Criando coisas que ninguém vai ver

Uma reflexão (enorme e que ninguém vai ler) sobre a tensão entre criar o que se quer criar ou criar aquilo que os outros querem receber

Rodrigo Goldacker
45 min readJun 28, 2021
Photo by engin akyurt on Unsplash

O quanto do que vou criar é aquilo que verdadeiramente quero expressar?

O quanto do que vou criar é aquilo que entendo que os outros querem que eu entregue?

Esse texto enorme é inteiro só sobre este único dilema.

E ainda não vai dar pra falar tudo.

1. Publicidade: discursos (quase) sem eu e focados nos outros

Photo by Tania Mousinho on Unsplash

Vamos começar pelo mais fácil.

Pode parecer meio bobo, mas o discurso dos políticos, publicitários e oportunistas é o menos egoísta e o mais voltado ao outro.

Estranhou essa ideia? Vou explicar exatamente o que quero dizer.

O dilema que apresentamos logo na abertura não é muito difícil de resolver para ninguém dessas categorias. Publicitários e políticos não sentem uma tensão preciosista de tentar preservar “aquilo que verdadeiramente querem expressar” para além do mínimo do mínimo necessário.

Se a mensagem do publicitário é “compre isto”, por exemplo, é somente essa mínima partícula que precisa permanecer do eu no discurso (quase sempre nem isso, já que normalmente publicitários estão agindo em nome de uma empresa terceira que pagou por seus serviços).

Todo resto do discurso publicitário que será construído está voltado aos outros.

Troque a mensagem que se quer passar por “vote em mim”, no caso dos políticos, ou “caia na minha maracutaia” no caso dos oportunistas e todo resto vai ser feito a partir da mesma lógica direcionada aos outros.

A motivação do discurso de todos eles pode ser egoísta. Mas o discurso em si é o menos egoísta que há. Por isso que funciona, aliás.

Todos esses vão construir suas mensagens levando em conta aquilo que seus respectivos públicos querem ouvir. Eles talvez nem concordem com aquilo que o público acredita (ou, mais provavelmente, nem se importam o suficiente para concordar ou discordar). Talvez eles até saibam que aquilo que o público quer ouvir está necessariamente incorreto.

Mas não importa. O foco não está neles e no que acham ou deixam de achar. Você nunca vai assistir a opinião de um publicitário em um comercial. É sempre a opinião de uma marca, sendo que na verdade a opinião de uma marca costuma ser o que ela projeta e entende como sendo a opinião de seu público-alvo.

Empresas e partidos gastam um dinheirão simplesmente tentando encontrar os melhores jeitos de agradar.

Primeiro, com pesquisas de público. Se o foco está no outro, é preciso conhecer o outro. Partidos e marcas precisam encontrar posicionamentos estratégicos que seus concorrentes ainda não tenham explorado para construir seus próprios nichos. Se existe uma guinada conservadora, partidos conservadores vão começar a brotar para se aproveitar da tendência de mercado. Se o público está ficando mais jovem e progressista, marcas centenárias com uma longa “tradição” de posicionamentos que passaram a ser vistos como problemáticos vão começar a tentar “atualizar seus discursos”.

Em seguida, muito dinheiro é gasto também para encontrar a forma correta. Se a maneira mais fácil de entrar e ficar na cabeça de todo mundo é com uma musiquinha repetitiva e grudenta e um vídeo com gente feliz, campanhas eleitorais e de grandes marcas vão contratar uma equipe de publicitários para construir algo que seja exatamente assim.

Não importa se o jingle é reducionista, se pinta um cenário incorreto sobre a realidade, ou até se está cantando alguma informação incorreta. Não importa também se o dono da marca ou o publicitário que fez a melodia gostam ou não daquela musiquinha especificamente (na teoria, já que há marcas e diretores criativos que aprovam ou rejeitam ideias só por gosto, independente de fazer ou não sentido com seus públicos). Se a pesquisa provou que é aquilo que o público quer, é só isso que interessa.

A ideia nesses casos é atuar com uma posição que é algo como uma ilusão de espelhos. Empresas, por exemplo, não querem que você as veja como de fato são: normalmente chatas, interessadas sobretudo no seu dinheiro e mantidas por processos corporativos burocráticos, processos industriais técnicos, pesquisas científicas complexas (dependendo do setor) e interações muitas vezes problemáticas com a esfera política, a natureza, a sociedade civil e seus próprios empregados.

Não, nada disso pode aparecer. Então é mais fácil tentar projetar aquilo que se entende como as demandas e desejos da sociedade: empresas precisam parecer (não ser) descoladas e simples, informais e íntimas, com iniciativas positivas para melhorar a vida dos seus consumidores e para construir um mundo melhor.

Às vezes, essas iniciativas podem até mesmo criar autenticidade dentro destas organizações. Algumas delas lançam setores de inovação e de integração social que realmente geram impactos positivos. Mas a lógica do mercado não funciona em cima de fazer o certo, funciona em cima de vender mais. Se o outro que é público alvo parar de se importar com ações (supostamente) boas, as empresas boazinhas vão todas à falência ou serão obrigadas a mudar suas prioridades.

Então, quando é bem sucedido, é por isso que o discurso de propagandas parece tão divertido, acessível e leve. É por isso que políticos conseguem votos. E é por isso que oportunistas crescem, conquistam público e conseguem executar suas maracutaias. É por isso que chocolates são vendidos.

Porque o que importa é agradar a você, quem compra, o máximo possível, e te falar o máximo possível daquilo que você quer ouvir. E o que se espera em retorno é algo bem concreto e objetivo, mas que é fácil de não perceber que está sendo tirado de ti: dinheiro.

Quando você compra alguma coisa, alguém pensou em te oferecer exatamente aquilo porque sabia que exatamente aquilo ia te agradar. Às vezes, quem está te oferecendo desenvolveu o que você vai comprar do zero daquele jeitinho só levando seus gostos em conta.

É fácil ser seduzido por um discurso feito tão especificamente para você. E com as facilidades cada vez maiores no pagamento (compras online, acesso a crédito, pagamento por aproximação, transferências a qualquer hora etc.), jogar dinheiro fora parece algo leve, divertido, quase inconsequente.

Gastar é um processo pensado para ser gostoso. O mais gostoso e fácil possível. O mundo vai mover montanhas para te agradar se com isso conseguir te convencer a abrir sua carteira.

Em troca de alguma quantidade de moedas, você consegue encontrar uma pessoa, empresa ou produto que vai te dizer exatamente aquilo em que você acredita — exatamente o que você deseja ouvir.

O desejo por essas moedas é o único elemento de “eu” dos discursos publicitários. Propositalmente, empresas tentam fazer de tudo para esconder esse elemento com um mero detalhe lá embaixo de uma pilha enorme de discursos voltados a agradar os outros.

2. A natureza comum dos discursos técnicos e artísticos

Photo by Kelly Sikkema on Unsplash

Existe uma ideia popular hoje em dia que só está parcialmente correta: esta de que “escritores escrevem para serem lidos”.

Isso não é totalmente verdade e quero explicar o porquê.

É comum que escritores escrevam para si, seja tentando alcançar alguma ideia artística, seja para afagarem seus egos (normalmente, um pouco dos dois).

Em boa parte dos casos, eles tentam construir algo que fielmente satisfaça aquilo que desejavam expressar seguindo seus ideais do que sua arte pode ser de melhor, ao mesmo tempo em que querem escrever para serem lidos também — e normalmente é por essas vontades não se conciliarem bem que se frustram.

Escritores de livros de ficção, por exemplo, que estão entre os mais ignorados nesse mundo, se quisessem ser lidos de verdade estariam escrevendo livros eróticos de CEOs abusivos, memes de WhatsApp, no máximo alguns posts motivacionais de LinkedIn.

Ou estariam escrevendo publicidade para marcas e campanhas de políticos.

O que eles normalmente querem, porém, é que seus livros de fantasia medieval com setecentas e tantas páginas, escritos exatamente como eles enquanto autores desconhecidos quiseram escrever, sem nenhuma concessão a respeito levando em conta o que o mercado e os consumidores desejam, magicamente se transformem em best-sellers.

Não estou dizendo isso para ser maldoso, nem para tirar sarro. Eu entendo exatamente quais são as razões e os prazeres em escrever sem concessões aos outros (é o que estou fazendo agorinha, com a escrita desse texto aqui). Com o tempo, só fui modulando minhas expectativas a respeito dos resultados que posso ter ao fazer isso.

Lá vai outra ideia estranha:

Os grandes voos abstratos dos artistas mais ambiciosos muitas vezes são bem parecidos com as especificidades técnicas dos mais difíceis artigos científicos.

Por quê?

Porque estes dois tipos de discursos operam a partir de lógicas diferentes daquela de “dizer o máximo do que os outros querem ouvir para conseguir dizer só o mínimo necessário do que preciso para conseguir o que quero” com que operam publicitários, políticos e oportunistas.

Ao contrário dos políticos, os cientistas e os artistas ambiciosos normalmente trabalham a partir de um purismo de seus discursos mediante outras formas de valorização do que estão expressando.

Ou seja, agradar o outro não é sua única prioridade, como no caso dos publicitários. Artistas e cientistas buscam algo a mais. Se precisarem escolher entre desagradar os outros ou comprometer esse algo a mais, às vezes vão escolher desagradar os outros.

Vou explicar o que quero dizer com isso usando de um exemplo divertido.

Apenas imaginem um físico teórico chegando a uma agência de publicidade interessado em publicar um artigo complexo sobre alguma maluquice quase incompreensível de física quântica.

Imaginem o diretor criativo da agência olhando para o artigo e dizendo coisas como “isso aqui não vai dar, não”. Primeiro, ao invés de um artigo de cinquenta páginas e cheio de fórmulas, para aquilo ali rodar e as pessoas terem paciência de ver teria que ser transformado em um comercial curtinho com alguma musiquinha legal. Afinal, ninguém nesse mundo quer ler! Quanto mais ler algo escrito naquela linguagem acadêmica enfadonha e com um monte de números e fórmulas malucas no meio. Se rolar, o melhor é ser mais simples ainda — que tal um stories de Instagram ou um videozinho de TikTok com alguma celebridade sorrindo e dançando?

Artigos científicos e as últimas descobertas da física não são anunciados (ainda) via stories do Instagram por um motivo simples: o que rege a lógica das produções acadêmicas não é o que os outros querem ver, é o que respeita o método científico e é construído de forma organizada.

É por isso também que o discurso científico é tão facilmente descartado. Se alguma ideia da ciência é impopular (ou seja, se não agrada aos outros), seja por ser muito difícil ou muito amarga, sempre vai ter um oportunista ou um político disposto a oferecer alguma alternativa que é mais fácil de entender e gostosa de se ouvir.

O mesmo vale para artistas puristas. Eles não estão preocupados em agradar aos outros, querem expressar algo relevante do jeito mais autêntico e honesto possível. Estão levando em conta suas próprias vontades primeiro, não as do público. E nessa categoria estão a maioria dos artistas ruins, desconhecidos e/ou frustrados, bem como uma minoria de alguns dos maiores artistas da humanidade. Alguns desses artistas geniais acabam famosos, inclusive. Mas uma boa parte deles fica junto dos artistas ruins naquele universo do anonimato.

Reitero, é uma questão de ajuste de expectativas. Se um físico teórico tiver alguma esperança de que seu artigo científico vá ser tão acessível, divertido e popular quanto um best-seller do New York Times ou um filme da Marvel, ele está simplesmente maluco. E o mesmo vale para um artista purista, pouco interessado em modular mesmo que minimamente sua arte levando em consideração os outros, se ainda assim ele supor que vai magicamente se tornar um best-seller. Pode até acontecer (voltaremos a isso já no próximo ponto), mas é improvável.

Aqui, o que acontece é que o elemento de expressão que precisa ser mantido de forma purista compromete mais do conteúdo, em comparação ao que pode ser modulado de acordo com os gostos dos outros. “Compre isso” ou “vote em mim” são elementos maleáveis que, como eu disse, se adaptam mais facilmente ao outro a partir de pesquisas e formatos acessíveis.

Mas “seguir o método científico e pesquisar física teórica obedecendo padrões acadêmicos” é muito mais complicado de conciliar em larga escala com as vontades e caprichos dos outros. O público que pretende se agradar nesses casos é muito mais restrito (no caso, acadêmicos e quem se interessa por produção acadêmica, bem como físicos teóricos).

Do mesmo jeito que um adolescente (exceto se fosse um superdotado ou particularmente amante da física) dificilmente sairia dos stories do Instagram para procurar algo para se entreter numa publicação científica de física teórica, um físico teórico dificilmente procuraria informações científicas do seu campo nos stories do Instagram (apesar de que ele provavelmente deve gostar dos stories também para procrastinar).

No caso dos artistas, o público ao qual o purismo se adequa pode ser desde um nicho específico (amantes de literatura experimental, ou de um determinado movimento artístico restrito) até o caso maravilhoso de um purismo que só se adequa ao nicho do próprio escritor, em que o público a se agradar é ninguém mais, ninguém menos do que exatamente quem está escrevendo — e só.

Seja no caso dos públicos restritos ou dos públicos inexistentes, o que importa aqui é que são outras prioridades que são levadas em conta nessas produções, seja para atingir nichos específicos, ou para obedecer a determinadas vontades de quem está produzindo que vão além de “falar o que os outros querem ouvir” e “falar com o maior número de pessoas possível”.

3. A tragédia dos ignorados e dos submissos ao público versus a vida feliz daqueles artistas sortudos e/ou extremamente capazes

Photo by Mateus Campos Felipe on Unsplash

Esse é um ponto para comparar casos extremos e demonstrar como a vida nem sempre é justa.

E só porque acho divertido, vou usar dos exemplos mais bobos possíveis.

Primeiro, vamos falar dos melhores dos casos.

Existem artistas que simplesmente não se preocupam com os outros nem um pouquinho e que, ainda assim, ficam famosos. Sim, existem. Diretores, desenhistas, escritores, músicos, comediantes. Eles são raríssimos, mas existem. Talvez você conheça algum. Estavam lá, só fazendo as coisinhas deles, do jeitinho deles, sem se preocuparem em seguir modismos ou tentar surfar alguma onda, e do nada explodiram, sem nunca terem corrompido nadinha do que estavam criando para agradar a ninguém.

Terem tido essa sorte gigantesca não quer dizer que estes artistas são necessariamente bons ou ruins. E nisso, vale deixar clara a questão da qualidade, antes de continuar.

Conforme fomos atingindo estágios mais avançados dessa nossa vida capitalista em que tudo é produto, passamos a validar a qualidade das criações levando em conta sobretudo a capacidade que possuem para serem produtos bem-sucedidos, conquistando um público massivo ou pelo menos algum nicho fiel. Essa métrica não é necessariamente a melhor e me parece uma forma superficial de julgar a qualidade de algo. Pode sim julgar a eficiência de algo e só enquanto produto (aliás, é por ser baseada na ideia de eficiência e de produto que essa ideia é tão popular), mas só.

Vou dar um exemplo do que quero dizer para não parecer que estou sendo ressentido ou pedante. Existem artistas na Internet que se especializaram em produzir artes digitais bastante detalhadas de fetiches específicos. Tem quem ganhe a vida só criando, para dar um dos casos mais leves, desenhos detalhados de dragões antropomórficos transando uns com os outros.

Quem se baseia nessa lógica de arte enquanto eficiência e produto diria que, por ter sido eficiente em se transformar em produto e encontrar seu nicho, um desenhista de pornô de dragões é necessariamente superior enquanto artista ao ser comparado a alguém que cria qualquer outra coisa que não seja tão bem-sucedida em encontrar público e se tornar produto.

Então se algum pobre coitado está por aí vivendo como viveu Kafka ou Van Gogh, criando suas coisinhas e guardando tudo na gaveta ou tentando sem sucesso conquistar algum público, esse alguém seria enquanto artista necessariamente pior do que o cara que consegue vender seus desenhos de dragões transando.

É claro, nem todo mundo é Kafka ou Van Gogh — e a maioria de quem pensa ser na verdade está produzindo porcaria mesmo. Mas a ideia aqui é levar em consideração que existem outras métricas que podem ser consideradas para avaliar se algo é ou deixa de ser bom, para além de ser um bom produto de nicho, ou ser um bom produto popular.

Então talvez aqueles artistas sortudos sobre os quais estávamos falando façam algo realmente genial, com uma proposta única, e talvez acabem reconhecidos justamente por isso. Mas talvez eles só sejam competentes em produzir alguma porcaria que algum público gosta de ver e fiquem famosos por isso. Não é uma questão de mérito (ou falta de) naquilo que criam, é uma questão de sorte milagrosa ao encontrarem um público sem terem se esforçado em encontrar.

No outro espectro do que dá certo, temos a grande maioria dos casos bem-sucedidos: aqueles que conseguiram conquistar um público depois de se esforçarem conscientemente para isso.

Vou dar exemplos aqui sem me limitar por nenhum tabu. Existe gente que é famosa simplesmente porque é bonita. Existem homens e mulheres que conquistam centenas de milhares de seguidores só por isso. Eu, você e provavelmente todo mundo já deu audiência para alguém só porque a pessoa era atraente.

Isso não é de agora. Na televisão era a mesma coisa. Na era do rádio, tinha gente que era feia, mas que tinha uma voz bonita e por isso tinha seu público. Na era do cinema mudo, tinha gente que era linda, mas tinha uma voz horrorosa e podia ser artista de cinema mesmo assim.

Agora que vivemos na Internet, peguemos alguns dos exemplos mais bobos da nossa era para ilustrar:

Sim, esses exemplos. Pois é.

Imagine duas mocinhas que gravam vídeos dançando no TikTok e no Instagram.

Uma delas se enquadra nos nossos padrões de beleza naturalmente, mas pelo exemplo vamos considerar que ela é bem pobre e com pouco acesso à informação. Muito provavelmente vai começar a postar suas dancinhas bem jovem, antes até de conseguir imaginar que pode acabar famosa fazendo isso. Ela não tem dinheiro para comprar uma roupa bonita, ou para fazer qualquer tratamento estético, ou para ter as paisagens mais legais no fundo das suas dancinhas, ou para contratar uma equipe de mídias sociais que a ajude a criar estratégias de impulsionamento para crescer. Ela também não tem informação ou expectativa para considerar que precisaria fazer qualquer uma dessas coisas. Para o bem do exemplo, vamos considerar que ela nem sabe direito que é assim tão bonita. E vamos considerar que ela tem um dom natural para a dança, mas também não sabe direito ainda que possui esse talento. Ela é só uma mocinha querendo postar descompromissadamente os vídeos das suas dancinhas.

Mas eis que ela começa a postar seus vídeos e explode, de uma hora para a outra sendo seguida por milhões de pessoas de todo Brasil e do mundo. Pronto, mais um caso de uma pessoa sortuda que ficou famosa milagrosamente criando exatamente o que queria criar.

Agora pensemos no exemplo de uma segunda menina. Ela também queria postar os vídeos das suas dancinhas na Internet, mas tinha algo diferente: desde o começo ela tinha expectativas de ser famosa fazendo isso. Então ela postou os primeiros, mas não deu tão certo assim. Ela não é assim tão bonita, nem dança tão bem. Mas ela é inteligente e persistente. O grande objetivo dela é ficar famosa e rica como influencer de dancinhas, então não dá para desistir tão fácil assim.

Para conseguir o que quer, ela cria um plano detalhado:

Primeiro, explora seus públicos-alvos. Ela podia não ligar tanto para ser bonita, se focasse mais em representatividade e em dançar melhor. Ou ela podia não ligar tanto para dançar bem, se focasse mais em ficar mais bonita.

No caso dessa menina, ela fez os dois para garantir: arranjou um emprego qualquer e começou a usar o salário que tinha para investir na sua carreira como influencer de dancinhas. Ela entrou numa escola de dança. Depois, comprou um celular com uma câmera bem melhor para suas filmagens ficarem menos amadoras. Daí, ela começou a fazer tudo que podia para se adequar melhor às exigências estéticas: tratamentos de pele, comprar certas roupas, dietas, cabelo arrumado de um jeito específico, o que fosse.

Ela também passou a prestar mais atenção aos ambientes em que estava nos seus vídeos, começando a criar pequenas produções para deixar um fundo legal em cada filmagem. E quando ela entendeu que estava lindíssima e dançando muitíssimo bem, com um quarto ou paisagem incrível como plano de fundo, ela contratou um freelancer que começou a impulsionar as postagens de suas dancinhas e ajustar sua imagem online de acordo com ideias de marketing digital.

E com todo esse investimento de tempo, dinheiro e esforço, eis que essa segunda menina ficou famosa também. Não foi tão fácil quanto foi para a primeira, mas ela chegou lá. Parabéns, menina das dancinhas! Seu trabalho duro valeu a pena.

Usei de um exemplo propositalmente frívolo para mostrar que essas estruturas que estamos discutindo valem para qualquer criação de qualquer coisa, de um livrão ambicioso até dancinhas no TikTok.

Também usei desse exemplo específico para ilustrar como na Internet tudo pode ser tanto autêntico quanto milimetricamente fabricado, mesmo que seja a coisa mais boba do mundo. Esse exemplo da segunda menina que se esforça tanto para virar influencer de dancinhas parece absurdo? Pois existe gente agora mesmo investindo tempo e seu dinheiro fazendo exatamente isso.

Mas esses casos que dei são casos felizes, ainda. As duas meninas que usei de exemplo realmente tinham uma paixão enorme por aquilo que conseguiram se tornar bem-sucedidas fazendo: dançar.

Existem casos mais infelizes e trágicos. Vamos partir para eles insistindo nos mesmos exemplos bobos.

Imagine agora outras duas mocinhas que gravam vídeos dançando no TikTok e no Instagram.

Sim, esse texto já tem quatro garotas hipotéticas dançando na Internet. E até o final ainda teremos mais uma.

Nossa terceira dançarina na verdade odeia dançar. Ela odeia música, aliás. Ela odeia a Internet. Ela sabe muito bem que a maior parte do público dela é de homens que não estão interessados exatamente na sua capacidade de dançar. Ela podia ter dado a sorte de fazer tudo isso sem esforço, pelo menos, mas no caso dela nem isso aconteceu: ela teve mesmo que se esforçar com academia, tratamentos de pele e de cabelo, aulas de dança e tudo mais, só para atingir o corpo que os outros esperavam dela, não o corpo que ela queria ter, e para atingir as habilidades de dança que outros esperavam dela, mesmo que ela odeie dançar.

Mas ela ainda assim insiste em tudo isso por um motivo simples: é o que paga as contas.

Esta é a tragédia de quem vive submisso ao seu público. Existe quem ganha um bom dinheiro produzindo algum conteúdo, mas na verdade odeia aquilo que está fazendo. São pessoas que vão seguir a moda da vez, independente de gostarem da moda ou não, e que vão viver sempre sujeitas aos caprichos da tendência e de tudo que precisarem fazer e fingir ser para conquistar os outros e continuarem relevantes.

Nesses casos, estamos falando por enquanto de pessoas que pelo menos ainda são bem-sucedidas em conquistar os outros. Se trabalharmos na métrica de “eficiência do produto”, elas seriam vistas como “dando certo”.

Mas se a menina que odeia dançar na verdade quiser desenhar, não vai adiantar nada se o público dela não se interessar por isso. Se ela não desenha tão bem assim, ou se o desenho dela só não é o que o público das dancinhas quer ver, ela vai ter que deixar os desenhos para lá e se focar nas dancinhas se quiser continuar ganhando dinheiro.

Ou isso, ou ela teria que tentar construir um público totalmente novo para os desenhos, um processo difícil e que teria de novo todos os riscos de dar certo ou de não dar. Se ela tem contas para pagar, não dá pra arriscar começar do zero de novo.

É claro que existe muita gente que, assumindo uma alma essencialmente publicitária, não está nem aí para isso. Talvez a moça fazendo dancinhas por dinheiro não tenha nenhuma paixão secreta por outra arte que gostaria de estar praticando. Ou então ela só entenda essa sua paixão como todos nós meros mortais entendemos, como um hobby que não é lucrativo, enquanto entende as dancinhas como um trabalho — algo chato, mas que pelo menos põe dinheiro na conta.

Mas do mesmo jeito que depender de um chefe ou cliente pode ser chato (se o chefe ou o cliente forem ruins), viver sujeito ao público também carrega esse tipo de risco. Quando o público é seu chefe e seu cliente, o que importa é o que ele quer de você, não o que você quer fazer. Se você der sorte (como nos casos das duas primeiras meninas dançando que citei) conquistando público com algo que gosta mesmo de fazer, vai ser ótimo. Se você não tiver tanta sorte assim e acabar fazendo só o que o público quer, mesmo sem gostar, tudo vai parecer muito mais chato e construído como uma obrigação.

E daí a dancinha — ou qualquer outra coisa que você faça só para agradar aos outros — deixa de ser algo minimamente lúdico e pode ser só mais uma categoria de trabalho chato.

Temos ainda uma quarta e por enquanto última menina com suas dancinhas para mencionar por enquanto. Essa é a mais triste de todas.

Ela também faz vídeos de dancinhas no TikTok e no Instagram. Ela quer ser bem-sucedida nisso e passar a viver dessa atividade. Mas não dá certo de jeito nenhum. Ela tenta e tenta conquistar um público, mas não sai do lugar. Anos e anos de tentativas, mas nada. Talvez ela só não tenha a beleza padronizada que o público esperava que ela tivesse. Ou talvez ela só não tenha a habilidade de dança que o público esperava que ela tivesse. Ou talvez ela só não tenha a inteligência (ou o dinheiro, ou o acesso à informação) para investir em equipamentos melhores e técnicas de impulsionamento de posts, seguindo outras exigências do público e das plataformas. Ou talvez ela tenha tudo isso e ainda assim não dê certo por algum motivo misterioso.

Talvez ela ame muito dançar e dar certo fazendo isso seja o sonho de vida dela. Mas não importa o que faça, ela nunca sai do lugar. Ou talvez ela nem goste tanto assim de dançar, mas tenha por qualquer razão comprado a ideia de que é um caminho para tentar conseguir o que ela verdadeiramente deseja: ser famosa, ou bem-sucedida em algo.

Mas nesse tipo de caso, a motivação não faz tanta diferença. O que importa é que, por um motivo ou por outro, ela fracassa mesmo tentando muito e durante muitos anos.

Com o passar do tempo, ela se sente cada vez mais frustrada e exausta. Ela já investiu tanto tempo, dinheiro e esforço. E não deu em nada. A cada dia que vai, parece que ela tem mais a perder se desistir agora, depois de já ter passado tanto tempo focada naquilo. Mas se continuar insistindo sem dar certo, ela sabe que vai ser ainda pior se precisar desistir depois.

Essa dúvida sobre quando e como desistir começa a consumi-la lentamente. E agora? Se não tiver uma paixão real pelas benditas dancinhas, ainda dá pra tentar pelo menos ter um olhar mais pragmático ao estrago: já que isso não deu certo, o que dá para tentar fazer agora para ganhar dinheiro? Será que dá para tentar ficar famosa fazendo outra coisa? Talvez, ao invés das dancinhas, seja possível conseguir a tão sonhada fama fazendo vídeos de maquiagem.

Mas naquele amargo caso de alguém que é realmente apaixonado pela dança, a situação é pior. Imagine alguém que ama dançar e já tentou de tudo para seguir carreira com isso, não só com videozinhos bobos na Internet. Alguém que fez aula de dança desde criança e que cresceu com esse sonho, alguém que tentou entrar em todas as companhias de dança, alguém que tinha o sonho de se apresentar um dia em um musical da Broadway — mas alguém que precisa aceitar uma hora ou outra que nada disso vai acontecer, que aquilo para o qual passou a vida se preparando, aquilo ao que condicionou a vida toda ao redor, aquilo que sonhou desde sempre, simplesmente não vai acontecer.

Alguém que mirou em dançar na Broadway, mas não conseguiu nem fazer sucesso dançando no TikTok.

Tem quem siga tentando até morrer e nunca consiga. E tem quem desista e viva com a dor desse sonho frustrado.

É difícil, triste e trágico.

É isso, chega de exemplos com dancinhas por enquanto.

Espero que essas alegorias bobas todas tenham deixado mais claro meu ponto aqui: existe gente que conquista um público com paixão e esforço, gente que conquista só com paixão e gente que conquista sem paixão e só com esforço. Conquistar um público só com esforço, sem gostar do que faz, já me parece meio triste, mas nada fora do comum do mercado de trabalho (aliás, é fora do comum e uma boa ideia se pelo menos pagar bem). E fracassar em conquistar um público após ativamente tentar fazê-lo já é bastante amargo sem paixão, mas é algo que afeta pessoas no âmago de seus seres quando o fracasso é naquilo que se ama fazer.

Estas são todas as formas como podemos ser afetados e recompensados ou prejudicados quando condicionamos nossas vidas e sonhos aos outros. Se eu dependo do outro para ter meu sucesso, pode ser ou não que isso dê certo.

Resumindo:

  • Se você der muita, muita sorte, vai conseguir conquistar o outro sem comprometer a mensagem que queria expressar originalmente. Esse é o caso utópico: ser bem-sucedido sem ter que ceder nem um cadinho.
  • Se você tiver um pouquinho só de sorte, mas muito, muito esforço, sendo extremamente capaz, vai conseguir conquistar o outro comprometendo só o minimamente necessário daquilo que queria expressar originalmente. Esse é o caso mais realista de sucesso: ceder só um cadinho, o mínimo necessário, mas se esforçar muito para dar certo.
  • Se você tiver um pouco de azar, vai ter que comprometer muito daquilo que queria expressar, mas sem ter que se esforçar muito por isso (sendo bom em algo que não é sua paixão, por exemplo); e se você tiver um pouquinho só a mais de azar, vai ter que comprometer muito daquilo que queria expressar, mas tendo que se esforçar por isso (você nem é tão bom naquilo que faz, nem gosta muito daquilo que faz, mas acabou sendo o jeito que deu para ganhar dinheiro). Nesses casos, pelo menos você ainda foi bem-sucedido em conquistar o outro, mesmo que isso implique na negação de si e talvez em algum nível de esforço.
  • E se você estiver num caso que já é de um azar gigantesco, você simplesmente não vai ser bem-sucedido. Aqui, no azar muito grande, você pelo menos não tinha alguma paixão por aquilo, então não dói tanto assim o sacrifício da expressão, o problema é o sacrifício do esforço e do tempo perdido. E no maior de todos os azares, no mais trágico e triste dos casos, você tem uma paixão enorme por aquilo, esforçou-se enormemente, mas não deu certo — e você não só perdeu seu tempo e se esforçou por nada como também acabou frustrando seu sonho e tendo que se negar para fazer outra coisa.

Esses são exemplos ainda um pouco simplistas. Às vezes, você pode frustrar seu sonho e descobrir depois um outro caminho lá na frente para viabilizá-lo. Às vezes, você pode frustrar seu sonho e descobrir outra paixão depois em outra coisa diferente que dá mais certo. Às vezes, você pode frustrar seu sonho, ou viver de algo que não era seu sonho e pronto, mas tirar alegria de outras coisas da vida, como seu tempo livre, seus projetos paralelos, seus amigos e família.

Mas esse esboço desses casos era importante para contextualizarmos o resto dessa discussão.

4. Criar levando os outros em conta é necessariamente ruim?

Photo by Natasha Hall on Unsplash

Spoiler da resposta óbvia: não.

Nos próximos dois pontos, vou usar bastante do meu exemplo para explicar como, apesar deste texto ser enorme, eu ainda sou um belo de um vendido.

Eu comecei a trabalhar no finzinho de 2016 como redator publicitário. Fiquei durante quatro anos desempenhando essa função. Nesse tempo todo, minha mensagem sempre foi “compre isso”, ou no máximo um “acredite que essa marca/empresa é legal” para todos os clientes com que trabalhei.

Eu modulei “compre isso” em roteiros para videozinhos de Youtube, em propaganda impressa, em banners de sites e apps, em outdoors, em stories de Instagram, em posts de Facebook, Instagram e Linkedin, em anúncios no Google… Enfim, no portfólio completo de jeitos mais fáceis e acessíveis de alcançar o maior número de pessoas dos públicos-alvos que fosse possível alcançar.

Hoje, estou trabalhando como UX Writer. A ideia de UX (sigla em inglês para “experiência do usuário”) é basicamente uma extensão mais recente daquilo que estamos conversando durante esse texto todo como “escrita voltada ao outro”. A função de uma equipe de UX (que envolve escritores como eu, programadores, gente que faz pesquisa e designers) é tentar construir a melhor experiência possível para o usuário de algum produto. Normalmente, os produtos são sites e aplicativos, mas na teoria dá pra aplicar a mesma lógica para qualquer outra coisa.

Apesar dessa escrita profissional com UX ainda estar inserida na lógica de produto, gostaria de aproveitar dela para comentar algo: eu propositalmente comecei este texto dando alguns dos exemplos mais problemáticos de quem precisa criar considerando os outros, mas na verdade criar levando o outro em conta não é intrinsecamente algo negativo.

Na verdade, muito pelo contrário. Dependendo do como e do por que é feito, considerar o outro é uma das coisas mais bonitas e respeitosas que se poder fazer.

Considere uma senhorinha que mal completou o Ensino Fundamental e que precisa ler um contrato cheio de termos técnicos e aquela linguagem jurídica terrível. Ela pode assinar algo que a prejudique simplesmente por não entender direito o que está escrito — e existem vários exemplos desse tipo, como “políticas de privacidade” de sites e as letras miúdas de anúncios, em que a leitura do outro é propositalmente dificultada para restringir o acesso a determinadas informações.

De certa forma, até a ideia de UX pode ter essa beleza — dá pra pensar nessa atividade só como a criação de produtos mais atraentes, mas também dá pra pensar como uma forma de tornar mais democrático e acessível o uso de determinadas ferramentas. Se os computadores ainda fossem complicados como eram no início dos anos 90, muita gente seguiria sem a capacidade de utilizá-los. É questionável se o acesso de todos à Internet (pelo menos do jeito que a Internet ficou) é algo positivo, mas apesar das dificuldades não acho que seria uma alternativa justa restringir o acesso de ninguém.

Existem várias profissões que precisam levar o outro em conta na hora de construir seus discursos. A expressão de professores é simplesmente “ensinar” e, se forem bons, usarão de todas as formas e técnicas para tentar ajudar seus alunos a aprenderem. No dia em que um professor descobrir como explicar a fórmula de Bháskara com dancinhas no TikTok, pode ter certeza que ele vai fazer exatamente isso.

É claro que nesse caso “ensinar” ainda carrega um purismo maior do que “vender”. Ensinar é complicado e matérias às vezes são chatas — nesses casos, o conteúdo por si já pode ser incômodo ao outro, especialmente se o tema for controverso ou difícil. Mas se puder tornar esse conteúdo mais acessível para ensinar, certamente o professor o fará. Ninguém tenta, por exemplo, ensinar criancinhas quais são as letras do alfabeto com artigos científicos de quarenta páginas em linguagem acadêmica. Fazemos isso com formas coloridas, musiquinhas fáceis de lembrar e vídeos fofinhos.

Psicólogos também têm uma mensagem simples, “ajudar”, que é seu único purismo. Se forem bons mesmo no que fazem, nunca falarão algo caso acreditem que possa prejudicar seus pacientes, mesmo se for exatamente aquilo que seus pacientes querem ouvir. Fora isso, psicólogos tentarão no máximo que puderem deixar seu eu para fora da conversa, construindo tudo sempre em relação ao outro: qual o melhor jeito de ouvir? Qual o melhor jeito de falar com este meu paciente? Qual é o melhor jeito de ajudá-lo?

Nesse caso também, às vezes o purismo vai ser um empecilho para que o psicólogo conquiste o outro, já que “ajudar” ainda compromete mais o discurso do que “vender”. Existem alternativas mais inconsequentes e irresponsáveis de ajuda, aquelas que prometem muito, muitas vezes sendo oportunistas com soluções milagrosas. Também costumam ser mais atraentes no discurso, dizendo para as pessoas exatamente o que elas querem ouvir, enquanto psicólogos às vezes podem ficar impedidos de dar validação para certos comportamentos, se estes forem problemáticos.

Um último exemplo é (ao menos na teoria e em alguns bons casos) o dos jornalistas. Teoricamente, a mensagem deles deve ser simplesmente “contar os fatos” e eles podem tentar comunicar isso em todos os formatos com que puderem trabalhar para alcançar seus públicos — seja no jornal televisivo, no jornal escrito, ou na Internet de infinitos jeitos.

Então o problema não é que existam discursos voltados ao outro, longe disso. O problema é que existam estes discursos, ou, mais especificamente, que ao tornarmos o discurso exclusivamente produto passemos a dizer apenas o que as pessoas querem ouvir, do jeito que elas querem ouvir, e deixemos de comunicar todo o resto.

É bem fácil ver algo assim acontecendo em exemplos óbvios, como o do contexto político brasileiro — um ambiente em que é muito fácil para um político dizer às pessoas aquilo que elas desejam ouvir, negando a realidade quando esta é complexa, triste ou difícil.

Mas isso também acontece em outros contextos menos óbvios: logo, passa a existir uma pressão para professores serem menos chatos para além de sua possibilidade de fazê-lo, já que certos temas são inerentemente complicados e impossíveis de se resumir em um videozinho do TikTok; porque a métrica do mundo passa a ser o discurso gostoso dos produtos de entretenimento e da publicidade, passamos a nos incomodar com jornalistas, quando dizem fatos que não são exatamente o que queremos ouvir e incomodam nossos vieses.

Esse caso dos jornalistas, aliás, é um dos mais emblemáticos. Eu não acredito que existam muitos jornalistas no Brasil de hoje em dia (suponho que no mundo, mas falo aqui do que conheço) que possam verdadeiramente anunciar um fato com imparcialidade, sem levar em consideração as limitações dos vieses de seus públicos e dos interesses corporativos dos veículos que os empregam.

Vivemos num momento de sofisma triste em que, tão desacostumados, chegamos a dizer “não há fatos, só versões”, desconsiderando quais são os interesses escusos que modulam essas versões para além do simples viés que poderia existir na subjetividade de jornalistas bem intencionados.

Dessa forma (e acho que alguns jornalistas ficariam bravos comigo se lessem isso), acaba que o jornalismo se transforma basicamente em um outro tipo de discurso corporativo e/ou publicitário, interessado mais em vender e em conquistar métricas como cliques e acessos do que em qualquer outra coisa. A lógica deixa de ser “contar o que é fato do jeito mais acessível possível” e passa a ser “contar o que é mais acessível possível para conquistar o público, independente do que é fato”.

E todo mundo que já viu como são títulos sensacionalistas ou notícias falsas sabe o que essa “elasticidade com os fatos para agradar” acaba gerando.

Um psicólogo que fale tudo que seu paciente quer ouvir só para mantê-lo como cliente não é um bom psicólogo. Um médico não seria bom se dissesse “pode continuar fumando, sem problemas” só para agradar um paciente tabagista e mantê-lo como cliente. Professores não são bons professores quando dão nota dez para alunos que não mereciam esta nota, apenas para mantê-los como clientes.

É claro, esses comportamentos muitas vezes são impostos: jornalistas são obrigados a dizer ou não dizer certas coisas, ou são demitidos; professores são obrigados a passar de ano filhos mimados de gente rica em escolas particulares, ou são demitidos.

A tragédia segue sendo o ato de, ignorando qualquer outra coisa, dar ao outro o que ele quer e pronto, independentemente das consequências, tratando tudo como produto.

Então não, criar levando o outro em conta não é necessariamente ruim. Para falar a verdade, na maioria dos casos é importante levar o outro em consideração o máximo possível, mantendo purismo só sobre aquilo que é verdadeiramente fundamental, aquilo que não pode ser alterado só porque outro quer (ensinar com honestidade e verdade, no caso de professores; noticiar com honestidade e verdade, no caso de jornalistas; ajudar com honestidade e verdade, no caso de psicólogos…. e por aí vai).

Levar o outro em conta pode significar ser didático, eficiente, empático, compreensivo e acessível. O problema está em expandirmos demais a lógica publicitária para todos os aspectos da vida e passarmos a desconsiderar esses fundamentos que demandam certo purismo, mesmo quando não for tão gostoso ouvir algo.

Se tudo é só o que o outro quer ouvir, se tudo vira só produto, perdem-se aspectos importantes da comunicação, da expressão verdadeira, da autenticidade e até da possibilidade de construir confiança.

5. Por que às vezes vale a pena criar para não ser visto?

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Oi? Você ainda está aí? Ainda está lendo? Sério, você chegou até aqui mesmo? Nossa. Valeu.

Escrevendo este texto ridículo de tão gigantesco aqui no Medium sem me preocupar com o fato de que ele está tão grande que dificilmente será lido por mais do que alguns gatos pingados, estou exercendo um privilégio muito único.

É um dos raros privilégios que só se pode exercer enquanto pessoa física, um privilégio que eu e você temos, mas que grandes corporações e figuras públicas como a Coca-Cola, a Anitta, o Felipe e o Lucas Neto, a Galinha Pintadinha ou a Netflix não têm.

Sim, tem algo que nós podemos fazer que a Coca-Cola não pode.

Veja bem.

A Coca-Cola não poderia publicar textos como esse aqui. Eles não podem perder tempo com uma atividade supérflua e inútil como escrever coisas assim. Todo o tempo que a Coca-Cola desperdiçasse em pensar e produzir um texto desses seria tempo que algum profissional estaria deixando de usar para criar algo que fosse verdadeiramente útil para o que a Coca-Cola precisa fazer: vender refrigerantes.

Então esse texto no caso deles não seria só uma perda de tempo, como é no meu caso. Seria também uma perda de dinheiro.

Se a Coca-Cola, como eu faço, insistisse em escrever textões e poeminhas sobre como está se sentindo enquanto marca, seus investidores iam começar a ficar preocupados. Como a maior parte do público da Coca-Cola não lê textões e nem poeminhas, muita gente ia começar a esquecer que essa marca existe. A Pepsi ia aproveitar a deixa e ocupar a atenção de todo mundo com comerciais no YouTube, propagandas na televisão e anúncios nos stories do Instagram.

Com o tempo, a Coca-Cola ia começar a vender menos refrigerante porque sua comunicação não estaria sendo eficiente no que devia se prestar a fazer: convencer todo mundo, do netinho à vovó, a comprar coquinhas geladinhas.

Antes disso tudo, provavelmente uma reunião corporativa aconteceria e demitiriam todos os envolvido no projeto dos textões e poeminhas. Uma nova equipe entraria no lugar retomando os comerciais de trinta segundos na televisão e os stories divertidinhos.

Se grandes estúdios de Hollywood insistissem em produzir filmes e seriados sem levar em conta o retorno do público, em pouco tempo declarariam falência. Se a Anitta parasse de criar músicas seguindo a lógica mercadológica e começasse a investir em sei lá, esculturas artísticas de figuras humanas feitas de massinha de modelar, ela ia ganhar bem menos dinheiro e ter bem menos público (embora certamente fosse continuar bem rica).

Basicamente, empresas e pessoas que tratam aquilo que expressam como produto não podem expressar muita coisa sem levar a lógica de produto em conta. Se fracassam em se comunicar como produtos, se fracassam em agradar aos outros, perdem dinheiro, ações caem de valor e alguém acaba demitido.

Já eu e você podemos falar o que quisermos para além da lógica de produto e seguiremos vivinhos. Ninguém vai perder o emprego por causa disso, pelo menos não necessariamente.

Vou retomar o meu exemplo, terminando de explicar exatamente por que estou escrevendo esse texto, ao mesmo tempo em que sigo sendo um vendido.

No meu caso, estou escrevendo esse texto no fim de semana. Na semana passada e na próxima que vai começar, o que fiz e farei ainda é escrever, mas dessa vez para o trabalho. Quando escrevo como UX Writer, não dá nem para sonhar em escrever uma bíblia como essa aqui, ainda mais sobre o assunto que eu quiser. Eu escrevo do jeito mais acessível possível para o usuário sobre o assunto que os meus clientes querem falar. Não interessa qual é minha opinião sobre produtos de crédito bancário, nem se eu tenho interesse em escrever sobre eles. Interessa que a marca para a qual estou escrevendo tem um produto desses e eu preciso escrever para ela sobre isso.

Antes, quando trabalhava como redator publicitário, era a mesmíssima coisa. Eu não podia escrever um poeminha sobre meu dia para uma empresa de sucos. Não podia escrever um conto de terror para uma farmacêutica. Não poderia escrever um texto desses aqui para basicamente nenhum cliente que tinha.

Nesses contextos, escrevia e escrevo profissionalmente, de acordo com as técnicas e métricas que precisam ser consideradas para escrever o que dá certo para conquistar o público. Simples assim.

É muito interessante aprender mais sobre o outro e descobrir novas maneiras de se comunicar eficientemente com ele. É legal trabalhar com isso porque é basicamente uma ciência levantada a partir de pesquisas que geram experimentações que, quando dão certo, geram métodos. Quando escrevo para meu trabalho, desligo da cabeça qualquer dilema sobre “a vontade de expressão do eu”. Eu simplesmente não existo, o que importa ali é o outro.

Gosto bastante do que eu faço por essa oportunidade do eu não existir. Não só porque é divertido descobrir como tudo isso funciona e aprender os melhores jeitos de conquistar o outro deixando a escrita menos chata, mas porque fazer isso lá me permite que exista o espaço para que eu faça isso que estou fazendo aqui.

Lá, escrevendo por eles, não tenho purismo nenhum. A mensagem é o que meus clientes querem que seja. E assim eu tenho dinheiro para viver minha vida e manter meu purismo aqui, naquilo que escrevo sob meu nome, sem ter que me preocupar em ganhar dinheiro nesse espaço também.

Esse texto é desse tamanho por puro capricho meu — e é desse tamanho porque pode ser desse tamanho. É desse tamanho porque eu posso me dar ao luxo de escrevê-lo e publicá-lo de graça, sem ter que formatá-lo de outra maneira na esperança de que ele me traga algum retorno financeiro direto. Se muito, o que esse texto pode me dar de benefício profissional é só deixar claro algo como “olha, esse rapaz escreve coisas”.

Talvez o Felipe Neto, a Anitta, a Galinha Pintadinha ou os executivos da Coca-Cola também façam coisas no seu tempo livre que não precisam levar em conta a lógica de produto. No caso deles, se algum dia quiserem, podem fazer isso até mais que eu, vivendo só de renda passiva e se dedicando completamente àquilo que bem entenderem, sem nunca mais trabalharem na vida. Mas enquanto forem marcas, enquanto estiverem condicionados pela ideia do “dar ao outro o que ele quer para ganhar dinheiro”, vão ter que se comunicar de outras maneiras com muito mais limitações e restrições.

Para deixar clara a questão, levando em conta as proporções: se o Felipe Neto lançasse hoje mesmo um livrinho de poemas, eles poderiam ser melhores do que qualquer coisa que eu já escrevi, talvez melhores do que qualquer coisa que Fernando Pessoa escreveu. Uma coisa é certa: o livro dele venderia muito. Venderia muito mais do que qualquer livro que eu lançasse, talvez tanto quanto ou mais do que qualquer livro do Fernando Pessoa.

O livro do Felipe Neto podia ser uma porcaria também. E venderia muito do mesmo jeito. Com certeza ainda venderia mais do que qualquer coisa que eu lançasse. Talvez vendesse mais que o Fernando Pessoa mesmo assim.

Mas mesmo vendendo muito, o livrinho do Felipe Neto daria menos retorno (em público e em dinheiro) do que um vídeo patrocinado que ele faça no Youtube. Porque o formato do vídeo na Internet, que o Felipe Neto foi tão bem-sucedido em explorar, é muito mais acessível e dá muito mais dinheiro do que livros.

Tem muita gente que acha chato ler, seja por pura preguiça ou por nossas precariedades no ensino. Mas todo mundo assiste vídeos no Youtube.

E para cada Felipe Neto que é tão grande na Internet que pode se dar ao luxo de fazer essencialmente o que quiser, existem centenas de pessoas que vivem da Internet, mas que não têm tanto poder assim.

Não precisamos ficar restritos só à escrita. Talvez o Felipe Neto não tenha vontade nenhuma de escrever poemas, mas eu tenho certeza que ele deve ter vontade de fazer alguma coisa para além daquilo que os algoritmos e métricas das redes sociais exigem que ele faça para continuar relevante com seus públicos. Mesmo se o irmão dele amar muito o que faz com os vídeos infantis, eu tenho certeza que devem ter outras coisas que ele gostaria de fazer, mas que não dão tanto dinheiro quanto as aventurinhas que vendem bonequinhos para crianças em todo lugar.

Para citar de novo alguns dos exemplos bobos que já demos, se o rapaz que desenha pornô de dragão subitamente passar a desenhar quadros a óleo de belíssimas naturezas mortas, talvez ele perca seu sustento e precise arranjar outro emprego. Talvez ele tenha que voltar aos dragões, mesmo contrariado, ou talvez por teimosia ele fique pintando suas naturezas mortas até passar fome.

Se a menina que dá certo dançando no TikTok se convertesse ao hinduísmo e começasse a postar só um vídeo por semana recitando passagens do Bhagavad Gītā, ela perderia seguidores e patrocinadores. Muito provavelmente ela precisaria encontrar outro emprego.

Ou, do jeito que a Internet é maluca, talvez ela viralizasse só pelo absurdo e ficasse mais famosa ainda. Mas a ideia é essa: na Internet o que te define é seu público, mas o público é difícil de agradar e meio imprevisível.

Se o cara dos dragões já tivesse outra fonte de renda, ele poderia passar para as pinturas a óleo sem medo de ser feliz. Se a moça do TikTok não precisar mais se preocupar com dinheiro, ela pode continuar lendo textos religiosos hindus sem nenhum problema, mesmo se perder todos os seguidores que tinha antes com as dancinhas.

A grande tristeza é quando não temos espaços nos quais não dependamos do dinheiro e da aprovação dos outros. Aí, não podemos fazer o que queremos fazer. Só podemos fazer o que os outros querem. E nos sentimos presos.

As marcas com que trabalho não se importam se depois que entrego seus projetos vou assistir Netflix ou escrever textos como esse aqui. Meu tempo livre é meu somente. A farmacêutica que pagou por meu trabalho não vai perder seguidores porque estou publicando esse textão no meu Medium. Não vou morrer de fome (espero) por estar publicando isso de graça e sem formatar o máximo possível para deixar do jeitinho que atraia mais leitores.

Eu falei que ia dar o exemplo de uma última hipotética menina das dancinhas no TikTok. Eis que aqui estamos. Existe uma última categoria de moças dançando que vale a pena considerar.

Pode existir uma moça que ama dançar e que gosta de fazer isso no seu TikTok e Instagram. Mas ela faz isso só por gostar mesmo, sem se preocupar muito se isso vai dar em alguma coisa na sua vida. Talvez ela seja já muito rica para se preocupar com dinheiro, ou tenha investido em alguma outra carreira que não seja a de dançar na Internet. E talvez ela seja feliz assim mesmo, dançando porque gosta e pronto, expressando-se pela dança porque quer e pronto, sem que para ela importe se os outros gostam das danças dela ou não. Talvez ela só dance, sem nem filmar. Talvez ela até filme, mas não chegue a postar. Talvez ela até poste, mas não fique se preocupando com quanta gente viu ou deixou de ver.

Ela pode dançar do jeito que quiser, sem se preocupar se o público gosta mais desse jeito ou de outro. Se ela quiser fazer uma performance artística de quarenta e seis minutos tocando uma mistura de música clássica com sertanejo universitário, ela pode — e dane-se que muita gente odeia esses gêneros e que mais gente ainda vá odiar ver estes gêneros misturados.

Quando não somos empresas nem nos tratamos como produtos, todos nós podemos ser assim e gozar desse tipo de privilégio. Não ter que se importar com o público não é necessariamente um fracasso. É libertador.

Se eu quisesse que esse texto fosse mais acessível, eu podia ter tentado resumir. Talvez eu tivesse cortado os exemplos bobos. Talvez eu quebrasse os assuntos em vários textos separados. Se eu quisesse mais ainda agradar aos outros, eu aprenderia a editar vídeos ou contrataria alguém para fazer isso por mim. E daí eu montaria um canal no Youtube, adaptando meus textos para vídeo ensaios com imagens legais passando por cima do meu monólogo.

Para quem fosse consumir, seria muito mais prático. Mas eu não faria nada disso por enquanto. Não só porque tenho preguiça, mas porque tenho outras prioridades para meu tempo.

Se eu quisesse mais ainda conquistar os outros, provavelmente não estaria falando desse assunto. Eu estaria no Youtube, mas fazendo vídeos de algum joguinho que acabou de sair, ou estaria fazendo reviews de filmes tentando conquistar algum nicho, ou tentaria surfar na onda da próxima moda fingindo que sou jovem ainda e fazendo dancinhas no TikTok.

Mas eu não preciso fazer nada disso. Ufa!

A métrica para escrever esse texto não foi o quanto vai agradar aos outros. O meu parâmetro para minha expectativa, nesse caso, não foi conquistar views, nem curtidas, nem compartilhamentos. Foi produzir exatamente aquilo que eu queria, exatamente como eu queria fazer.

Se algum dia, milagrosamente, isso der certo e começar a dar dinheiro, como o “melhor dos mundos” da utopia da menininha que dançava e ficou famosa do nada, que ótimo. Se não acontecer, tudo bem também, posso tentar ser feliz como a menina que dança música clássica misturada com sertanejo porque não precisa agradar a ninguém.

Desde que eu mantenha minhas expectativas calibradas, posso escrever do jeito que eu quiser por aqui, sem precisar me preocupar tanto com SEO, ou tamanho do parágrafo, ou qualquer outra das coisas que preciso considerar quando estou trabalhando, ou quando escrevo querendo ser mais acessível.

E para além dessa satisfação pessoal, existe um último motivo para às vezes se escrever ou criar sem se preocupar com os outros.

A Internet está nos consumindo todos nessa lógica de “eficiência como produto”. Estamos todos nos percebendo como produtos e acompanhando métricas de resultado para coisas bobas como fotos do nosso almoço. O “grande sonho” de ser famoso é muito tentador para muita gente.

É muito fácil ceder ao comportamento de manada, muitas vezes sem perceber, e começar a tentar postar o que vai agradar. Isso afeta tudo sobre todos: do jeito que falamos, daquilo que temos ou não vergonha de colocar em stories, ao tipo de fotos que tiramos, ao jeito que digitamos… Estamos constantemente tentando nos adaptar a uma melhor versão de nós mesmos enquanto produtos para agradar terceiros.

Não é só a nós mesmos que estamos deformando quando fazemos isso. Estamos contribuindo para deformar toda a nossa realidade. Damos força para o tipo de lógica e algoritmo que exigem que pessoas transformem seus corpos para serem o que os outros querem que elas sejam, que exige que as pessoas falem do jeito que os outros querem que elas falem. Damos força para a lógica e as estruturas algorítmicas que transformam notícias em títulos sensacionalistas, que tentam transformar professores, físicos, psicólogos, jornalistas e basicamente todos os seres humanos em em publicitários às avessas.

Quando seguimos essa coisa toda, reforçamos mais ainda essa lógica de dizer não o que queremos dizer, ou aquilo que acreditamos que os outros precisam ouvir, ou aquilo que entendemos como verdade, mas aquilo que acreditamos que os outros querem ouvir. Aí, fica mais fácil reforçar seu viés, negar a realidade, encontrar um grupo ou uma marca ou um político que te diga exatamente o que você quer escutar.

E quando deixamos tudo isso de lado e paramos às vezes de pensar em métricas, algoritmos, visualizações, curtidas, comentários, enfim, em tudo isso, e passamos a pensar um pouco no que vamos criar ou deixar de criar, falar ou deixar de falar, ganhamos essa liberdade de existir para além dos condicionamentos. Deixamos de ser produtos sendo vendidos e viramos pessoas vivendo.

Não se engane: o capitalismo vai continuar lucrando com a gente de um jeito ou de outro. Esse texto mesmo vai de algum jeito (não sei exatamente como) dar algum dinheiro para o Medium, lugar em que eu o publiquei, só para começar.

Mas se isso vai acontecer independentemente do que eu faça ou deixe de fazer, que diferença faz eu ficar insistindo em tentar me formatar quando não vou ganhar nada com isso? Se eu estivesse pedindo seu dinheiro, escreveria do jeito que você quisesse, mas estou aqui escrevendo de graça — por que seria preciso mesmo assim me adaptar sempre aos outros?

Então o que estou dizendo é: se você quer que eu escreva o que você gosta, pode me contratar.

Tem ainda mais uma questão sobre isso: você está aqui, lendo tudo isso. Volta e meia, é reconfortante topar com algo que não foi milimetricamente pensado para agradar. O jeito de agradar os outros em tudo pode incomodar, quando percebemos que é muito artificial. Às vezes, o que procuramos é autenticidade e brincamos até de ser detetives: será que isso é mesmo autêntico ou está só fingindo ser autêntico? Aliás, podem questionar isso até de mim. O suspense é parte da diversão. Por outro lado, quem muito tenta agradar é só óbvio: não há autenticidade, nem suspense sobre a possibilidade de haver. E essa doçura toda às vezes enjoa.

Quando escrever baseado em algum plano para ficar famoso e rico, vou tentar escrever o que os outros gostam também. Mas esse texto eu fiz de graça, sem nenhum desejo de que ele vá me tornar uma Anitta do mundo da escrita, então posso escrevê-lo como bem entender.

Quando não tem ninguém para assistir, ou pelo menos quando seu salário não depende de quem assiste, você não precisa se preocupar com agradar e pode só fazer qualquer coisa que quiser.

6. Misturando categorias conforme seus objetivos e o que te deixar mais confortável

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Um último ponto antes de fechar.

Quero reforçar que não é tudo tão preto no branco quanto posso ter dado entender até aqui.

Com o passar dos anos, eu transformei meu Medium cada vez mais em um espaço no qual não me preocupo com meus retornos. Para compensar a maneira com que a comunicação que produzia no trabalho precisava se limitar a certas fórmulas para funcionar, eu precisava ter algum lugar de escape onde pudesse só fazer qualquer coisa que quisesse, sem ter que me preocupar com nada.

E eis que aqui estamos.

Eu cheguei no Medium cedo e não passei incólume pelas pressões da plataforma. Este site também possui suas formatações, seus modismos. Teve uma época em que todos os textos que davam certo por aqui eram motivacionais — e eu me rendi um pouquinho, tentando atrair um público. Textos curtos costumam dar mais certo que textos longos, então eu por muito tempo tentei evitar ao máximo me prolongar (e vejam só onde estamos agora). Textos de coisas que estão acontecendo agorinha costumam dar mais certo que textos sobre coisas antigas ou abstratas, então eu tentei falar sobre o que era novidade e lançamento. Textos sobre tecnologia e política costumavam dar mais certo que contos, então eu evitei por muito tempo publicar contos.

E você não precisa só desconsiderar o público completamente para sempre. Cada projeto é um projeto diferente com suas próprias prioridades. Eu comecei o ano de 2021 fazendo um texto sobre o filme Soul, da Pixar, que tinha saído umas duas semanas antes. Fiz porque queria ter feito, mas fiz também porque sabia que era o momento certo para fazer, já que o filme tinha acabado de sair. Eu quero fazer um texto logo mais sobre um especial de comédia que saiu esse ano. É porque eu quero fazer, sim, mas também é algo que quero publicar logo, antes que o especial tenha ficado muito velho.

Às vezes, pode ser muito frustrante dedicar horas do seu tempo a construir algo que ninguém vai dar bola. Às vezes, é legal ser reconhecido pelo que produziu, mesmo que se sacrifique um pouco da própria essência para conquistar esse reconhecimento.

As pessoas se forçam a agradar os outros não só por dinheiro, mas por carências, inseguranças, vontade de serem vistas.

É difícil apresentar uma peça para uma plateia vazia ou indiferente. Todo mundo gosta de receber palmas.

E tá tudo bem querer conquistar o outro. É gostoso mesmo ter um retorno de alguém que gosta do que você faz.

Você não precisa ser o escritor ou criador resoluto que nunca leva o público em conta. Também não precisa ser o oportunista vendido que está sempre seguindo moda e não tem nada de autêntico a dizer. Dá pra variar em muitíssimos tons entre estes dois extremos.

Mas a Internet especialmente não costuma considerar que você pode construir esses dois lados de si. Só é lucrativo o lado em que você se formata para o que faz sucesso, independente das suas vontades.

Então, se puder, é um ato de coragem, de força e de autonomia aceitar que volta e meia você vai querer criar algo que não vai se encaixar bem nas exigências dos formatos pré-aprovados.

O meu caso é um caso de extremos, em que metade de mim é aquela de um publicitário e escritor de UX focado completamente na escrita profissional levando em conta os outros, enquanto minha outra metade pode se dar ao luxo de ser um escritor de Medium mais voltado ao eu, que não se importa tanto assim com os outros ao fazer textões, contos e poeminhas.

Mas mesmo nisso, eu espero poder misturar mais essas categorias no futuro. Pretendo publicar livros em algum momento e para fazê-lo não vai dar para só seguir meus caprichos: terei que ceder às editoras e ao público leitor. Se algum dia alguém me pagar para escrever textos como esse aqui, eu não me incomodarei em torná-los um pouquinho mais curtos, se precisar.

Enfim, existem centenas de meios-termos entre o que se quer criar e o que dá dinheiro, entre a sua vontade e a realidade do mundo.

(Aliás, ia escrever um capítulo desse texto só sobre uma análise psicológica disso tudo, citando coisas como Id, ego e superego para explicar como nossa vontade precisa se conciliar com aquilo que a realidade exige para se consolidar em um prazer concreto, mas desisti porque fiquei com preguiça e porque esse texto ia ficar grande demais até para meu gosto se tentasse. Também queria falar mais sobre como somos carentes e às vezes buscamos validação, mas também não coube direito em lugar nenhum e me pareceu uma questão um pouco óbvia demais para aprofundar.

Por fim, também não tratei nesse texto dos casos de escritas íntimas que nunca serão vistas por razões pessoais, seja por inseguranças mais profundas, vergonha ou por mencionarem eventos e pessoas reais. Aqui entram coisas como diários, os textos de desabafo, relatos, cartas, coisas do tipo. Não comentei esses casos porque acho que falar deles mereceria um outro texto completamente diferente deste aqui.)

A ideia de que você deixe de se limitar a fazer coisas apenas sujeito aos outros não implica que você passe a se limitar a só fazer propositalmente coisas que desconsiderem os outros completamente.

Tentando ouvir sua própria voz, você começa a construir seus próprios formatos, suas próprias ideias — e começa a ficar mais confortável com aquilo que quer fazer, com como quer fazer. Mesmo se for se submeter a formatar sua expressão em algum nível para torná-la mais acessível, você vai pelo menos saber o que é fundamental de verdade no que quer criar.

Se você simplesmente se submete a tentar caçar o que dá certo pros outros logo de cara, não vai existir nada de fundamental de verdade no que for fazer. E se você tinha alguma mensagem que queria passar de verdade, vai sentir que está se desrespeitando e negando com essa brincadeira de siga ao mestre.

Além disso, ecoar e repetir terceiros pode até dar certo, mas provavelmente não vai dar tão certo quanto deu para quem começou antes. Se você for brincar só de “seguir a onda”, vai estar sempre atrás de quem inventou a onda que decidiu surfar.

No outro extremo, se quiser conquistar pelo menos alguns, em alguma coisa, alguma hora, você vai ter que ceder. Não adianta ter preciosismo com sua criação sem um mínimo de pragmatismo. Se você quer escrever do jeito que quiser, aceite que talvez não vá ser lido — e às vezes, tudo bem não ser lido. Mas se você tem expectativas de construir um público, aceite que muito provavelmente vai ter que aprender como adaptar seu formato para algo que seja minimamente agradável aos outros.

O equilíbrio que precisa acontecer é entre o que você quer fazer, o que você se sente confortável em fazer e qual é seu objetivo. Se você quer fazer uma análise sobre o mundo, por exemplo, e seu objetivo é que essa análise seja vista por centenas de milhares de pessoas, talvez você tenha que fazer isso no formato de um vídeo que vai postar no YouTube falando tudo em inglês — você se sentiria confortável em formatar seu conteúdo assim? Se sim, tenta a sorte. Se não, talvez valha a pena procurar outro caminho para seu objetivo que te deixe mais confortável, ou talvez valha repensar seu objetivo.

Às vezes, você pode calcular errado e dar sorte. Um dos textos que fiz mais “do meu jeito” e sem muitas expectativas virou o meu texto de mais sucesso aqui no Medium. Mas esse tipo de sorte não acontece toda hora, então é bom não criar expectativas do tipo. Quando for criar por você, faça isso por você, e não fique frustrado se o que criou pensando em agradar a si não funcionar direito para agradar a terceiros.

Neste texto, eu queria escrever sobre esse dilema de criar para os outros ou para si. E me dei ao luxo de escrever do jeito que mais me fez confortável, sem me preocupar com extensão, até como uma forma de reforçar meu próprio ponto em uma metalinguagem curiosa.

Se não quisesse ser lido por ninguém, era só não publicar, ou publicar numa linguagem maluca que eu inventasse e que ninguém pudesse decifrar.

Mas para cumprir meu objetivo de ser lido por pelo menos um ou alguns, tive o mínimo cuidado ao escrever do melhor jeito que eu podia, tentando deixar a leitura pelo menos mais legal, e revisando para arrumar o que ficou confuso.

E se pelo menos você (oi, valeu por estar aqui, se você está aqui), uma única alma viva, tiver alcançado essa linha aqui, já estou mais do que satisfeito. Minhas expectativas dessa vez eram baixas — e tá tudo bem que fossem assim.

Se algum dia quiser um público maior, posso tentar adaptar esse texto num vídeo de trinta segundos em que eu apareça dançando enquanto dou minhas opiniões cantando. Ou posso tentar narrar esse texto enquanto faço uma live jogando algum joguinho recente.

(E talvez nada disso desse tão certo também. Como vimos, fazer sucesso com dancinhas na Internet pode envolver esforço, habilidade e/ou sorte.)

Às vezes, suas métricas podem ser outras que não só a conquista dos outros, ou a eficiência enquanto produto. Eu por exemplo estou muito feliz de ter escrito isso aqui — imagino que bem mais do que estaria se tivesse tentado expressar a mesma coisa pelo TikTok, mesmo se por lá eu alcançasse mais pessoas de algum jeito.

Fazer desse jeito aqui me dá mais propósito e satisfação. Não é um jeito melhor ou pior do que outros que podem ser explorados por quem se sente confortável e é mais habilidoso com diferentes formatos. É só o jeito que, ao menos nesse momento, me deixa mais confortável.

E desse jeito aqui, com esse textão todo, posso até ter menos resultado no sentido de ter menos likes e compartilhamentos, mas tenho mais resultado no sentido de me sentir mais orgulhoso daquilo que criei.

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Rodrigo Goldacker
Rodrigo Goldacker

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