto por interesses econômicos quanto por interesses de Estado. A maneira como os Estados Unidos lidou com o “Red Scare”, o pânico generalizado e conspiratório à ameaça comunista que foi construído em uníssono por toda estratégia comunicativa do país durante a Guerra Fria, é um exemplo de sistema desse tipo funcionando em seus melhores momentos. A centralização do discurso no fascismo alemão, com jornais e rádios absolutamente aparelhados pelo governo, demonstra o mesmíssimo processo.

Até algum momento (que é possível argumentar se foi até quando inventaram a prensa, ou até a decadência da televisão e do jornal), o que tínhamos era esse cenário com limitações, em que o que era veiculado por poucos se tornava fato dado e inescapável. Em todos os casos mencionados, esse consenso mítico narrativo era fenômeno comunicacional usado como ferramenta para determinados objetivos de Estado. Você pode argumentar que essa ferramenta é moralmente justificável de se usar, caso você seja de direita e defenda que os Estados Unidos deveriam mesmo instaurar um pânico à influência soviética, ou você pode argumentar também, se for de esquerda, que a própria União Soviética tinha uma necessidade para seus interesses de sobrevivência de fazer o mesmo, impedindo a influência de discursos dos norte-americanos e a entrada de qualquer dissenso em seu regime. Mas o fato é que, concordando ou não com os fins, a ferramenta segue a mesma: uma espécie de imersão comunicacional holística, em que todos os lados repetem de forma mais ou menos uníssona um mesmo posicionamento para refrear o máximo possível da viabilidade de um posicionamento contrário.

Essa ferramenta mítica já foi muito usada como estratégia de Estado para garantir coesão social e estabilidade e isso independente da validade factual das narrativas usadas para este fim. Para que o Red Scare reúna os norte-americanos frente a uma ameaça comunista, pouco importa o quanto essa ameaça comunista é real ou não. Para que o comunismo soviético reúna os russos frente a uma ameaça capitalista, pouco importa o quanto essa ameaça capitalista é real ou não. Preciso enfatizar isso mais uma vez porque eu não tenho propriedade, nem vontade, para discutir se é ou não justificável o objetivo que qualquer Estado já teve ou ainda possui quando tentou ou tenta criar esses consenso narrativos. O que importa é analisar a viabilidade e a estrutura do consenso em si.

Dito isso, existe um motivo pelo qual esses exemplos que dei eram todos do século vinte: esse consenso fabricado e estratégico é cada vez mais difícil de se construir hoje em dia e isso envolve muito da instabilidade sistêmicas que estamos vivendo, no mínimo tanto quanto os resultados reais das economias.

É sobre isso que quero falar detalhadamente agora: as razões da crise dos mitos em larga escala e suas consequências para nossas sociedades.

Capítulo 14: Causas e consequências de uma grande crise mítica

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Embora fosse possível encontrar outras infinitas razões e outros infinitos efeitos, acredito que são quatro as principais causas para a falência dos grandes mitos tradicionais e que são duas as maiores consequências desta falência.

As causas são:

  1. Saturação dos mitos por superexposição;
  2. Individuação em larga escala decorrente do secularismo;
  3. Expectativas míticas frustradas frente a resultados concretos e associações constituídas ao longo do tempo;
  4. Ambientes comunicacionais descentralizados, principalmente os digitais, que permitem a construção de nichos e bolhas de enviesamento.

E as consequências são duas que, à primeira vista, parecem ser completamente opostas:

  1. De um lado, desapego cínico e niilista aos mitos como um todo;
  2. Do outro, ação compensatória que gera fanatismo reativo para proteção da identificação mítica, seja na defesa dos mitos em crise ou na criação de mitos novos.

Quando falamos de mitos no geral, acredito que o momento de crise é marcado por essas quatro causas com intensidade mais ou menos semelhante, mas mitos em particular podem ser mas afetados por algumas dessas causas do que por outras.

Das quatro causas, a segunda é aquela sobre a qual mais me questiono. Eventualmente reflito se ainda há mesmo um movimento em larga escala de secularismo e até mesmo se houve um movimento destes algum dia. Essa é uma questão para a qual vou me aprofundar um pouco mais ainda nas próximas partes desse ensaio, mas que também acredito que vá merecer um livro inteiro para aprofundar algum dia.

Dessas quatro causas, ainda, a terceira é a única em que o objeto mítico interage e é influenciado por sua contraparte enquanto “objeto racional”. Também vou explicar um pouco melhor disso na sequência.

E finalmente. dessas quatro causas é a quarta aquela mais difícil de posicionar historicamente: como eu disse, na história ocidental essa descentralização pode ser argumentada pelo menos desde a invenção da prensa, que causou exatamente uma crise das instituições míticas do cristianismo ao começar a descentralizar as narrativas cristãs e gestar o protestantismo. Existe um argumento ainda a ser feito (e para o qual concordo) de que em certos períodos do século vinte existiu maior centralização, tanto a partir de tecnologias quanto de acordos entre estado e comunicação privada. Por exemplo, existiu consenso comunicacional entre a comunicação oficial do Estado e os meios de comunicação (televisão, rádio e jornal) nos Estados Unidos da Segunda Guerra Mundial, mas esse consenso não existiu durante a Guerra do Vietnã.

Tentar aplicar essa fórmula pode ser muito útil para analisar o decaimento de diversas narrativas míticas ao longo da história. Eu poderia tranquilamente usar dessa fórmula para analisar o fim do feudalismo, o já mencionado início do protestantismo, a quebra da aristocracia tradicional… Mas porque continua sendo um bom exemplo, acredito que mais fácil e mais relevante do que esses outros que me vieram à mente, vou insistir no caso do mito da meritocracia para exemplificar cada uma dessas causas e consequências.

Vamos então seguir o mesmo modelinho que acabei de apresentar porque acho que ele é útil, apenas com um complemento antes que contextualiza pelo menos um pouco da função social do mito em questão.

Quais as funções da meritocracia enquanto mito de larga escala nas sociedades capitalistas?

  1. Motivar trabalhadores com a expectativa mítica de ascensão social decorrente da competência, da inteligência, do esforço e da adequação às estruturas do mercado capitalista.
  2. Justificar moralmente a riqueza, construindo a ideia de que os ricos de hoje possuem mérito na riqueza que construíram, ou que merecem viver nessa riqueza devido ao mérito na construção da riqueza por parte de algum antepassado.
  3. Explicar a desigualdade social como um fenômeno justo, argumentando que as regras do jogo são iguais para todos e que se alguns são bem-sucedidos e enriquecem enquanto outros permanecem pobres, é uma questão exclusivamente de competência por parte daqueles que enriqueceram e de incompetência por parte dos que permaneceram pobres.
  4. Garantir certa estabilidade social como consequência das lógicas anteriores. Uma sociedade em que trabalhadores estão motivados é produtiva, uma sociedade em que a riqueza é vista como mérito, ao invés de lida como exploração, é uma sociedade em que se reduz o antagonismo dado às elites, e uma sociedade em que a desigualdade é entendida como justa é uma sociedade em que a pobreza não revolta.

Agora vamos lá. Como o mito da meritocracia está sendo prejudicado pelas quatro causas que listamos?

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1. Saturação do mito por superexposição

O mito da meritocracia é um dos mais antigos fundamentos de toda a mítica ao redor do capital e, como as funções sociais que possui devem ter ajudado a perceber, é também um dos mais importantes agentes da coesão social das sociedades capitalistas. É muito mais difícil motivar (e consequentemente explorar) trabalhadores que não acreditam que seus esforços possam se traduzir em benefícios reais a médio e longo prazo. Sem a expectativa mítica de uma ascensão social, a esperança de que a própria competência e esforço sejam suficientes para enriquecer, ninguém tem vontade de “dar o sangue” e vestir a camisa no trabalho. O básico para não ser demitido se torna a única opção coerente para quem não tem esperança de ganhar nada demais ao entregar mais do que este mínimo. Empreender também se torna muito mais complicado sem a promessa meritocrática e é por isso que os empreendedores costumam estar entre os mais apaixonados defensores desta ideia.

Tão importante e tão antigo, o mito da meritocracia é também um dos mais saturados do capitalismo. São décadas de reforço constante dessa ideia em todos os formatos possíveis: livros, filmes, podcasts, discursos políticos, jornais… A defesa da meritocracia está amplamente presente em todos eles, muitíssimo frequentemente, indo do Tio Patinhas ao Primo Rico e passando também pela mítica senhorinha que ficou rica vendendo brigadeiros na porta da faculdade. Para inspirar e corroborar, existem infinitos exemplos das histórias de sucesso daqueles que ascenderam por próprio mérito. Somos bombardeados constantemente com essas biografias inspiradores dos sucessos meritocráticos.

Se acontecesse sozinho, esse bombardeio poderia servir para naturalizar e embrenhar a ideia da meritocracia em todo mundo, como de fato ainda acontece com boa parte das pessoas. Mas como esse bombardeio acontece no mesmo contexto de todo o resto que vamos discutir, acaba por ser prejudicado pela insistência. Aos poucos, deixar de ser um lugar comum que se reforça organicamente e vai se tornando saturado.

Vale mencionar que quanto mais em situação de crise o mito se enfia, mais bombardeado ele passa a ser para as pessoas na tentativa de reverter o problema — e isso serve para piorar a saturação. Ninguém insistiria em defender apaixonadamente a meritocracia o tempo todo se ela fosse ponto pacífico. Todo dia um funcionário acorda desmotivado e sem ter certeza se seu esforço no trabalho tem ou não muito sentido. Todo dia, esse funcionário precisa ser convencido novamente por algum Primo Rico de que “trabalhar enquanto eles dormem” e seguir “as 10 dicas dos hábitos matinais dos bilionários” vai ser mais importante do que ter nascido herdeiro para se tornar milionário algum dia.

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2. Individuação em larga escala decorrente do secularismo

A aliança do capitalismo com o secularismo remonta essencialmente às origens de ambos os movimentos, mas a potência do secularismo enquanto projeto era muito menor quando o capitalismo também estava começando. Por isso a meritocracia, supostamente uma noção secular, ganhou forma e força principalmente conforme foi perdendo potência a versão religiosa da mesma ideia, que era a valorização do trabalho duro na ética protestante (no melhor espírito da mítica proposta por Weber).

Mas o mito iluminista, principal responsável por historicamente fortalecer e disseminar aspectos seculares, é essencialmente autofágico e insustentável, no que empresto mais profundamente de Adorno em sua crítica ao esclarecimento (ainda vamos falar mais sobre isso). Se meu trabalho duro é feito em relação direta com Deus, é mais difícil exigir de Deus que me entregue resultados concretos por trabalhar. O resultado último que a ética protestante procura no trabalho duro não é a ascensão social. Esta é um subproduto muito desejável, mas não é a necessidade primeira. Um protestante que trabalha duro quer ir para o céu e quer fazer o que acredita ser certo de acordo com seu Deus.

Se um protestante que trabalha duro continua pobre, ele pode considerar que não era parte do plano de Deus que ele enriquecesse. É mais difícil “cobrar” Deus pela pobreza, ou se revoltar por ela, e se a prestação de contas sobre a exigência do trabalho duro é feita a Deus, são muito mais tênues os critérios reais que podem confrontar o mito que motiva o trabalho. Nesse sentido, se deixado por si e independente da concretude de resultados materiais ser proveitosa ou não, o mito do trabalho duro seria mais estável e funcional na sua versão protestante que não precisa garantir determinados resultados nessa vida terrena para o esforço feito.

A meritocracia, por sua vez, é mais frágil no sentido em que os agentes que a validam são muito mais questionáveis e fáceis de se criticar, exigir e revoltar contra do que Deus, e também é mais frágil no sentido em que os resultados que promete são muito mais concretos do que os resultados prometidos por Deus. A meritocracia não pode prometer que o trabalho duro vai valer a pena num pós-vida de paraíso, nem pode dizer que a pessoa que trabalhou duro continuou pobre “porque os planos da Meritocracia são misteriosos e incompreensíveis aos olhos dos homens” (embora a ideia meio etérea da onisciente sabedoria mercadológica de uma “mão invisível” às vezes tente fazer isso).

Isso quer dizer que se a meritocracia não funciona e meu trabalho todo foi por nada, existem pessoas — políticos, milionários, economistas — que podem ser cobradas por isso.

Por essa necessidade de ao menos em tese se vincular a expectativas míticas mais concretas, os aspectos seculares são mais frágeis e convidam mais frequentemente à desidentificação num processo individuatório. E, embora com certas ressalvas, ainda me parece justo o argumento de que o secularismo é parte da realidade de todos atualmente, inclusive dos religiosos, no sentido em que mesmo quem acredita em Deus sabe a diferença entre aquilo que é responsabilidade divina e aquilo que é responsabilidade dos homens. Numa sociedade em que o Estado e a Igreja estivessem fundidos, como eram as sociedades antigas e medievais, criticar um imposto injusto era de certa forma criticar também Deus. Hoje, existem instituições seculares que podem ser criticadas e cobradas. Mesmo o mais fervoroso dos religiosos vai cobrar políticos, não a Deus diretamente, se a inflação estiver muito alta ou se seu imposto de renda aumentar demais.

Além disso, pertencimentos seculares e consequentemente os mitos que não envolvem religiões também estão ganhando protagonismo. Mencionamos isso agora pouco, mas vale reforçar com outro exemplo: talvez uma pessoa de direita se sinta mais confortável em se ver como igual a outra pessoa de direita, mesmo se uma dessas pessoas for cristã e a outra for judia, do que dois cristãos se sintam confortáveis como iguais se um for de direita e o outro de esquerda.

Os mitos com mais aspectos seculares são mais passíveis de se individuar porque precisam, ao menos em tese, responder a alguma estética racional (que não significa ser realmente racional). Sendo convincente, é possível com oratória fazer com que uma pessoa abandone um mito se não for capaz de justificá-lo com algo que seja pelo menos parecido com razão. Já a fé religiosa é mais improvável de ser argumentada ou de se render à oratória ou à ilusão de um raciocínio.

Um exemplo disso: vamos imaginar uma pessoa de direita e cristã. É mais fácil que ela seja convencida:

a) em um vídeo de Youtube, por um influenciador de direita, a acreditar na meritocracia com argumentos que parecem racionais e seculares, mesmo que se tratem de falácias e isso seja uma ilusão retórica,

ou

b) em um culto ou missa, por um pastor ou padre, a deixar de acreditar na meritocracia, com o convencimento partindo de discursos religiosos da pregação (uma que mencionasse, por exemplo, uma determinada leitura de Jesus focada nos pobres e injustiçados que ele protegeu e para os quais distribuiu pães e peixes sem perguntar quem merecia comer aquilo que ele tinha multiplicado)?

Não sei vocês, mas eu acredito que é mais provável que essa pessoa seja convencida pelo youtuber que fala aquilo que concorda com seus vieses políticos, do que convencida pelo pastor ou padre que confronta suas opiniões nesse sentido apelando para seu viés religioso. Digo isso considerando o exemplo do Papa católico que, mesmo enquanto maior autoridade de sua religião, vive sendo criticado e xingado pelos próprios católicos com visões políticas conservadoras que discordam de alguns dos posicionamentos políticos da maior autoridade da religião da qual pertencem.

Como todos nós estamos convivendo com esses aspectos seculares mais frequentemente e nos tornando mais propensos ao convencimento através de vias seculares do que através de vias religiosas, já nos habituamos a um grau maior de individuação. Se nossas expectativas míticas se frustram num mito com estética secular, como a defesa de um determinado político, é mais viável, mesmo que ainda seja muito difícil, abandonarmos este mito e partimos para outro. As expectativas míticas religiosas são mais difíceis de se frustrar quando são mais etéreas. Existem as religiosidades associadas a efeitos mais práticos, como na teologia da prosperidade que já mencionamos, mas mesmo no caso delas é possível ainda argumentar algo tão simples quanto “você não ficou rico porque Deus não quis”, coisa que a meritocracia como argumento secular não permite.

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3. Expectativas míticas frustradas frente a resultados concretos e associações constituídas ao longo do tempo

Os últimos dois pontos mencionados já explicam também um pouco deste. A meritocracia é uma ideia muito antiga que já foi testada em larga escala em vários contextos históricos e em vários lugares diferentes. Isso quer dizer que ela já conta com uma infinidade de exemplos e associações, tanto ao longo do tempo quanto em diferentes contextos. A quantidade de exemplos facilita a construção no mínimo de relativizações, quando não de contestações.

Vamos contrapor uma meritocracia atual frente a uma meritocracia enquanto “ideia nova”, nunca antes testada, de um capitalismo em sua infância. Lá atrás, argumentar tanto contra quanto a favor da meritocracia era mais difícil porque existiam menos estudos de caso à disposição, o que facilitava a conveniência mítica e permitia algo como comprar a ideia porque ela parece atraente (o que costuma envolver apelo mítico).

No momento atual, após tanto tempo da meritocracia como ideia importante do mito capitalista, é possível usar de exemplos históricos nas argumentações: a meritocracia parece funcionar melhor numa sociedade social-democrata que concilia mercado com políticas sociais, tal acontece nos países escandinavos, especialmente quando comparada à viabilidade desta meritocracia em sociedades neoliberais nas quais não há medidas sociais que contribuam para equalizar oportunidades de saída e nas quais a concentração de riqueza dos que já venceram pode ser mais facilmente utilizada para evitar que outros vençam também — o que inclusive evita que os outros se tornem possíveis concorrentes.

Tentando resumir mais ainda, era mais fácil acreditar na meritocracia dos Estados Unidos nos anos 50, quando era viável comprar uma casa com o salário de um trabalhador médio, do que nos Estados Unidos dos anos 2020, quando comprar uma casa é uma tarefa hercúlea que poucos felizardos vão conseguir realizar. Também era mais fácil porque, lá atrás, existiam menos exemplos ao redor do mundo de gente que se frustrou e fracassou testando essa possibilidade meritocrática. A novidade sempre carrega mais expectativas e boa vontade.

É possível olhar para as empresas dos anos inicias da revolução digital, como Google e Apple, e romantizar seus pontos de partida (supostamente) humildes, ao mesmo tempo em que é possível olhar para essas mesmas empresas hoje, já como gigantes em situação de monopólio, e perceber como pressionam o mercado para inviabilizar que qualquer outra iniciativa “humilde” como um dia supostamente já foram consiga alcançar as mesmas proporções que tomaram. Ilustra bem essa situação o exemplo “meritocrático” de um iniciante Snapchat que foi esmagado pela concorrência desleal e cópia descarada por parte do Instagram.

Também são interessantes as comparações entre períodos e entre países. Se a meritocracia parece ter funcionado melhor nos EUA dos anos 50 do que funciona hoje em dia, a meritocracia ainda me parece ter funcionado melhor em qualquer período da história dos EUA do que funcionou em qualquer momento da história do Brasil.

Todas essas comparações que estou dando são exemplos. Acredito em todas as comparações que dei nesses últimos parágrafos, mas posso estar errado em alguma ou muitas delas. Quem poderá discordar de mim nesse sentido são aqueles que me apresentarem fontes históricas: teoricamente, um historiador pode ter feito um completíssimo trabalho analisando a meritocracia no Brasil e descobrir que na verdade, de alguma maneira que não entendo, nosso país é muito mais meritocrático do que os Estados Unidos.

Em todo caso, existem dados a serem interpretados e argumentados, estudos a serem feitos, e é por isso que esse terceiro ponto é o único entre os quatro responsáveis pela crise da meritocracia enquanto mito em que esta meritocracia mítica se encontra com e é influenciada por sua “irmã”, a meritocracia enquanto objeto racional.

A viabilidade racional da meritocracia, nos argumentos lógicos e nos discursos aprofundados dos especialistas, pode mesmo contribuir para a viabilidade mítica da narrativa meritocrática: se todos os historiadores do mundo estivessem em consenso de que a meritocracia existe sim e pudessem apresentar dados e longuíssimos trabalhos acadêmicos para justificar tal noção, seria ainda mais fácil e conveniente acreditar na mítica meritocrática e acordar todo dia bem cedo para trabalhar ciente de que o esforço para ascender socialmente nas sociedades capitalistas é um fenômeno com o “aval” dos técnicos que pode ser invocado sempre que alguma dúvida aparecer, ou como um argumento de autoridade contra algum argumento contrário na mesa do bar.

Para além do raciocínio nos exemplos dos dados históricos, porém, o tempo contribui para o desgaste mítico através de um processo que é um pouco menos racional: a associação e a generalização, no melhor estilo das estratégias de amálgamas que estávamos discutindo agora pouco. Se um político que simplesmente odeio defender a meritocracia, talvez eu questione muito mais essa ideia.

Um exemplo do Brasil recente, das semanas em que estou escrevendo isso, é ótimo para isso: recentemente, vinícolas do sul do Brasil foram implicadas no uso de mão de obra escravizada por parte de uma empresa terceirizada que participava do plantio e da colheita de uvas. Circulou um imagem de uma das principais executivas de uma destas empresas (que por acaso também era herdeira da vinícola) com um discurso meritocrático em que dizia que o esforço e o bom trabalho valem mais do que o sobrenome. A mera associação do discurso meritocrático a uma empresa implicada em um escândalo envolvendo escravidão já é mais do que suficiente para desgastar a meritocracia enquanto mito, mesmo que só um pouquinho. E é importante que essas associações vão se construindo a todo momento, quanto mais tempo se passa em que uma ideia já existe e passa a ser defendida por pessoas que podem ser terríveis.

No mais puro racional, nada implica que uma ideia é necessariamente terrível porque é defendida por alguém terrível, mas não é assim que nossa mente funciona no dia a dia, especialmente quando as associações contribuem para nossos vieses.

Você pode considerar muito coerente criticar a meritocracia por sua associação a alguém implicado num escândalo de escravidão, mas esse fato puro não é um argumento verdadeiro contra a meritocracia, não mais do que é um argumento contra o vegetarianismo o fato de que Hitler não comia carne.

As generalizações são importantes armas retóricas e participam das nossas associações míticas e amálgamas constantemente, mas estão longe de ser necessariamente lógicas, ou válidas numa argumentação. O único cenário em que a pessoa que defende uma ideia é implicada na ideia que defende é no sentido da análise dos interesses do grupo de poder, algo no sentido das ideias da classe dominante como proposto por Gramsci. Mas isso é mais algo de classe do que algo individual: existem indivíduos terríveis em todas as classes sociais e defendendo todas as ideologias, logo não deveria ser possível, ao menos em tese, que as ações dos indivíduos prejudicassem a saúde da argumentação sobre as ideias.

Mas o mundo existe em mais do que apenas tese e estas generalizações implicam a parte mítica dessas ideias porque ideias não são construídas só de raciocínio. A meritocracia enquanto ideia técnica a ser analisada por políticos, economistas e historiadores pode não ser implicada pelo caso das vinícolas, pelo menos não como mais do que um casos de uma lei mais geral, ou como um estudo de caso, mas a meritocracia enquanto narrativa mítica é implicada e prejudicada por esses caso das vinícolas de maneira mais profunda, junto a todos os outros casos que constroem nossas associações, independente da lógica e de historiadores, economistas e políticos concordarem ou não com essas implicações por generalizações associativas.

É importante mencionar que, embora o tempo vá certamente contribuir para que um determinado conteúdo mítico se torne mais saturado ao se tornar mais racionalmente debatido, essa saturação pode acontecer em intervalos mais curtos. Se uma pessoa que consideramos muito ruim defender uma ideia nova, essa ideia nova muito provavelmente já carregará um preconceito de nossa parte mesmo antes de ser testada. Se uma ideia nova falha de forma vergonhosa logo em sua primeira tentativa de implementação, sua viabilidade mítica também já pode morrer por aí, antes de ter a oportunidade de reunir uma coleção maior de casos para um estudo mais abrangente. Não necessariamente os conteúdos míticos precisam durar muito para sofrerem frente às suas associações e a seus resultados concretos e à possível “quebra da promessa” da expectativa que carregavam, mas necessariamente um conteúdo mítico mais velho vai sofrer mais com esses problemas e desgastes conforme vai reunindo mais e mais dos seus exemplos de caso e defensores questionáveis.

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4. Ambientes comunicacionais descentralizados, principalmente os digitais, que permitem a construção de nichos e bolhas de enviesamento

Esse é o aspecto mais técnico e tecnológico, mas ao mesmo tempo é o mais simples para mim de explicar.

Imagine que você é um adolescente de classe média baixa no Brasil dos anos 80, durante a ditadura militar conservadora, capitalista e de direita do Brasil. Exceto caso você participe de alguns nichos muitíssimo específicos (alguns circuitos acadêmicos da sua faculdade, se você tiver a sorte de frequentar alguma), ou se você tiver alguma pessoa que represente dissenso (um pai com pensamentos à esquerda, ou um grande amigo de escola politizado), enfim, exceto nessas situações mais raras, você enquanto adolescente estará totalmente mergulhado em uma realidade em que a meritocracia é consenso absoluto.

Você não vai encontrar mensagens contrárias à meritocracia no jornal, no rádio ou na televisão. Algumas músicas podem passar pela censura com críticas metaforizadas e veladas à meritocracia, mas se você não conhece absolutamente nada sobre esse assunto, essas críticas podem muito bem passar batido.

Talvez você passe sua juventude toda trabalhando duro porque te venderam a ideia de que você está num país livre, um país que venceu a ameaça comunista, um país no qual há oportunidades justas para todos crescerem caso se esforcem muito. E você não vai fazer ideia de que a sua década vai ficar conhecida depois como “década perdida” justamente por uma crise e estagnação econômica que dificultaram e muito qualquer ascensão social.

Com o consenso comunicacional entre o governo e os meios de comunicação (obrigados a este consenso por censura), fica difícil encontrar qualquer referência como antítese à possibilidade meritocrática. Sem essas referências do dissenso, fica difícil começar algum processo dialético de compensação, quanto mais de individuação, mesmo se o sucesso e a ascensão social não vierem depois do trabalho duro. Como a meritocracia é parte da sua identidade, as únicas hipóteses que podem explicar seu fracasso em ascender são a de que você fez algo errado, ou de que não deu duro o suficiente, ou de que tinha alguma limitação inerente, como não ser inteligente o suficiente para tal. Alguém teve o mérito, só não foi você.

No Brasil de 2023, também não são muito promissoras as perspectivas meritocráticas para um jovem de classe média baixa. Como um palpite, eu me arrisco a dizer que devem ser só um pouquinho melhores do que eram na década de oitenta. Mas uma coisa mudou: há muito mais caminhos para o jovem de agora ouvir gente criticando a meritocracia, seja na televisão, no rádio ou, talvez principalmente, na Internet.

O Brasil ainda é um país conservador e com pouco acesso. Ainda há quem acredite fielmente na meritocracia no Brasil de agora, seja porque construiu essa opinião de forma mais embasada e lúcida com referências técnicas e aprofundadas, seja por um achismo apaixonado com conveniências míticas, seja porque ainda não teve contato com qualquer argumento contrário a essa ideia, seja por experiência particular, ou seja porque é mais conveniente aos próprios interesses. Mas algo mudou: existem alternativas. Algum influenciador que esse jovem assiste pode criticar a meritocracia, conhecidos podem postar stories ridicularizando essa ideia, um meme de uma página como a “Empreendedor nem é gente” pode aparecer por sugestão algorítmica no feed desse rapaz.

Existe uma descentralização muito maior que permite mais dissenso e autonomia.

É mais fácil olhar para essa transformação desapegando um pouco de ideias específicas e de casos reais. Então vamos tentar contrastar dois cenários hipotéticos, mesmo que um pouco absurdos.

No primeiro deles, o governo militar do Brasil nos anos 80 fica maluco e decide que quer acabar com a ideia de meritocracia no país. Um projeto ambicioso e meio esquizofrênico, mas que não seria muito difícil: o governo pode simplesmente proibir a ideia e calar qualquer um que mencioná-la, ou pode ser mais sutil e planejar uma campanha que vá criticando e removendo a ideia de meritocracia da discussão pública na sociedade brasileira aos poucos, tanto por seus meios oficiais, quanto controlando os meios de comunicação. Esse governo poderia obrigar rádios, televisões e jornais a criticar toda noite a meritocracia durante meses, incessantemente, até a ideia perder qualquer prestígio, enquanto silencia qualquer argumento contrário à narrativa oficial.

No segundo cenário hipotético, é o governo do Brasil de 2023 que decide que está com vontade de acabar com a ideia de meritocracia no Brasil. Mas dessa vez não é tão fácil. Primeiro porque os meios de comunicação não vão simplesmente ceder. Rádio e televisão continuariam falando o que bem quisessem sobre meritocracia, independentemente da comunicação do governo estar ou não em consonância com o que é dito. E mesmo se o governo brasileiro conseguisse exercer pressão sobre meios de comunicação nacionais para que seguissem seus interesses, seria mais difícil exigir de empresas multinacionais, como o Linkedin ou o Facebook, que derrubassem das redes sociais as páginas e perfis favoráveis ao empreendedorismo, ou que tirassem do ar todos os grupos favoráveis à meritocracia que existem no Whatsapp e no Telegram.

O exemplo da meritocracia pode parecer mais ingênuo, mas vale lembrar que essa impossibilidade de controle centralizado das narrativas por parte dos interesses nacionais é um pouco responsável também pelo fortalecimento do terraplanismo, dos extremismos políticos, do retorno do fascismo, da retórica anticientífica, etc. Os mitos hoje possuem muito mais autonomia, para além dos interesses das nações que desejem controlar e direcionar esses mitos em alguma direção para um objetivo qualquer, sejam esses objetivos louváveis ou não. Essa descentralização pode parecer boa para impedir a censura a ideias políticas contrárias à meritocracia, enquanto pode parecer ruim na sua impotência de combate às teorias da conspiração envolvendo vacinas.

O descrédito dos meios de comunicação oficiais e tradicionais vai além dos casos em que eles são mais notoriamente enviesados, como em regimes autoritários ou quando empresas de comunicação distorcem certas informações para protegerem seu interesses econômicos.

Eu me atrevo a dizer que, em casos como o do Brasil, embora esses problemas (dos enviesamentos da mídia tradicional e do governo) realmente existam, o principal motivador para o descrédito é a conveniência de, devido à descentralização, ser possível adotar mitos mais eficientes a partir de pertencimentos nichados.

Em outras palavras, é quase como se o descrédito das mídias tradicionais fosse uma “desculpa” para validar a crença em (e propagação de) qualquer coisa que se bem entender, sem qualquer pressão por significados sociais mais gerais que possam agir de forma superegoica na contramão desse desejo de crença. Vale considerar como, no fim das contas, acreditar em certos mitos é quase uma forma de libido que, nessa desculpa da desconfiança dos significados sociais gerais, pode circular sem freio.

Cada pessoa é única, com suas próprias precariedades, seus próprios funcionamentos para sua identidade, suas próprias construções míticas no seu grande mito do Eu e no seu grande mito do Outro. Numa comunicação massificada, há limites de até onde um mito projetado em larga escala pode ao mesmo tempo se vincular e gerar identificação em Joãozinho e na Dona Maria. Esse mito em larga escala normalmente precisa ser mais superficial para conseguir funcionar bem para muitos públicos diferentes.

Mas os mitos descentralizados não possuem essa limitação. Joãozinho pode participar de um grupinho no Discord especificamente para pessoas que concordem e repliquem conteúdos de acordo com seus próprios mitos e vieses, enquanto Dona Maria pode participar de um segundo grupo no Whatsapp que faça mais sentido para os posicionamentos dela. Sem terem que fazer concessões para agradar gregos e troianos, os mitos personalizados são mais eficientes e gostosos de se acreditar. São feitos mais “sob medida” para nossos gostos, nossas necessidades, nossas inseguranças, nossas opiniões, os pertencimentos que possuímos e queremos possuir.

Essa tendência da descentralização vai na contramão do comportamento dos amálgamas que discutimos antes, mas curiosamente contribui até mesmo para esses amálgamas se formarem. Num ambiente descentralizado com mais competição e mais variedade, é mais importante criar alianças estratégicas que viabilizem um projeto em larga escala. Amálgamas políticos se constroem hoje com alianças que muitas vezes parecem contraditórias justamente porque esse processo não é mais controlado ou organizado necessariamente por ninguém em particular. Oportunistas podem usar desse caos das piores formas possíveis e de fato o fazem, mas esse oportunismo para com o caos é um processo mais consequente do que causador de qualquer coisa.

Voltando ao nosso exemplo, não acredito que a direita brasileira atual, enquanto instituição organizada, teria poder suficiente para criar o mito meritocrático se ele não existisse, muito menos para mantê-lo como consenso, e ainda menos para alterá-lo de acordo com alguma estratégia que beneficiasse suas lideranças. E ao mesmo tempo, mesmo caso o próximo presidente do Brasil fosse o Príncipe Orléans e Bragança, que pessoalmente talvez quisesse focar mais numa riqueza por natureza de aristocracia e tradição do que por uma riqueza de natureza meritocrática, eu duvido muito que fosse possível “expurgar” a meritocracia do amálgama das direitas mesmo se um projeto para fazê-lo partisse dessa liderança, ou de qualquer outro agente particular. Como fenômenos culturais, mitos descentralizados são mais incontroláveis, independentes de qualquer um em particular dentro de seu campo gostar deles ou não.

É claro, lideranças vão incentivar e usar de seu dinheiro para propagar aquelas ideias que são mais de acordo com seus interesses. Grupos de poder seguem sendo os principais responsáveis por instaurar fanatismos. Mas esse processo me parece hoje mais parasitário quando acontece — e mesmo nisso parece mais frágil. Fanatismos são mais fáceis de se instaurar, ou de se aproveitar oportunisticamente a curto prazo, do que são fáceis de se controlar a longo prazo e manejar para determinados objetivos ou limites. Trump não criou os grupos neofascistas norte-americanos, nem jamais os controlou, mas conseguiu pelo menos amalgamá-los à sua base com um oportunismo retórico. Um influenciador que defende a meritocracia precisa antes se provar diante dos algoritmos e dos critérios já estabelecidos pelos amalgamados do seu campo que defendem esta meritocracia, antes que faça diferença alguém rico investir nesse influenciador ou não.

E mesmo nos casos em que esses influenciadores dão certo, eles estão sempre sujeitos às mesmas regras impessoais das métricas das redes sociais, como visualizações e curadoria algorítmica, que regem todos os que competem por atenção nesses espaços. Eles estão tentando vender produtos ideológicos e competindo por isso enquanto comerciantes, muito mais procurando demandas que já existam para tentar fazer uma “venda casada” junto a algum interesse que tenham, do que controlando o processo todo de cima.

E até quando dá tudo certo seguem existindo os discursos dizendo exatamente o contrário daquilo que se defende. Enquanto esses discursos contrários ainda são veiculados também, há dificuldades ao ponto da quase inviabilidade na construção de qualquer consenso.

Quando (é possível argumentar se esse “quando” não era mesmo um “se”) existia uma centralização, era viável que um “poder moderador” (e não me passa batida a ironia da associação dessa ideia com o autoritarismo militar brasileiro) organizasse um solo comum de embate, estabelecendo o mínimo denominador comum. Isso poderia ser frustrante nas soluções moderadas demais para funcionarem no combate à desigualdade e ao racismo, mas era igualmente eficiente para manter sob controle e fora das discussões públicas a retórica fascista.

Esse problema dos extremos tem ainda mais um aspecto, mais mítico do que técnico, que vamos discutir na sequência. Por agora, é importante só considerar que esse problema acontece em parte por essa situação dos ambientes comunicacionais que perderam o controle que antes possuíam com a Internet. A defesa ao status quo, que prioriza evitar desestabilizações, é proveitosa quando a desestabilização que se evita é perigosa, como num autoritarismo fascista, mas pode ser problemática quando evita alguma mudança estrutural radical que se entenda como necessária, como numa reforma agrária.

Vale mencionar que os mitos que rodam redes sociais, por mais personalizados que sejam, ainda atendem aos interesses de alguém: além dos pequenos grupos que os financiam, também e principalmente das grandes corporações que permitem que se disseminem em suas plataformas digitais. Por trás dos mitos personalizados digitais existe uma engenharia social rebuscada e refinadíssima, muito maior do que qualquer coisa que poderia acontecer no analógico controle que estados soberanos tinham antes sobre seus discursos. O interesse que esses mitos precisam atender, porém, é mais simples: funcionarem enquanto produtos, engajarem, gerarem tempo de tela. Para a Meta, pouco importa se um meme criticando a meritocracia seja disruptivo aos interesses de estabilidade social do capitalismo no estado brasileiro, desde que esse meme seja engraçado ou revoltante o suficiente para te deixar mais tempo acessando o Facebook, o Instagram ou o Whatsapp.

Os mitos personalizados e de nicho possuem pelo menos mais uma pegadinha: em troca de nos livrar da alienação aos mitos centralizados de antes, eles muitas vezes nos ingressam em alienações piores em escalas menores. O mito personalizado pode muito facilmente desenvolver a estrutura de seita ou culto que mencionamos antes, no risco aos pertencimentos. E nos riscos à identidade, um mito personalizado pode atender mais necessidades de uma pessoa, o que pode tornar mais difícil abandoná-lo.

Exemplo:

Se o mito meritocrático brasileiro me vender a ideia de que só a falta de trabalho duro pode explicar um possível fracasso meu em ascender socialmente, eu teria que conviver amargurado com essa identificação ao fracasso individual, do qual seria responsável, caso eu não ascendesse.

Mas nos mitos personalizados, posso tanto evoluir a frustração com o fracasso para uma crítica mais lúcida e racional da meritocracia (algo como a sublimação freudiana), quanto posso evoluir essa frustração para uma teoria conspiratória antissemita em que foram os judeus que, como parte do seu plano de dominação mundial, tornaram impossível que eu ascendesse (que pela negação da realidade estaria próxima à ideia freudiana de uma psicose).

Nesse caso da teoria conspiratória, a frustração se transforma em um chamado para a ação, no ódio e nos atos consequentes deste ódio contra algum bode expiatório. Tudo isso é mais prazeroso, além de proteger a identidade e suas construções míticas de forma mais eficiente, do que confrontar a frustração de frente. Esse caso também pode contribuir para uma imagem, também gostosa de se acreditar, de que aquele que adotou a teoria da conspiração é de alguma maneira especial por ser um dos poucos que sabem “a verdade”. Nesse caso, existem mais precariedades atendidas pelo mito personalizado, o que pode tornar a pessoa mais fanática em proteger essa narrativa que lhe entrega maiores benefícios terapêuticos.

Esse aspecto dos mitos personalizados nos nichos criados pelos ambientes tecnológicos é, talvez, a peça mais importante para impulsionar o cada vez maior abismo entre os que tentam se tornar mais individuados, que desistiram de qualquer narrativa mítica frente a desidentificação e desilusão extremadas, e os fanáticos que reagem às ameaças contra seus vínculos míticos com uma compensação extremada de paixão pelas histórias que dão sentido para suas vidas.

Esse aspecto dos mitos de nicho, inclusive, entra em confronto direto com uma possível secularização. No que diz respeito às suas versões de nicho, os mitos estão muito bem, obrigado, talvez melhores do que nunca. Sem estarem mais presos ao controle e aos interesses de qualquer instituição, sem terem que obedecer às limitações do secularismo, ou do cristianismo, ou dos interesses governamentais em alguma estabilidade social, passando por cima de todas as barreiras e limites da razão para agir apenas de acordo com os desejos míticos dos seus interessados, beneficiando-se ainda com a cacofonia da abundância incompreensível de informações e versões que relativizam a verdade, os mitos estão na verdade ganhando poder.

Esse ganho de poder é algo que demorei a aceitar porque eu, pessoalmente, gostaria de acreditar no contrário. No meu ensaio de 2017, mesmo já tendo desenhado a maior parte desse funcionamento dos mitos nichados e personalizados nos ambientes digitais, mesmo já tendo inclusive mencionado o poder de alienação destes mitos, eu tinha decidido ignorar (o que pode ter sido um erro inconscientemente motivado por ser mais cômodo assim) que existe uma nuance a separar uma crise dos grandes mitos centralizados de uma crise mítica no geral.

Eu queria acreditar que os mitos estavam perdendo potência porque, acreditando que eu mesmo passava por um processo de individuação e de desvinculação com meus mitos particulares, seria mais gostoso acreditar que a sociedade passava pela mesma coisa que eu, mas numa versão em larga escala. Parecia gostoso acreditar que eu e a sociedade caminhávamos para o mesmo lugar e que eu podia esperar que a sociedade como um todo se separasse dos seus mitos da mesma maneira que eu gostaria de fazer.

(E eu infelizmente tive que ceder à tentação de criticar meu eu de 2017 de novo nesse parágrafo aí de cima.)

Os grandes mitos estão em crise, sim. Para insistir em nosso exemplo, também está em crise o grande mito da meritocracia defendido por um estado em particular, ou por uma emissora de televisão em particular, ou pelo “bom senso” acordado entre esses grandes atores para estabelecer algum consenso, enfim, essa ideia mítica geral e mais abrangente da meritocracia está em decadência. Mas os mitos personalizados estão prosperando e existem infinitas outras versões da meritocracia pipocando por aí para cada nicho em que puderem existir, quase infinitas variações em cada grupo de Whatsapp, em cada seção de comentários, em cada sala privada do Telegram, em cada página do Facebook… Essas versões podem ser mais ou menos absurdas, ou mais ou menos lúcidas, porque os critérios para sua existência são organizados por grupos menores que respondem exclusivamente aos seus próprios interesses, demandas e necessidades na construção das ideias em que querem acreditar.

E com isso, chegamos ao fim da explicação sobre as causas. Agora, vamos olhar um pouco mais às consequências, antes de finalmente encerrar essa segunda parte do ensaio que já ficou muitíssimo maior do que eu esperava que fosse ficar.

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1. De um lado, desapego cínico e niilista aos mitos existentes como um todo

O primeiro e mais óbvio efeito de uma grande crise mítica é uma desilusão em larga escala. Não acho que exista muito mais para se explicar aqui para além do óbvio do óbvio. Mas acredito que existe pelo menos algo interessante a se analisar aqui no que diz respeito à insustentabilidade e instabilidade desse desapego como um projeto a longo prazo.

Uma sociedade de cínicos e niilistas (na verdade até pior do que isso, porque até o niilismo tem uma convicção, que seja por sua negação), enfim, uma sociedade sem nenhum apego mítico a absolutamente nada, é uma sociedade que, ao menos no modelo de sociedade desigual e hierárquica que possuímos hoje, não pode funcionar adequadamente.

Mitos são a base para a cooperação e para a motivação. Considerando custo-benefício, são também a alternativa mais barata e simples para uma articulação em larga escala das injustiças e tragédias do mundo. Sem mitos, não há identidade comum, nem valores comuns, nem confiança, nem expectativas sobre o futuro que inspirem qualquer tipo de planejamento. Até o investimento mais básico, por exemplo numa poupança, exige uma certa expectativa mítica no que diz respeito à estabilidade nacional e à possibilidade do país oferecer oportunidades de qualidade de vida no futuro.

O mundo do desapego mítico é um mundo, portanto, de constante tensão: para começar, entre as instituições estabelecidas e esses desapegados. Afinal, tomados por uma insatisfação muito grande com qualquer mito existente, os desmistificados também renegam as instituições que veiculavam, encarnavam e detinham o monopólio de capital simbólico desses mitos estabelecidos. O primeiro adversário de um desapegado mítico, portanto, é o detentor do poder oriundo dos mitos que estão sendo questionados e/ou abandonados.

Mas a tensão existe para além disso. Digamos que o movimento do tempo é irrefreável demais para a instituição do mito obsoleto ser capaz de reconquistar seu poder. Digamos também que nesse caso o desapego desmistificado realmente prevaleça. Para começar, vale lembrar que dificilmente esse processo acontece num vácuo em que algo é abandonado sem que exista algum substituto em evidência. Os questionadores do mito católico e dos problemas do catolicismo como instituição faziam mais do que somente criticar: ofereceriam soluções, especialmente nos movimentos de cristianismo protestante. Normalmente, a mesma voz que pode lucidamente criticar um mito antigo já é aquela que está ofertando, com certa essência publicitária, algum mito novo que quer colocar no lugar.

Esse processo pode ser malicioso e proposital, mas também poderia ocorrer naturalmente — e é fácil entender o motivo quando relembramos que mitos são, sob certa perspectiva mais mecânica de seus funcionamentos, produtos capazes de atender a certas demandas. Quando um mito é “tirado de circulação”, as opções são duas: acostumar-se com a falta, ou seja, com o vazio daquilo que o mito até então atendia; ou então procurar alguma alternativa que prometa atender às mesmas demandas.

Um exemplo simples, voltando às bases: digamos que para alguém existe uma demanda por propósito de vida, por um significado para a vida e para a morte. Se essa pessoa era até certo momento de sua vida cristã, essas demandas eram atendidas até então pela mitologia cristã. Se essa pessoa abandona o cristianismo, existem duas alternativas: a primeira, mais amarga e complexa, envolve um confronto com a falta, com a ausência de algo que supra essas demandas. Esse caminho normalmente envolve desconfortos e incômodos constantes com aquelas demandas que deixaram de ser atendidas. É uma escolha possível, essa da resignação, mas não é algo satisfatório como era a identificação ao mito anterior.

Se eu tenho uma ansiedade muito grande por saber o que acontece depois da morte — e mais ainda se tenho a expectativa de que aconteça algo — , a negação de qualquer transcendência de um ateísmo absoluto, ou a incerteza em final aberto de um agnosticismo, não são soluções satisfatórias, ao menos não miticamente.

Essas soluções podem ser suficientes se, e somente se, o sacrifício destas demandas atende a alguma demanda diferente num mito diferente. Se minha prioridade é me sentir inteligente, e entendo isso como mais urgente para minha vida terrena, talvez possa associar um agnosticismo ou ateísmo a essa posição de inteligência e fazer um negócio em que sacrifico a transcendência por uma identificação com algo que entendo como sagacidade. Quando dois mitos defrontam-se e nos obrigam a escolher por um deles, escolhemos aquele que atende à demanda que para nós é mais importante. Mas a demanda que não é atendida segue existindo e, como uma fome que nunca vai embora, vai continuar tornando sedutoras e atraentes quaisquer alternativas que prometam solucioná-la.

É por isso que o desapego é de certa forma instável. Hora ou outra, ainda mais em larga escala, torna-se muitíssimo tentador substituí-lo por outra coisa. O desapego pode até ser construído miticamente, se a autoestima identificada partir de uma negação dos significados, mas isso só vai funcionar para quem tiver uma demanda muito grande apenas por essa específica autoestima que esse mito vai atender, sendo capaz de negar todas as demandas outras que esse mito exigir que sejam sacrificadas.

Nosso momento histórico me parece particularmente instável porque vivemos um longuíssimo projeto, estabelecido como uma experiência social em larga escala, em que o abandono de mitos anteriores e a resignação para certas demandas foi algo imposto como essencial para atender às exigências dos novos mitos mais seculares. Essas demandas não atendidas pelo que foi estabelecido como “bom senso secular” nunca foram embora e estão dando seus jeitos de invadir o discurso público e o imaginário popular novamente. De certa maneira, o que vivemos é um momento inédito, em que a decadência de mitos anteriores não foi imediatamente resolvida com a proposta de mitos novos, dada a crescente desconfiança com os mitos em si que o secularismo levantou. Então o que sobra é esse vazio não resolvido, em que as demandas seguem lá, mas sem qualquer viabilidade de mitos que as resolvam.

Se quisermos considerar a viabilidade da resignação e do desapego mítico como projetos em larga escala e longo prazo, o momento histórico que vivemos é talvez o melhor e mais contundente argumento — se não o único — para essa viabilidade. Mas esse momento histórico também demonstra que este projeto já está começando a mostrar suas rachaduras para todo lados. É absolutamente inédito na história humana uma tentativa tão amplamente difundida de impor a resignação diante de certas necessidades míticas. É também absolutamente inédito o desafio que temos ao lidar com as consequências desse projeto.

Vamos considerar coisas como exigir um mínimo de funcionamento social laico e burocrático para além de instituições religiosas, importante para que cartórios atendam e registrem pessoas de fés diferentes. Processos desse tipo podem parecer meros detalhes, mas afincam uma realidade pragmática que vai além do controle de qualquer credo em particular, o que de certa forma anula um pouco de todos os credos em suas ambições totalizantes. Numa sociedade secular, um evangélico pode acreditar profundamente que o Estado laico é um erro pecaminoso e que os evangélicos deviam assumir todo o poder e impor seu evangelho como único caminho para salvar todos os outros do inferno; mas enquanto essa sociedade for minimamente secular, esse absolutismo religioso não se realiza independentemente da fé de qualquer grupo particular, o que estabelece algum relativismo, uma falta, uma dúvida ao poder e eficácia da mensagem religiosa, e até mesmo um golpe na autoestima dos identificados com algum credo específico com tendências messiânicas.

O capital também impõe exigências semelhantes: não há credo, nem demanda mítica, que possa significar o mundo por cima dos funcionamentos do capitalismo. Se para o cristianismo a caridade e o desapego dos bens terrenos eram mensagens importantes há alguns séculos, o individualismo consumista exigiu que essas mensagens abaixassem muito seu tom, criando um bizarro híbrido paradoxal e esquizofrênico cristão/capitalista que é ao mesmo tempo individualista, mesquinho e ainda dito cristão, mesmo que esvaziado de todas as suas principais mensagens. Não há leitura possível do cristianismo, bem como de qualquer outra religião ou identificação mítica, que possa suplantar ou ameaçar os funcionamentos do mercado, dos capitais, das transações neoliberais entre nações. Em 2023, os dois únicos países do mundo em que um projeto mítico é importante o suficiente para passar por cima das vontades do mercado são a Rússia, com sua autodestruição imperialista na invasão à Ucrânia, e a Coreia do Norte, com sua doutrina de suposta autossuficiência. Mesmo esses casos são relativos: a Rússia, mesmo sancionada, segue absolutamente dependente dos mercados internacionais; a Coreia do Norte, impossibilitada de participar dos mercados internacionais por ideologia e sanções, ainda assim participa desses mercados através do mercado negro.

Mas de novo: essa secularidade, esse neoliberalismo, são sustentáveis? Eles são sustentáveis considerando que estarão a todo momento sob ataque de todos os mitos que renegam, tanto quanto estarão a todo momento sendo obrigados a se comparar com alternativas míticas que podem parecer muito mais atraentes para atender certas demandas? Eu acredito que não, mas dou ênfase no “acredito” porque essa questão, para além de meus achismos, segue em aberto.

Existe pelo menos mais um aspecto, que acredito que é o mais importante de todos, no que diz respeito à interação nas sociedades atuais entre mito, poder, desigualdade, classes e capitalismo.

Em culturas mais horizontais, poderia ser argumentado que mitos surgem e se mantém de maneira mais orgânica, como uma manutenção das demandas psíquicas daquele grupo diante de precariedades mais gerais, como medo da morte. Em teoria (e sinceramente, não sei o quanto acredito mesmo nessa possibilidade que vou descrever agora), não necessariamente as demandas que os mitos atendem precisam ser atendidas através de uma estrutura hierárquica que oferte e organize tais mitos. Mas não é preciso ficar preso a elucubrações sobre essa possível sociedade horizontal em sua maneira de manejar mitos por um simples motivo: não é essa a sociedade em que vivemos, não é essa a sociedade em que mitos existem atualmente.

Como já falamos até aqui em vários momentos, nossas sociedades desiguais e hierárquicas precisam profundamente dos mitos que estabeleçam, naturalizem e organizem as posições sociais. Sem um mito meritocrático que justifique o esforço de um trabalhador de classe baixa que será explorado com a promessa de uma possível ascensão social, a exploração desse trabalhador se torna cada vez mais inviável.

Existem centenas de processos nas sociedades atuais que são profundamente dependentes de mitos que façam sua manutenção, no geral todos que envolvem a motivação e o propósito para o trabalho na estrutura capitalista, nisso incluindo ainda o papel de provedor e a imagem da família como novamente motivadores para esse trabalho nesta estrutura. Quando falamos sobre trabalhar para alimentar filhos, não é costume considerar um cenário de fuga para o meio do mato para trabalhar duro em subsistência. A família é um argumento importante para a exploração, no sentido em que um funcionário costuma trabalhar, receber salário e sustentar sua família via esse dinheiro enquanto paga impostos, o que numa tacada só transforma a família numa entidade que acaba por defender essa estrutura desigual, o dinheiro, o trabalho assalariado e o Estado como um todo.

Outro processo profundamente dependente dos mitos é o do consumo. Quase todos os produtos que são vendidos estão associados a algum mito, em algum grau. Isso vale desde as constatações mais óbvias, como um perfume que pode contribuir para um mito pessoal de identificação enquanto alguém atraente de acordo com determinados critérios, prometendo ainda resolver as faltas da carência, da falta de interação sexual, insegurança, etc., até coisas menos óbvias como uma empresa de construção civil que fabrica maçanetas eletrônicas e pode ser beneficiada pelo mito de construir uma casa para a família, ou pelo mito paranoico de proteção da propriedade e bens diante de possíveis e hipotéticos ladrões, ou até mesmo por teorias da conspiração vendendo a ideia de um mundo pós-apocalíptico na próxima esquina.

Enfim, a ausência de mitos prejudica tudo isso. Sem mitos, não há motivação profunda para o trabalho. Não existe motivação para entregar mais do que o mínimo do mínimo por parte de quem não tem sonhos, nem esperanças, nem vê no trabalho nada capaz de ser realmente transformador para sua vida. Sem mitos, não há também motivação profunda para o consumo. Não há mercado de moda, de alimento, de produtos culturais, entre infinitas outras coisas, que possa se sustentar diante de desinteressados desmistificados. É possível obrigar que pessoas sigam trabalhando e consumindo por caminhos mais simples, como ameaças e exercícios de violência, mas esses caminhos são mais caros, menos eficientes, e tornam mais viável que as pessoas escapem das regras do jogo na primeira oportunidade que encontrarem.

Um zelador que acredite no seu papel de zelador, que se identifique miticamente como um zelador que pode enriquecer, ou entregar ao menos oportunidades de enriquecimento aos filhos para que estes deixem de ser zeladores estudando, é um zelador que vai seguir as regras do jogo. Um zelador que é zelador apenas pela ameaça de passar fome, ou de ser espancado ou preso, é um zelador que vai estar mais propenso a roubar, a desestabilizar ou boicotar tudo que for possível, sempre que for possível, porque a revanche é seu único mecanismo de escape e esperança. O momento em que vivemos, que é ao mesmo tempo de uma profunda crise mítica, não por menos é também um momento de crescente necessidade de agressividade policial, de ameaças mais contundentes e constantes para proteger a propriedade privada e para exigir dos trabalhador de baixo calão que sigam submissos nas suas posições. Quando fracassam os mitos é que aparecem primeiro as burocracias e depois os porretes.

Portanto, o desapego mítico é de certa forma um comportamento antissocial, pelo menos da maneira como são construídas as socializações de nossa sociedade presente. A instabilidade da sociedade hierárquica sem mitos é tanto interna quanto externa: interna, há precariedades que não são alienadas, demandas míticas não atendidas; externa, há demandas sociais, das instituições míticas interessadas em perpetuar seu poder, e dos processos e funções sociais que esse mitos deveriam “azeitar”.

Quando penso no mundo eu que vivo, este mundo de meados de 2023 e das décadas que nos levaram até aqui, costumo pensar em termos de mitos fracassando e deixando esse vácuo de poder no lugar. Vivemos um mundo que foi devastado miticamente pelo neoliberalismo, que era um mito competitivo, autofágico e completamente agressivo a qualquer mito diferente, a qualquer outra possibilidade de sonhar o mundo (novamente, retomo a ideia do realismo capitalista); num processo mais duradouro, vivemos o fim da longa cauda instaurada pelo iluminismo e pelas narrativas que se estabeleceram aos poucos pós-reforma protestante e queda do feudalismo aristocrático.

De maneiras diferentes, mas igualmente agressivas, neoliberalismo e mito iluminista foram responsáveis por inviabilizar qualquer alternativa mítica a eles mesmos. Suas crises recentes, junto com a queda de relevância por parte do cristianismo, abrem pela primeira vez em séculos a oportunidade de outros atores prometerem outras alternativas para atender a outras demandas que seguiam até então ignoradas. Os extremismos são os primeiros a se aproveitar dessa abertura.

Vamos falar muito ainda nesse ensaio sobre a individuação e a desidentificação como processos subjetivos e pessoais. Mas me parece que há pouco a falar sobre ambas enquanto uma possibilidade em larga escala. Parecem para mim ser no máximo estados transitórios, extremamente instáveis e fadados a serem deixados de lado tão logo uma nova proposta mítica se assente com capacidade de atender às demandas sociais em larga escala. Esse projeto não precisa acontecer descontrolado e logo no próximo capítulo gostaria de propor alguns caminhos para tornar a produção e manutenção de mitos algo construído de maneira mais ética e organizada. Mas o fato continua sendo este: quando mitos caem e deixam de suprir certas faltas, existe uma demanda de construção para mitos novos que possam agir da mesma maneira.

Quero desabafar um pouco admitindo que é um pouco triste para mim constatar tudo isso. O que pessoalmente me agradaria seria acreditar num mundo que estivesse em constante refinamento do processo de desapego cada vez maior para com todos os seus mitos. Por nosso momento que é atipicamente desapegado aos mitos, sinto que isso ainda é uma possibilidade, embora acredite que pode ser um pouco de esperança otimista (e mítica) de minha parte. A instabilidade ao redor desse momento de poucos mitos, o furor fanático que vai borbulhando e ressurgindo para todo lado, parecem reforçar a ideia de que é inevitável que essa instabilidade se desenlace num momento futuro de nova paixão mítica.

Isso quer dizer que a sociedade futura, ao atender a essas demandas e desenvolver novos mitos poderosos, necessariamente sacrificará todos os aspectos do seu secularismo presente? Vai depender muito de várias coisas. A começar, do processo: se existir uma tentativa de reprimir os novos mitos, o resultado provavelmente será pior, como foi, para citar um caso único, na repressão dos romanos em decadência mítica ao furor do mito apaixonado e novo dos primeiros cristãos. Caso os novos mitos surgirem desregulados, como tendem a surgir, e caso sigam desregulados conforme ganham relevância, daí vai depender do humor destes mitos em si: um comportamento messiânico intolerante poderia ser instaurado ou não, a depender principalmente do Messias da vez.

O que importa daqui é a noção de que a crise mítica em larga escala tem o desapego desidentificado como um resultado transitório que surge, desenvolve-se e coexiste com a ascensão de novo fanatismo, até que esse novo fanatismo suplante e reprima a desidentificação que, como um vácuo de poder instituído, permitiu que o novo mito surgisse.

Talvez eu esteja errado. Talvez o secularismo e a desidentificação mítica sejam realmente processos que vão evoluir linearmente, como desejam todos os acadêmicos e seculares, eu incluso nisso. Talvez a crise e a instabilidade que vivemos permaneça durante séculos, agravando-se enquanto aprofunda-se mais a desidentificação que vai pouco a pouco castrando a libido de qualquer demanda atendida por mitos.

Talvez.

Mas mesmo se for isso que vai acontecer, o que me parece improvável, o fanatismo será sempre o companheiro antagonista de todo esse processo.

O que nos leva para o último ponto:

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2. Do outro, ação compensatória que gera fanatismo reativo para proteção da identificação mítica, seja na defesa dos mitos em crise ou na criação de mitos novos

Quando mitos antigos saem de cena, três atores são os principais impactados e prejudicados por isso: as instituições que detinham o capital simbólico desses mitos antigos; aqueles que estabeleceram as principais alianças com as instituições que veiculavam esses mito antigos; e, finalmente, os mais apaixonados e fanáticos dos identificados ao mito antigo que sai de cena.

Quero usar exemplos para explicar esse problema. Para começar, o exemplo que mencionei logo acima dos romanos na situação de saída de cena do paganismo e de chegada do cristianismo como nova religião oficial do império.

O paganismo não era um mero detalhe na vida de um romano, nem no funcionamento de seu Estado. A religião, com seu panteão sempre aberto para a chegada de novos deuses, era parte importantíssima da estratégia de assimilação das novas culturas e povos conquistados. Quando o cristianismo surgiu, foi esse o lugar que lhe foi ofertado na estratégia romana: Jesus e o Deus dos cristãos podiam muito bem ser mais dois deuses adicionados ao panteão romano, desde que convivessem e coexistissem com todo o resto do panteão. Fosse feito isso, os cristãos teriam sido assimilados de volta ao caldo cultural romano mais geral. Mas o xeque-mate do cristianismo na estrutura mítica (e até mesmo governamental) dos romanos foi a absoluta convicção de que seu Deus não era só mais uma figura de um panteão romano geral. Tratava-se de um Deus único, o único real frente a todos os outros que eram falsos.

O império romano já era relativamente antigo quando os cristãos começaram a se popularizar. Também já era antigo o paganismo romano como praticado, com os romanos de então vivendo inclusive uma saturação do seu paganismo de até então. Tratava-se de um desinteresse religioso no sentido em que não existiam tantos defensores muito apaixonados do paganismo, ainda mais quando contrastados com os apaixonadíssimos defensores do cristianismo nascente.

Mas dizer que os defensores apaixonados do paganismo romano eram poucos não é a mesma coisa que dizer que não existiam em absoluto. Muitas pessoas devem ter ficado muito nervosas e frustradas quando algum deus ao qual se sentiam profundamente vinculadas e íntimas, digamos como talvez Minerva ou Júpiter, foram sendo deixados de lado e ditos como falsos frente a um cristianismo que se instaurou como religião oficial do império.

Para além dos fiéis enquanto pessoas físicas, a insatisfação deve também ter sido grande entre camadas do poder estabelecido de até então. O crescimento do cristianismo certamente não foi uma “boa-nova” entre sacerdotes pagãos, ou entre os envolvidos na manutenção e atividade dos templos que foram tornados obsoletos. Existiram prejuízos também nas alianças desses sacerdotes e templos com atores políticos, como o mercado ao lado do templo famoso, o responsável pela administração da cidadezinha pequena que só recebia turistas por conta de algum templo específico, etc.

Quando um mito cai, existem prejuízos políticos, prejuízos financeiros e prejuízos emocionais. Se existiam pagãos fanáticos, e certamente existiam, a decadência de sua religião como um todo não deve ter deixado eles nada felizes. E conforme os papéis foram se invertendo e os cristãos passaram de minoria oprimida a maioria opressora, esses sentimentos de insatisfação devem ter crescido mais ainda entre os poucos rebeldes remanescentes.

A decadência de um mito é um processo de abandono emocional e de falta para demandas terapêuticas que deixam de ser atendidas. Se a resignação secular é uma das possibilidades para quem deixa de ter suas demandas atendidas, o fanatismo é a outra, seja no apego ao mito decadente, ou na apaixonada adesão a um mito novo com potencial de atender às mesmas necessidades.

Digamos por exemplo que alguém fosse um fanático seguidor de Júpiter. Pelo bem do exemplo, essa pessoa não se entende apenas como um humano qualquer, mas como um escolhido de Júpiter, alguém que tem uma relação especial e particular com esse deus. Esse mito em particular estabelece muito da identidade dessa pessoa que, a partir disso, entende a si mesma como especial e escolhida. O propósito de vida dessa pessoa está inerentemente atrelado, assim, à fé que tem especificamente em Júpiter.

Não existe cristianismo ascendente que possa resolver as mesmas demandas para essa pessoa frente à sua relação particular e íntima com Júpiter. Para essa pessoa, portanto, o apego apaixonado e fanático ao mito se torna progressivamente mais importante, especialmente quando esse mito se entende como ameaçado por narrativas terceiras que o perturbem.

Esse caso da paixão na “base da pirâmide” é a oportunidade que precisa ser explorada pelos detentores das instituições vinculadas. De certa forma, um mito é como uma estrutura pesada que precisa ser erguida por seus fiéis. Quanto mais fiéis estão envolvidos em manter a estrutura em pé, menos força cada um deles faz individualmente. Quando são poucos aqueles ainda dispostos a manter a estrutura, o esforço (e esforço aqui é metáfora para adoração fanática) precisa ser maior. Se eu sou um sacerdote do tempo de Júpiter, a existência dos remanescentes fanáticos seguidores de Júpiter é fundamental para que meu templo siga tendo um propósito de existência quando a maioria das pessoas está se convertendo ao cristianismo.

Se eu sou esse sacerdote, ou o dono da cidadezinha do templo de Júpiter, apelar mais eficientemente para esse nicho de fanáticos se torna cada vez mais importante conforme existem menos seguidores. Se antes era possível exigir de cada seguidor de Júpiter o sacrifício de um boi ao ano para manter a economia da instituição religiosa funcionando, o seguidor apaixonado no fim da linha vai precisar sozinho sacrificar dez bois para compensar pelos outros fiéis que deixaram de existir. Para a cidadezinha, um nicho mais restrito de seguidores de Júpiter precisa gastar muito mais na sua visita ao templo de Júpiter, em comparação ao pouco que gastavam muitos seguidores de Júpiter antes, para que as contas sigam equilibradas e lucrativas.

Portanto, por parte tanto das instituições quanto das pessoas, o fanatismo é uma resposta possível e em certa medida necessária quando o mito está decadente: se as pessoas deixaram de prestar atenção quando você fala, talvez você resolva começar a gritar. A decadência de um mito sempre carrega o pânico moral e o oportunismo daqueles interessados em tentar manter este mito por aqui mais um pouquinho.

Eu acredito que em determinados casos esse tipo de fanatismo pode ser suficiente para que um mito se revitalize e retome sua posição original, especialmente se houver uma crise muito grande na etapa de transição dos poderes.

O mundo islâmico, por exemplo, começou um processo de desenvolvimento das ciências anterior ao processo semelhante do mundo ocidental. Foi lá que se desenvolveram racionalidade e algo que eu me atreveria (e me atrevo sabendo ser atrevido porque não sou historiador) a chamar de secularismo. Mas uma série de crises e instabilidades, junto a um pânico moral crescente por parte dos nichos intolerantes da religião, revitalizou o mito islâmico mais fanático e enterrou o secularismo e o foco na razão em algumas destas sociedades.

Em outros casos, o fanatismo não é suficiente para revitalizar o mito e ele acaba mesmo perdendo relevância. Mas é interessante considerar que a demanda do fanático não desaparece necessariamente só porque o mito ao qual se associava saiu de cena. E se a demanda ainda existe, também segue existindo a oportunidade de um novo mito assumir o mesmo papel e ser protegido de forma tão fanática quanto.

Se realmente o nosso hipotético romano se desiludir de Júpiter enquanto deus, isso não altera necessariamente a falta deste romano que Júpiter atendia, ou seja, dar para esse romano um sentimento de que era especial, único, escolhido, e de que sua vida tinha algum propósito. Se este romano não aprender a viver com a falta de um mito que atenda a esta demanda, a falta do mito de Júpiter pode ser uma oportunidade para que ele seja cooptado por qualquer outra história que entregue conteúdos míticos semelhantes que possam atende às mesmas demandas. Se puder se convencer de que é um escolhido do Deus dos cristãos, um messias especial e único, talvez esse romano consiga transicionar de Júpiter para Deus com mais facilidade.

Quero dar um exemplo concreto de uma situação em que aconteceu mais ou menos isso. É uma história bem famosa, inclusive.

Os deuses romanos, e na verdade os deuses pagãos como um todo, eram muitas vezes associados às vitórias bélicas. Se uma vitória acontecesse numa batalha importante, era costumeiro atribuir a vitória à contribuição de algum deus. Essa era uma demanda importante do paganismo como praticado até então: oferecer confiança, esperança e sentido para batalhas a serem travadas, ou que foram vencidas. Se eu sou um romano no campo de batalha e sei que nosso lado da guerra está pedindo ajuda de Mercúrio, isso pode me deixar mais tranquilo se eu souber que a maioria das batalhas que foram travadas com ajuda de Mercúrio acabaram em vitória por parte dos romanos.

A decadência do paganismo deixou aberta essa demanda por uma ajudinha divina em situações de batalha. Por isso, é interessante considerar a história famosa de Constantino, imperador romano que primeiro professou-se cristão. Mesmo se a história for apócrifa em alguma medida, ela é importante pelo simbolismo que carrega.

Segundo a história, Constantino estava numa batalha importante em que, numa certa noite, sonhou com uma cruz em que estava escrito “in hoc signo vinces” (latim para “com este sinal vencerás”). No dia seguinte, o imperador mandou que esta cruz fosse pintada nos escudos de seus soldados. A batalha foi vencida, vitória esta que Constantino teria atribuído supostamente (há controvérsias se ele fez isso mesmo na época ou se essa foi uma interpretação posterior) ao Deus dos cristãos.

O que me interessa nessa história é, mais do que qualquer coisa, o quanto ela representa uma leitura absolutamente romana sobre o cristianismo e o Deus dos cristãos. Se os romanos estavam acostumados a entender seus deuses como entidades que contribuíam no campo de batalha, faz sentido que o Deus cristão só fizesse sentido e fosse aceito quando atendesse a demandas semelhantes. O Deus cristão dessa passagem de Constantino se comporta como um deus romano tradicional. Depois de alguns séculos em que o cristianismo vinha sendo sobretudo antagônico ao império romano (desde a opressão dos povos judeus que primeiro originaram a religião, passando pela crucificação de Jesus, e também pelas perseguições aos cristãos dos séculos posteriores e pelos textos apocalípticos que funcionavam em grande parte como indiretas metafóricas aos romanos), é muito paradoxal e irônico que o Deus dessa religião ajudasse o imperador romano a vencer qualquer batalha que fosse.

Mas essa ironia carregava aos romanos a promessa de um Deus cristão que pudesse, ao invés de ser antagônico aos seus interesses, também proteger Roma e beneficiá-la. Era portanto um Deus cristão que se tornava atraente porque carregava a promessa de atender às mesmas demandas emocionais e terapêuticas que figuras como Mercúrio ou Júpiter outrora teriam atendido.

No geral, o fanatismo aparece quando demandas muito fortes são represadas ou não atendidas pelas oportunidades míticas que a sociedade disponibiliza. No Brasil de 2023, por exemplo, o mito da meritocracia secular nem de longe é suficiente para oferecer esperança verdadeira de ascensão social para as classes baixas — e daí surge o apelo para teologias da prosperidade, por exemplo, tanto quanto o apelo do discurso do “traficante que ostenta” que seduz adolescentes sem perspectiva de futuro a entrarem para o crime.

Se a demanda não some, o fanatismo está somente esperando um outro objeto para vincular-se. Não adianta, por exemplo, somente desiludir uma pessoa pobre, uma pessoa que ambiciona alguma ascensão social, de que essa ascensão não virá pela teologia da prosperidade, ou pelo crime organizado. Se não existirem alternativas lúcidas para essa ambição, algum outro oportunismo vai aproveitar-se da situação para oferecer outra solução milagrosa, seja no fanatismo político envolto em algum candidato específico que vai mudar tudo, seja nas promessas milagrosas de enriquecimento de algum esquema de pirâmide.

Nesse sentido, o fanatismo é mais uma consequência de um problema anterior, que é a demanda que está sendo implicada miticamente. É uma consequência que por si pode implicar uma dezena de outros problemas, mas que não se resolve quando não se considera aquilo que a causa. Nas sociedades capitalistas e seculares, por exemplo, a ascensão dos populismos e fascismos é sempre entendida enquanto problema em si mesmo, mas pouco se considera o quanto esta ascensão se trata antes de nada mais do que uma consequência da narrativa do realismo capitalista. Este realismo capitalista propositalmente castra qualquer outra proposta mítica que atenda às esperanças das pessoas com argumentos do tipo “isso até pode estar ruim, mas ruim é o melhor que pode se@r se não fosse isso, seria pior!”.

Mesmo se ideias desse tipo fossem verdadeiras, e não acredito que sejam, elas não são lá muito esperançosas ou viáveis socialmente, certo? Num mundo em que esse discurso acomodado e resignado seja a via de regra, é evidente que todo tipo de mito fanático vai brotar se aproveitando das demandas não atendidas das pessoas.

Como disse no final do ponto anterior, talvez a força do secularismo, na sua versão do mito iluminista resignado, seja suficiente para que, devido às instituições que fortalecem este discurso e os resultados materiais que estes discursos pode entregar, os fanatismos não floresçam. Talvez essa força seja suficiente para que mitos decadentes não se revitalizem e talvez seja suficiente para que novos mitos fanáticos não surjam. Mas se for esse realmente o caso, se o mito iluminista com sua autofagia de qualquer outra possibilidade além dele mesmo for tudo que é viabilizado, os fanatismos seguirão mesmo assim sendo o maior dilema com o qual essa estrutura terá que constantemente lidar.

Quero dar mais dois exemplos do que quero dizer com isso para fechar finalmente essa parte do ensaio, que ficou enorme, e passar para a próxima.

O primeiro é um exemplo simples, voltando à questão da meritocracia. Por mais que possamos ter críticas à meritocracia como ideia realmente aplicável ou existente nas sociedades capitalistas contemporâneas, é preciso entender que um dos motivos para esta ideia ainda existir, no sentido do que leva pessoas a terem algum apego por essa ideia, é que a meritocracia é otimista e esperançosa. Ela vende um mundo em que existem oportunidades, em que o esforço é recompensado, em que o trabalho dignifica e tem propósito porque carrega a promessa de bons resultados — pelo menos se for trabalho duro e se for trabalho inteligente e bem aplicado.

Em 2023, a desigualdade de classes, a automação e uma série de outros problemas estão aos poucos corroendo a ideia da meritocracia, se não como algo que deveria existir, pelo menos como algo que não existe de forma funcional agora. A falência da meritocracia é tão grande que até mesmo as direitas precisam admiti-la, embora contextualizem essa falência em teorias conspiratórias como ao falarem de uma elite maldosa (e normalmente uma elite judia, já que essas teorias costumam ser também antissemitas) que está dificultando a meritocracia de funcionar. Para não se criticar a estrutura como um todo, a estratégia é criticar alguns atores dessa estrutura que seriam “maus atores”, que estão jogando de forma injusta. Se esses atores em específico não existissem ou fossem impedidos, a estrutura funcionaria perfeitamente.

Mas mesmo esse discurso é ainda pouco eficiente, no sentido em que não oferece soluções simples, nem algum otimismo. As teorias conspiratórias sobre uma elite maldosa não costumam oferecer um caminho para solucionar qualquer coisa: são fatalistas, derrotistas e costumam destacar o desespero e a impotência das pessoas de fazer algo, numa versão conspiratória e alucinada do mesmo tipo de resignação do realismo capitalista (que frente a isso parece até um pouco mais lúcido).

Por isso, mais eficiente é abandonar um pouco o problema da meritocracia se for possível focar atenção em outras coisas, como o pânico moral. A desigualdade e a falta de meritocracia é vista contextualizada numa situação na qual aquilo que pode ser feito envolve preservar bons costumes conservadores que, de alguma maneira, seriam antagônicos à erosão da meritocracia e aos interesses das “elites marxistas globalistas”. O pânico moral oferece soluções mais urgentes: de alguma maneira, recriminar um casal gay num filme da Disney serviria para proteger e revitalizar a meritocracia e a sociedade como um todo, impedindo o plano de dominação global das elites maldosas de se consolidar.

Mais do que isso, o pânico moral carrega mais potencial de fanatismo numa situação de decadência mítica. Se um mito está decadente, isso quer dizer que os critérios que esse mito empregava para julgar o que é valoroso também estão aos poucos perdendo seu lugar e papel. Durante um momento de ascensão do cristianismo que trabalhava através de novas regras, parâmetros e critérios, seria decadente da perspectiva de um pagão esta nova sociedade em que não acontecessem orgias para deuses e sacrifícios de bois em templos.

Normalmente, discursos diferentes entram em decadência mítica em momentos diferentes. Um campo costuma amalgamar aspectos míticos também porque o potencial mítico de algumas pautas serve para a “venda casada” de outras pautas impopulares. Nas esquerdas, a insatisfação com a desigualdade e disfuncionalidade das sociedades capitalistas é para muita gente suficiente para que aconteça a venda casada com uma apologia a autoritarismos de esquerda e uma certa defesa inocente e idílica de uma utopia socialista no porvir. Para outras pessoas dessa mesma esquerda, talvez seja o sonho utópico que realmente as inspire e todo o resto só tenha que vir junto no pacote.

Nas direitas, o pânico moral na defesa da família normativa e na perseguição, só para citar exemplos mais demarcados, aos homossexuais, ou ao aborto, ou às desconstruções de gênero, enfim, este pânico moral a tudo isso, pode servir de base para uma venda casada a políticas impopulares de austeridade econômica. Num mundo em que não se dá mais para acreditar na defesa à meritocracia, talvez as direitas consigam manter alguma base se pelo menos puderem ainda defender o pânico moral aos movimentos feministas e de diversidade sexual. E se a defesa à meritocracia está decadente ao ponto de precisar dessa venda casada, é provável que o tom suba para que o fanatismo do pânico moral, que mantém a estrutura toda de pé, seja suficiente para motivar os remanescentes a permanecerem associados àquele amálgama mítico especificamente.

No geral, eu acredito que a decadência mítica seja algo em larga escala, algo que está implicando tanto mitos de direita quanto de esquerda, com processos semelhantes de tentar “vencer no grito” partindo dos dois lados, embora os dois lados façam isso de maneiras muito diferentes. Nas direitas, isso quer dizer se render à extrema direita. Nas esquerdas, quer dizer mais se render ao centrismo, a uma certa defesa do status quo acomodado, o que me parece até irônico.

Quero usar então do meu último exemplo para ilustrar um pouco mais do que quero dizer com isso:

Photo by Paul Griffin on Unsplash

Vamos imaginar um restaurante muito chique em Nova Iorque.

Esse restaurante em específico é real, mas também é um símbolo. Ele é real na concretude de que existe, enquanto é simbólico no sentido em que a entrada lá, o ser servido lá, o ter como pagar para estar lá, carrega expectativas míticas.

Cada pessoa que está nesse restaurante pode ter mitos diferentes para estar ali, bem como justificativas concretas diferentes.

Exemplo: um herdeiro de um grande império empresarial pode estar ali ciente de que está lá por conta desse legado familiar e talvez ele até entenda que esse legado familiar tem algo de mítico para que ele mereça estar ali pela família que tem. Mas talvez ele acredite que merece estar ali não por sua família, mas por ter se esforçado muito.

Uma segunda pessoa pode estar lá acreditando que merece estar por ser branca, se for racista; uma terceira pessoa que é negra pode acreditar que merece estar lá justamente por não ser branca e por Nova Iorque ser, supostamente, um centro cosmopolita que promove a diversidade. Alguém pode estar lá enquanto aristocrata que tem dinheiro de gerações, ou então enquanto pessoa que ascendeu por carisma, ou como pessoa que ganhou na loteria.

No final das contas, todo mundo que paga para estar ali tem um motivo concreto para estar (comer, ter um encontro, uma reunião, etc.) e também um motivo pelo qual acredita que merece estar ali, o que envolve um motivo simbólico pelo qual o estar se vincula à identidade (“mereço estar porque sou abcd e, se estou, esse estar aqui comprova meu ser abcd”). Se o motivo real da presença e os motivos míticos do merecimento e do pertencimento são associados ou distantes, pouco importa.

Certamente existem cínicos também que não veem o restaurante simbolicamente e que não acreditam que merecem estar ali por um motivo ou por outro. Mas até estes podem estar no restaurante chique em Nova Iorque justamente pela maleabilidade mítica do cenário. Para pertencer a um restaurante chique em Nova Iorque, o capitalismo oferece uma maleabilidade de caminhos, alguns mais restritos do que outros. Se alguns poucos exemplares dos caminhos mais difíceis precisam estar ali só para convencer de que existe justiça (alguns ali vão ter nascido pobres e enriquecido durante a vida através do próprio trabalho, por exemplo), outros vão estar ali pelos caminhos mais fáceis e em maioria (terem nascido já ricos). Se a maleabilidade mítica do restaurante funcionar, essa diferença entre maioria e minoria não será demarcada explicitamente e parecerá justo que todos estão ali em caráter de igualdade, sem uma distorção que puxe o restaurante para algum lado de uma lei mais injusta.

Só por essa maleabilidade, o capitalismo já tem um benefício mítico frente a algo como um feudalismo aristocrata em que, não tivesse nascido numa determinada família, você não poderia ter nem mesmo esperanças de estar num restaurante chique. A promessa do restaurante chique em Nova Iorque é portanto mais esperançosa, mais viável em larga escala, mais capaz de atender diferentes demandas para diferentes pessoas. Eu gosto mais de viver num mundo em que posso pensar que, sem ter nascido nobre, existe ainda uma possibilidade, mesmo que pequena, de que eu vá estar num restaurante chique em Nova Iorque algum dia no futuro, frente a um mundo em que, fosse a entrada nesse restaurante restrita só aos nobres de nascença, eu saberia que não vou entrar lá nunca, de jeito nenhum.

Quando digo que as esquerdas e direitas estão se transformando, no sentido em que as primeiras estão mais acomodadas e as segundas estão mais radicais, eu quero usar esse exemplo do restaurante para perguntar algo: entre a direita e a esquerda, quem você acredita que, no geral dos mitos que mais circulam, estaria mais propenso a argumentar que esse restaurante chique em Nova Iorque deve ser revolucionado ou destruído?

As esquerdas que se viabilizam politicamente, aquelas mais centristas, não ousam sugerir algo tão radical quanto a ideia de que restaurantes chiques não deveriam existir. Na verdade, elas costumam promover uma ideia de manutenção da meritocracia que poderia torná-la mais justa. O restaurante chique em Nova Iorque segue tendo só cem lugares, enquanto a cidade tem milhões de habitantes e o mundo tem bilhões de pessoas, mas ao menos a restrição de quem está no topo da hierarquia pode ser menos machista e racista: os cem escolhidos para estar no topo e receber mais do que todo mundo podem ser, pelo menos, cem pessoas de diferentes origens, diferentes etnias, diferentes pontos de partida na vida, diferentes sexualidades, credos, nacionalidades, etc. Além disso, o discurso da esquerda moderada vai propor que mais impostos deveriam existir para que as pessoas comuns tivessem melhor educação e oportunidades de trabalho porque, se tivessem acesso a tudo isso, a meritocracia funcionaria de maneira mais justa para que talvez algumas delas estivessem no restaurante chique em Nova Iorque no futuro.

No geral, quando tentam explicar quem não está no restaurante chique em Nova Iorque, as esquerdas moderadas falam sobre melhorar oportunidades, azeitar melhor sistemas que já existem e ajustar detalhes no acesso a empregos e educação. É essa a esquerda que elegeu Biden, Obama e, no Brasil, Lula.

Nas direitas, o discurso vai por outro lado, seja na resignação absoluta para a qual não é necessária nenhuma manutenção, seja num radicalismo alucinado que ainda encontra patrocínio. O primeiro lado é aquele a dizer que, seja lá qual for o estado dos frequentadores do restaurante chique em Nova Iorque, as coisas estão justas e boas como estão e nada deveria ser feito para que qualquer pessoa diferente entrasse nesse restaurante. Se a pessoa merecer estar naquele restaurante, ela vai dar um jeito de entrar sozinha. E se a pessoa não está naquele restaurante é porque ela não merece estar ali, simples assim.

Um outro lado dessa direita vê alguma injustiça em quem entra ou não no restaurante, mas essa frustração pela exclusão de alguns é promulgada por alguma conspiração. É o lado por exemplo da teoria conspiratória antissemita que vai dizer que esse restaurante chique está cheio de judeus marxistas culturais que precisam ser combatidos e expulsos de suas posições no topo da hierarquia, que o restaurante chique em Nova Iorque é o símbolo de um sistema corrupto e apodrecido que precisa ser desmontado até as bases.

Por mais alucinada que seja, essa visão radical das direitas conspiratórias é a única visão radical viável em larga escala, tanto porque entrega algo que satisfaz ao menos parcialmente o desejo revoltoso de quem busca por radicalismos, como porque conta com suportes financeiros suficientes por parte do poder.

No ramo da viabilidade mítica que depende de parcerias estratégicas, só a direita radical pode entregar algum sentido de revolução ou de mudança drástica para quem deseja ver o mundo se transformar, enquanto ainda assim, paradoxalmente, parecer proveitosa em manter o status quo para garantir o investimento de quem deseja que o mundo não mude de jeito nenhum. As esquerdas revolucionárias, que entregavam algo às demandas por transformação antes, perderam muito do seu papel e lugar justamente porque não podem estabelecer parcerias relevantes com o poder econômico que, nas estruturas capitalistas, é contrário aos interesses que estas esquerdas revolucionárias propagam.

Existe ainda o discurso nas esquerdas mais radical de que o restaurante chique não deveria nem mesmo existir? Existe. Mas ele é apelativo para quantas pessoas? A quantas pessoas este discurso é disseminado? Quais esperanças reais ele carrega de que seja possível que o restaurante chique deixe de existir, ou que a pessoa para quem estão falando vá frequentar esse restaurante chique algum dia no futuro? A esquerda radical tem dificuldades de desenhar caminhos fáceis e concretos e, sem parcerias que a disseminem e viabilizem, mal é ouvida ou considerada.

As soluções que os outros discursos entregam são um pouco mais palatáveis e, por serem mais cômodas a quem controla o poder, são mais convenientes de serem veiculadas nas grandes plataformas, na televisão, livros, rádios, jornais, etc. De certa maneira, eu acho que até a resignação de uma direita acomodada que diz “o sistema está funcionando e você não está no topo porque não merece” pode ser mais acalentadora do que o discurso de uma esquerda que diz “com reformas graduais, talvez o seu neto frequente o restaurante chique algum dia no futuro”. E se eu quero muito estar no restaurante no meu tempo de vida, a meritocracia ou o discurso conspiratório da direita alucinada podem parecer mais atraentes do que a promessa de um neto meu talvez comer uma vez na vida no tal restaurante daqui algumas décadas, mais atraentes também do que o argumento de que o restaurante chique para início de conversa nem deveria existir.

Se o restaurante é em si um símbolo, um objeto de desejo, se ele já foi estabelecido como um fetiche para o qual existe essa demanda, é importante perceber que qualquer resposta que seja dada ao redor da questão do acesso a esse objeto de desejo já foi derrotada na questão de se esse objeto merecia antes de tudo ser desejado.

Se assumirmos de partida que queremos estar no restaurante chique, que queremos que existam estruturas mais justas e meritocráticas para o acesso ao restaurante chique, já foi derrotada de partida a possibilidade de discutirmos se o restaurante chique deveria sequer existir. Esse é um desafio que as esquerdas mais revolucionárias enfrentam em questão de sua viabilidade mítica em larga escala. Se o capitalismo não existir, qual vai ser o equivalente na utopia socialista a um restaurante chique em Nova Iorque? Para as esperanças de um indivíduo em particular, especialmente um que foi marcado durante toda sua vida pelo individualismo e pela ambição como projetos culturais de larga escala, pode não parecer suficiente dizer algo como “não existirão restaurantes chiques, mas não existirão pessoas morrendo de fome.

Para a demanda mítica da ambição, da vontade de ascender e conquistar, o restaurante chique é um símbolo mítico muito melhor do que um mundo em que ninguém passa fome. E se esse restaurante chique seguir com portas abertas para qualquer um, ao menos enquanto esperança e possibilidade, a viabilidade mítica do sistema como um todo se propaga.

A viabilidade mítica do capitalismo depende da esperança de pessoas de que supostamente qualquer um possa estar algum dia no restaurante chique em Nova Iorque. Esse sonho, essa esperança, são componentes fundamentais da motivação e da conformidade às regras para manter o sistema como um todo funcionando. Se o dono do restaurante, os clientes do restaurante, os fornecedores do restaurante e a prefeitura beneficiada pelos impostos que o restaurante paga, enfim, se todos os interessados no restaurante puderem, esse sonho vai continuar forte e se propagando. Se isso depender de mais consumidores pagando menos porque o sonho funciona bem, ou se depender de menos consumidores fanáticos pagando mais porque o sonho está decadente, o restaurante vai tentar sobreviver como puder, pelo tempo que puder, com todas as esperanças simbólicas que carrega e que perpetuam sua sobrevivência.

E com isso, eu acho que posso fechar esse capítulo. A próxima e terceira parte do ensaio vai falar justamente sobre a questão da necessidade das pessoas de determinados mitos, frente aos interesses dos grupos de poder que possam controlar tais mitos.

Pelo tamanho que essa segunda parte ficou, nem preciso dizer que me empolguei para além da conta dessa vez. E acho que a próxima parte vai ficar no mínimo tão extensa quanto foi essa.

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