Antes do verde e depois da verdade

Um longo making-of sobre um livro que demorou uma vida para ser escrito e dez anos para ser publicado

Rodrigo Goldacker
42 min readJan 23, 2024
O desenho é de 2013, do caderno de esboços inicial para o livro, feito por volta de setembro daquele ano. A capa é de 2023, liberada em agosto pela designer dias antes que eu publicasse o Verde Verdade na Amazon.

No último domingo em agosto de 2023, publiquei pela Amazon um livro chamado Verde Verdade. A história fala sobre o encontro entre dois andarilhos que se conectam profundamente, levando uma jornada de beira de estrada a passar por uma inusitada mudança de rumo.

A sinopse é propositalmente vaga porque eu acho que este livro deve ser experimentado com o mínimo de informações prévias possível. O elemento surpresa é bastante importante para esta história, então deixo o aviso para quem tem o interesse em ler: é melhor terminar Verde Verdade antes de começar a leitura desse texto aqui, já que aqui vou entregar vários detalhes do enredo que quero aproveitar para analisar.

Aqui, o que vou fazer é contar uma história fundamental da minha vida, um longo relato em que o livro Verde Verdade é o capítulo central. Vou contar quem eu era antes de escrever, as influências que tive para escrever, e vou falar sobre o processo de escrita e sobre tudo que aconteceu depois que escrevi. É uma história comprida e complicada, que envolve de forma mais indireta a minha vida inteira e, de forma mais direta, um intervalo de mais ou menos uma década entre a escrita e a publicação.

Vamos lá.

Uma tarde em Brasília, por volta de 2005

Quero começar com um pequeno flashback da minha infância que simboliza muitas das questões que vão aparecer mais tarde.

Eu não lembro exatamente o ano em que aconteceu o que quero contar. Em 2005 eu teria 10 anos, o que parece mais ou menos apropriado. Pode ter sido um pouco antes, quando eu tinha nove anos, ou talvez um pouco mais tarde, quando eu já tinha onze ou doze.

Nessa época, eu morava em São Paulo com minha mãe e minha avó. A situação era bastante precária e a vida com as duas não era fácil. Minha mãe, que é bipolar, estava numa situação bastante instável durante minha infância, lidando com seu transtorno em um processo agudo e mais ou menos constante de crise — e foram anos muito difíceis e traumáticos para todos até que uma combinação entre internações, medicamentos e terapia começassem a dar os primeiros resultados. Minha avó na época estava muito deprimida, tanto por meu avô ter ido embora, quanto por minha mãe estar como estava, quanto por sobrar para ela tentar cuidar (com ênfase ao “tentar”) de mim naquela minha complicada vida de criança.

Um pouco de contexto pregresso é importante: no que lembro da minha primeira infância, algo que vivi até meados de 2001, fui muitíssimo mimado e feliz, com meu avô provendo uma estrutura considerável e me protegendo miraculosamente de descobrir e ser exposto mais cedo aos intensos conflitos e às tragédias familiares. Mas quando aos meus seis anos meu avô teve que ir embora para Brasília, acabou repentinamente minha fase feliz de infância idílica e começou um período muitíssimo conturbado. O trabalho dele tinha exigido a ida e meu avô queria, a princípio, que a família toda o acompanhasse para a nova cidade. Ninguém quis entre os adultos que tinham poder de escolha. Isso implicou no fim do casamento do meu avô com minha avó, numa série de conflitos de meu avô com seus filhos (minha mãe e meu tio) e também num distanciamento físico dele de mim e numa degradação muito considerável do meu bem estar mental e da minha qualidade de vida.

A relação que eu tinha com meu avô era muito, muito profunda. Quando ele foi para Brasília, eu sofri enormemente. Ele era o adulto mais estável e responsável que eu conhecia, a minha única e melhor referência em um contexto em que os outros adultos da minha vida (minha mãe e minha avó) estavam numa crise dramática. É importante dizer que elas tentaram, deram o melhor de si em diversas situações, mas a condição no geral era sim muito precária. A ida de meu avô para Brasília foi, portanto, o primeiro trauma da minha vida, um dos momentos mais emblemáticos e significativos que experimentei, o grande incidente incitante da minha existência quando percebida enquanto narrativa.

Há uma série de ambiguidades nessa partida dele. Meu avô era infeliz em São Paulo e sua ida acabou o libertando da opressão de um casamento falido e da experiência em primeira mão da tragédia dos seus filhos. O sacrifício a ser feito foi um afastamento de mim. Eu não sei até que ponto meu avô em si via nesses termos, e acho que ele ficou sozinho em Brasília mais pelo capricho do resto da família que não quis acompanhá-lo do que por uma vontade inerente de fugir. Mas o fato que fica é que, por vontade dele ou dos outros, a situação que passou a existir era esta: eu em São Paulo, vivendo num ambiente absolutamente inadequado para uma criança crescer, passando por diários sofrimentos pela crise de minha família que naqueles tempos atingia um estopim muito além do que uma criança poderia compreender, com o surto bipolar da minha mãe a levando até uma internação psiquiátrica e a negligência depressiva da minha avó permitindo que eu presenciasse terríveis situações que poderiam ter sido evitadas.

Não sei o quanto meu avô sabia da real precariedade da vida em São Paulo. Eu mesmo diminuía o problema ao contar, por vergonha, e mais tarde fiquei sabendo que minha avó também subestimava a situação ao relatar pra ele à distância como estavam as coisas. Mas meu avô sabia, em alguma medida, que viver com minha mãe e minha avó, e viver longe dele, eram coisas que me faziam infeliz.

Na tal tarde em Brasília de que me lembro, fui com meu avô num colégio particular em Brasília. A partir dos oito anos, todas as minhas férias eu passava com meu avô. Minhas poucas memórias felizes de infância são todas dessas férias que eu passava com ele. Eu amava muito meu avô e era muito mais feliz ao lado dele do que com o restante de minha família em São Paulo. Quando fomos visitar o colégio, estudávamos a possibilidade de que eu mudasse para Brasília de vez.

Lembro vagamente da visita. O colégio era bonito, mas não era exatamente o colégio que me interessava na experiência. Era a possibilidade de morar em Brasília, de estar com meu avô, de estar longe do sofrimento que eu vivia com minhas mãe e avó. E o que lembro desse dia, mais do que qualquer coisa, foi de uma pergunta do meu avô.

Ele me perguntou se talvez minha ida para Brasília não fosse piorar a situação de minha mãe e minha avó em São Paulo e como eu me sentia sobre isso. Colocando nesses termos, minha ida para Brasília pareceria um egoísmo meu. Um abandono da minha mãe e da minha avó à própria sorte, para que elas enlouquecessem e brigassem sozinhas, longe de mim. Nessa leitura, o questionamento fez eu repensar minha vontade de ir a Brasília. Voltar para São Paulo e viver com as duas, a partir daí, construiu-se como um sacrifício de minha parte para que elas mantivessem um fio condutor em suas vidas, algo que as impedisse de se renderem totalmente ao caos e ao desespero.

Porque a vida é feita dessas ambiguidades, eu nunca vou saber o que motivou meu avô a trazer aquela pergunta. Talvez ele estivesse preocupado de fato com o que seria das duas em São Paulo sem mim. Talvez ele estivesse receoso de assumir a convivência comigo, considerando a vida de tanto trabalho que ele tinha em Brasília. Talvez ele estivesse exercitando a “didática da liberdade” com que me educou, em que sempre me perguntava desde criança o que eu gostaria de fazer, então ouvia minhas opiniões e não era de imposições, apelando normalmente ao meu bom senso e deixando que eu agisse como preferisse.

Em outros momentos, gostei muito de ter sido criado assim. Vivi uma vida em que fui responsável desde cedo pelas decisões importantes sobre meu futuro porque meu avô me dava essa abertura para escolher. Hoje como adulto, penso um pouco no quanto era ou não justo despejar uma escolha dessas numa criança com algo entre dez e doze anos, mas talvez seja porque me assombro com essa escolha em particular. Voltar para São Paulo foi uma decisão que impactou profundamente minha vida, a vida de todos nós, e que teve infinitas implicações e consequências futuras, sendo o livro que vamos discutir só uma delas. Se a ida do meu avô foi meu incidente incitante, algo que aconteceu comigo e no qual fui vítima passiva, essa decisão do Rodrigo criança foi meu “chamado à aventura”, a escolha que me enveredou nos caminhos particulares da minha história como pessoa. Fosse a decisão daquele menino outra, eu não estaria escrevendo isso aqui hoje. Minha vida teria sido completamente diferente.

A visita à escola em Brasília ficou, portanto, como esse símbolo do que poderia ter sido, um evento de bifurcação. E se eu tivesse estudado lá? E se eu tivesse ido para Brasília? Como teriam sido as coisas? É sempre a esse evento que volto, com a imprecisão da memória envolvida, para brincar de “e se”. Foi a primeira escolha significativa que fiz, essa por volta dos 10 anos de idade. Uma escolha que hoje me parece um pouco injusto que me tenha sido ofertada, uma escolha em que acho que escolhi de forma um pouco equivocada o caminho de um sacrifício por amor. Sacrifiquei ali o que poderia ter sido uma felicidade e uma estabilidade emocional maior para minha infância e adolescência, o que teria sido um bem-estar maior para crescer, pela promessa de que minha presença pudesse ajudar os ânimos da família em crise, que minha presença em São Paulo pudesse contribuir para minha mãe e minha avó melhorarem.

Hoje, sabendo que meu avô faleceu quando eu era ainda muito jovem, essa escolha me assombra mais ainda. Sacrifiquei não só a minha infância, como também minha última oportunidade de viver anos junto do familiar que mais me fazia bem. Na época, sem saber que teria tão pouco tempo com ele no mundo, parecia que teríamos a vida toda pela frente ainda para nos vermos, viajarmos juntos, ficarmos mais tempo um com o outro.

E minha volta para São Paulo daquelas férias em Brasília aconteceu com aquele sacrifício no passado pelas promessas de futuro: promessas de que as coisas em São Paulo fossem melhorar, de que eu fosse aprender a ser feliz ali e de que eu ainda tinha uma vida inteira pela frente para estar com meu avô de outras maneiras.

O palco que aos dezoito anos se montou

O que eu vivi ao decidir ficar em São Paulo foi um constante e insuportável sofrimento.

A situação se estabilizou minimamente em algum momento. Minha mãe, depois de uma de suas interações, não voltou durante minha juventude a ter crises tão absurdas quanto as anteriores. Conforme eu crescia e ficava mais independente, a negligência por parte da minha avó começava a me afetar menos. Mesmo assim, o ambiente era terrível para crescer. Muitas brigas aconteciam constantemente, pelos mais mesquinhos e mínimos dos motivos, e era comum que eu acordasse ouvindo gritos pela casa que às vezes seguiam durante o dia inteiro.

Eu tentava escapar do ambiente da casa, que eu odiava profundamente, de todos os jeitos que podia. Fechei-me numa casca para tentar construir alguma saúde mental e para tentar evitar que as influências distorcidas dos estados mentais perturbados e precários de quem vivia comigo sob o mesmo teto acabassem por me transformar noutra pessoa daquelas. Era meu pânico, durante o meu crescimento, que a influência daquele ambiente me transformasse de alguma maneira, que destruísse minha sanidade. Tentando escapar disso, imagino que consegui minimamente preservar certa sanidade (há dúvidas sobre isso), mas não consegui impedir que o ambiente me transformasse.

Tornei-me uma pessoa introspectiva. Vivia sobretudo de madrugada quando em casa, porque era quando havia menos gritos. Mergulhava no que podia que me submergisse o mais distante possível do mundo. Nos meus desenhos, nos filmes, nas músicas, nos livros que desde cedo comecei a ler (por influência direto de meu avô), e a partir dos treze anos também na escrita e na Internet, onde construí um alterego para existir, e mais tarde também na vida social de adolescente, quando mudei para um colégio num bairro bem distante e consegui divorciar minha vida “lá fora” da vida que vivia dentro de casa. Em casa, vivia de fones de ouvido escutando música o tempo todo quando acordado, normalmente ao mesmo tempo que lia.

Naquele meu auge de adolescência, tudo isso estava culminando. Eu escrevia como o meu hábito mais íntimo e mais frequente desde os treze anos e desde ali, na verdade desde antes, eu já sabia que queria trabalhar com escrita. Tinha medo de admitir, porque sabia que era algo difícil, e minha adolescência toda foi um processo constante de reafirmação desse desejo frente às minhas inseguranças juvenis. Cada pequeno elogio vindo de meus amigos ou desconhecidos na Internet era um pouco mais de combustível para que eu enfrentasse minhas inseguranças e consolidasse minhas vontades. Começando aos dezessete e continuando aos dezoito, eu costumava me exercitar bastante também, outra desculpa para estar fora de casa, fosse correndo no parque ou indo à academia. Era comum desde então que eu saísse de casa pela manhã e voltasse só tarde da noite, considerando meus encontros com amigos, minhas aulas do que passou do EM e do técnico para o cursinho, minhas idas a cafeterias para ler e escrever, bem como minhas idas aos parques e à academia para correr e suar.

Aos dezoito anos eu tinha uma vida social vibrante, algo que comecei a construir ao final dos dezesseis e que estava alcançando seu estopim. Foi meu ano mais social, o ano em que eu mais estava rodeado de amigos de quem gostava muito, e no mundo “lá fora” descobri de um jeito que nunca descobri na minha sofrida vida de família o que eram sentimentos como euforia, felicidade, o que era ânimo, o que era leveza, o que eram boas experiências.

Eu estava, portanto, ali aos dezoito anos:

  1. Convicto como nunca antes dos meus sonhos de escrita, após tantos anos escrevendo e me tornando cada vez mais íntimo desta prática.
  2. Apaixonado como nunca antes pela vida, pelo mundo, e pelas esperanças de um bom futuro.

Ao mesmo tempo, minha juventude era marcada pelos seguintes desafios:

  1. Minha vida morando com minha avó e minha mãe já tinha ultrapassado os limites do suportável. Eu mergulhava nos textos, os que escrevia e os que lia, e também na vida social no mundo “lá fora”, para escapar da minha vida em casa, o último lugar onde eu gostaria de estar.
  2. Aos dezoito anos, era esperado de mim um comprometimento fundo com certas burocracias — passar no vestibular, escolher uma faculdade — que me enchiam de um pânico ansioso e que não se articulavam bem nem com meu sofrimento em casa, ambiente pouco propício para que eu estruturasse a disciplina para estudar, nem com minha euforia no mundo lá fora, que me jogava mais em direção às minhas paixões do que em direção às minhas responsabilidades.

Em setembro de 2013, no que estava entrando na etapa final para ir ao vestibular e ao ENEM, eu vivia um momento decisivo. No começo daquele ano eu tinha largado o colégio, porque estava prestes a reprovar outra vez e tinha decidido me formar por uma rota pouco conhecida: essa em que eu podia conseguir o diploma do Ensino Médio passando na prova do ENEM. Como todas as outras vezes, essa também foi uma decisão significativa da minha vida que meu avô deixou que eu tomasse sozinho, a de largar a escola e me formar pelo ENEM, algo que uma criação mais conservadora certamente não teria permitido. Dessa escolha eu não me arrependo.

Eu escrevia desde os 13 anos sobretudo dois tipos de textos: por um lado estavam os textos mais humanos, romancezinhos feitos para serem bonitos e poéticos, para tentar emocionar quem lesse; de outro lado estavam os textos grotescos, narrativas surrealistas e escatológicas que eu fazia para divertir e/ou chocar meus amigos e estranhos na Internet com os absurdos que minha imaginação conseguia articular.

Ali, aos dezoito anos, eu já estava pensando na escrita de um livro que unisse esses dois “jeitos de escrever” que tinha num projeto único, que seria bonito e poético na primeira metade para depois mergulhar em absurdos grotescos.

Ali, aos dezoito anos, eu tinha lido recentemente Kerouac e o universo de andarilhos estava muito na minha cabeça.

Ali, aos dezoito anos, discutia muito com o meu avô sobre o quanto eu era infeliz vivendo com minha mãe e minha avó e sobre o quanto eu não suportava mais viver com as duas. Era realmente algo insustentável. Eram, na verdade, mais os esboços de uma discussão, considerando que eu não sabia me articular direito devido à minha excitação juvenil e à minha falta de costume de falar abertamente desses assuntos até então. Eu estava aos poucos tentando ser mais honesto com minha família, sobretudo com meu avô, mas isso ainda era difícil e eu ainda vivia essencialmente duas vidas divorciadas, essa da minha juventude “da porta para fora”, que eu pouco compartilhava com meu avô ou com minha família no geral, e a minha vida familiar “da porta para dentro”, que eu mantinha como um segredo absoluto de qualquer amigo meu.

Um par de meses antes do vestibular, ali em setembro de 2013, eu tive uma ideia para um livro.

Era um livro que ia consolidar minha convicção de viver escrevendo com um objeto que demonstrasse meu potencial nesse sentido. Era um livro ambicioso, que eu queria escrever do melhor jeito que eu pudesse, com uma estrutura inovadora e um argumento original.

Era um livro que articulava meu gosto pelas narrativas de andarilho e usava disso para comentar minhas angústias com a responsabilidade de crescer, os demônios da masculinidade e quais poderiam ser as piores causas e as piores consequências de fugir de casa — algo que eu sonhava profundamente em fazer, mas algo que eu queria demonstrar saber os piores cenários que pode resultar.

Era um livro, mais ainda, que eu conseguiria usar de pontapé para aprofundar minha conversa com meu avô sobre minha necessidade de sair da casa em que morava. Era um livro que começaria essa conversa explicando porque eu considerava um equívoco a a escolha que o Rodrigo criança tinha tomado aos 10 anos. Ia explicar que para mim era um estado que simplesmente não se sustentava mais. Nesse sentido, era um livro escrito específica e particularmente para a leitura do meu avô, como algo que eu gostaria que ele, mais do que qualquer outra pessoa, fosse ler. Queria que ele visse que eu entendia os riscos de fugir, que eu sabia complexificar e problematizar criticamente a figura do andarilho e os ideais de liberdade irrestrita, e que não era (pelo menos não só) por um sonho idílico de juventude eufórica que eu precisava com tanta ânsia sair logo de onde morava.

Era um livro que me tomou só uma manhã na sala do cursinho, em que não prestei absolutamente atenção nenhuma em qualquer coisa da aula, para projetar quantos capítulos teria, como seria desenvolvido cena a cena, quem eram os personagens principais, etc.

Era um livro que me afastava das responsabilidades e ansiedades sofridas sobre o vestibular, que me dava um norte de propósito de vida para além do número da nota na folha de uma prova que parecia algo que engoliria todo meu futuro. Era minha chance de construir uma alternativa de futuro sob minhas próprias mãos.

Era um livro para o qual estabeleci uma meta: escrever em um mês, terminando logo antes dos vestibulares começarem.

Assim, desisti de estudar para os vestibulares. Naquele setembro, saía de casa todas as manhãs com a desculpa de que iria ao cursinho, mas ao invés disso estava indo escrever o livro.

É este o palco. Foi assim que começou.

O mês escrevendo Verde Verdade

O projeto era mesmo bastante ambicioso: dezesseis capítulos, um livro de mais de cinquenta mil palavras, a escrever no intervalo de um único mês.

Algumas coisas ajudavam a parecer viável: no dia um, eu já tinha 95% da história definida, variando somente alguns detalhes mínimos durante o processo de escrita; eu já tinha todos os principais eventos, a ordem de todos os capítulos, os dois protagonistas e todos os personagens secundários importantes muito bem definidos.

Verde Verdade é um livro dividido em duas partes. A primeira delas é uma exploração poética e bonita sobre a juventude de um andarilho chamado Lúcio. A história se desenvolve alegre, leve e sobretudo inofensiva, numa influência direta e explícita ao On The Road de Kerouac. A segunda metade, por sua vez, foi construída como uma desconstrução desse mito do andarilho, a partir de uma guinada a um thriller de suspense. O andarilho Gabriel, que acompanhava Lúcio já há alguns capítulos como uma espécie de mentor e companheiro de estrada, subitamente assassina o jovem protagonista no meio do deserto. A segunda metade do livro passa a ser uma jornada de retorno, com Gabriel revisitando todos os lugares e pessoas que Lúcio antes conhecera. Nisso, a perspectiva de Gabriel mostra facetas menos inofensivas e mais problemáticas dos personagens: se Luca para Lúcio era um divertido barman caricato, para Gabriel ele é um manipulador talentoso, um cúmplice em projetos para assassinatos, e finalmente um suicida. Se Anna era somente um casinho de estrada para Lúcio, para Gabriel ela se torna uma menina marcada por péssimas escolhas, tentativas de fuga, companhias perigosas e um profundo sofrimento.

Essa estrutura ser assim tinha a intenção de oferecer uma experiência de leitura bem particular para quem me conhecesse na época, sobretudo para meu leitor projetado naquele livro, meu avô.

Imaginava que meu avô lesse a primeira parte do livro um pouco preocupado e impaciente. Sem saber para onde a história andava, a jornada no começo pareceria realmente sem muita intenção. O livro começava tão, mas tão inofensivo que prometia uma jornada diluída e ausente de sem grandes acontecimentos.

Fora isso, a romantização idealizada do mito de andarilho provavelmente o incomodaria, e isso era proposital: ao fazer um Lúcio que se pareceria comigo ao ponto de estruturar uma possibilidade de identificação por ele como leitor (algo como “olha, o Rodrigo está se enfiando numa historinha de andarilho ao mesmo tempo em que quer fugir de casa”), o que eu queria era aumentar o choque na segunda parte do livro, com um tom completamente diferente, quando Gabriel assumisse liderança da história e tudo que antes tinha sido idealizado passasse por uma revisita crítica e de desconstrução. Eu tinha até propositalmente acentuado a semelhança: escrevera Lúcio com uma argola na orelha e fiz questão de repetir o detalhe no meu corpo real, colocando uma argolinha semelhante no que terminei de escrever o livro.

Havia uma estrutura simétrica no livro para entregar a desconstrução de cada romantização em pares: para cada capítulo de Lúcio na parte um em que algo fosse construído, haveria um capítulo na parte dois em que Gabriel revisitaria as mesmas pessoas e lugares. O primeiro capítulo acontecia com Lúcio saindo em viagem ao abandonar a casa de sua mãe e o último capítulo envolvia Gabriel retornando de uma longa viagem para visitar a casa da mãe de Lúcio novamente. Nessa revisita, a mãe de Lúcio é reapresentada como uma figura muito mais trágica e Lúcio, construído durante a segunda parte do livro como um elemento de nostalgia e conexão para Gabriel, quase como um símbolo de uma possível vida mais pura, é implodido enquanto personagem com a revelação de que tinha ido embora de sua casa para fugir após alegações de estupro e até mesmo de tentativas de assassinato.

Esse encontro rimado entre o belo e o terrível era algo que eu queria muito construir como uma proposta estética. A releitura de Verde Verdade recontextualiza toda a experiência e cada interação entre todos os personagens, que passam a revelar novas camadas que eram inacessíveis numa primeira leitura. Por exemplo: sabendo quem Lúcio realmente era, pensar o encontro dele com Anna recontextualiza frases como a ironia amarga de Lúcio ao dizer que ela era “uma garota de sorte” por não ter seguido viagem com ele.

A estrutura era também uma maneira de demonstrar meu potencial. Desde então gostava sempre de estruturar histórias de maneiras complexas e intrincadas, e construir uma estrutura que enfiasse arcos narrativos numa limitação de simetria me parecia um desafio interessante. Eu queria com o livro tanto desconstruir qualquer projeção a respeito do que eu realmente era capaz de pensar e ser, como também demonstrar um indício de por qual talento eu estava me direcionando ao rumo de vida que me direcionava.

E, reitero, havia ainda aquele assunto muito concreto sobre o qual que eu conversava com meu avô frequentemente naquele período: a minha urgência em sair da casa de minhas mãe e avó para que isso deixasse de prejudicar meu desenvolvimento, já que viver com as duas me afetava tanto. O livro era portanto para estabelecer uma primeira fase de pressupostos e conceitos que eu imaginava que fossem me ajudar a navegar melhor nesse diálogo.

O mês de escrita foi muito feliz. De partida, eu já sabia de todos esses detalhes que descrevi acima, então ao escrever as primeiras páginas eu já sentia que tinha o livro essencialmente pronto.

Alguns exemplos do meu caderno aos 18 anos, que comprei na Americanas por dezesseis reais para servir exclusivamente ao projeto do livro: anotações sobre as ideias-chave de cada capítulo junto a alguns desenhos (bem vagabundos) de cenas importantes.

Larguei o cursinho e frequentava esquinas de metrô ou cafeterias e praças de alimentação em shoppings. Sentava com meu notebook e escrevia por horas e horas. Por dia, escrevia um novo capítulo enquanto revisava o capítulo anterior. Todo dia, ia numa gráfica diferente e imprimia um capítulo para revisar. Andava com caneta para anotar ajustes nas folhas de papel que depois eu transferia para o arquivo no Word.

Era um mês bonito e quente de primavera. Minha vida era muito livre de preocupações: eu tinha dinheiro para pagar tudo que precisava, então passava meu tempo entre encontros com amigos, ir à academia, ler livros, ou escrever meu próprio livro. Saía da casa de minha mãe sempre muito cedo na manhã e voltava sempre bem tarde da noite. Durante as primeiras semanas, para escrever a primeira parte do livro mais feliz, ouvi muito Skank e Gorillaz. Na segunda parte, passei a escutar coisas diferentes, acho que principalmente Interpol e Pink Floyd. Cada capítulo tinha uma música que me inspirou a algo, com o capítulo final da parte um, por exemplo, aquele em que Lúcio morre, tendo a letra “surprise, sometimes, will come around” como um prenúncio mórbido do plot twist que naquele capítulo aconteceria.

No período em que escrevia, tinha um grupo no Facebook com alguns amigos em que eu jogava os capítulos no pior dos formatos possíveis: como comentários num post que eu tinha feito sobre o livro. Mesmo assim, logo no começo um rapaz chapado Lucas Pacheco, um dos meus melhores amigos de ensino técnico, foi o primeiro que começou a ler — amigo a quem, por essa contribuição e pelo apoio durante a próxima década, decidi que o livro seria dedicado quando publiquei. Como o livro era para ser de certa forma um segredo ao meu avô até que fosse concluído, não comentei nada com ele no processo. Foi só com esse amigo que tive, durante a escrita, algumas conversas importantes sobre como certas cenas e eventos estavam funcionando na história, e sobre o que poderia estar óbvio demais antes da hora com algumas das dicas que eu estava espalhando pelos capítulos. Isso também foi muito bom, uma experiência que me ajudou a ter motivação e norte para aquele projeto ser finalizado no prazo.

E finalizado no prazo o livro foi. Depois de um intervalo de apenas um mês, estava pronto. Era meu primeiro livro escrito. E com todos os seus problemas, acho que é um livro muito bom até hoje, em certos sentidos ainda o melhor que já escrevi, principalmente no sentido de desenvolvimento temático e de estrutura narrativa.

Mas isso não quer dizer que o livro não tivesse seus desafios. Aquela primeira versão era, apesar das rápidas revisões durante o processo de escrita, ainda repleta de problemas sobretudo na qualidade da escrita. Era afinal meu primeiro livro, escrito em tempo recorde, e eu ainda não tinha a experiência que os anos de trabalho na sequência me trariam.

Essa é a sorte desse livro que inclusive me fez querer lançá-lo anos depois: como a estrutura era sólida e o argumento da história era bom, os ajustes de revisão sempre foram mais nas minúcias, na qualidade da escrita sobretudo, e embora isso tenha levado muito tempo e não tenha passado quase nenhuma frase do manuscrito original sem revisão nesses dez anos, a fundação do livro sempre permaneceu a mesma.

Para além disso, se trata um livro que exige muito do leitor, o que só faz sentido se considerarmos que meu leitor ideal era meu próprio avô. Eu podia exigir do meu avô um engajamento com as complexidades do livro porque eu sabia que ele tinha mais do que suficiente em capacidade para isso. Mas eu também podia exigir dele insistência e paciência com o começo tedioso e com minhas falhas de escrita, ou mesmo com minha juventude que depunha contra mim enquanto autor que merecesse ser lido, ciente que em mais tempo ou menos ele leria tudo para me dar seu veredicto.

Fiz uma impressão apostilada do livro que mandei a meu avô. Junto dela mandei uma carta à mão, no corpo do livro, dedicando a ele minha obra. Dediquei vários outros livros e textos a ele mais tarde também. Em outra carta, que deixei impressa junto às páginas, eu fazia um agradecimento mais geral pelo que ele tinha sido na minha vida e sobre os cenários que estavam se montando naquele período da minha vida.

A íntegra dessa carta que escrevi nos primeiros dias de outubro de 2013:

Ironicamente, o estágio de redação que tanto comentei acabou não acontecendo e eu ainda demoraria mais alguns anos para conseguir começar a trabalhar com isso (coisa que eventualmente aconteceu no final do meu penúltimo ano da faculdade, em dezembro de 2016). A carta também mantinha propositalmente um pouco vago quando o livro tinha sido escrito e dezenas de vezes revisado, evitando mencionar que tudo isso acontecera logo naquele setembro pré-vestibulares. Isso eu pretendia carregar para uma discussão do livro pronto que viria, imaginei também, já no momento em que eu soubesse minhas notas nas provas e em que meu avô tivesse terminado a leitura, o que alteraria significativamente o peso (ou falta dele) na discussão dessas minhas arriscadas apostas e suas inconsequências.

Depois, continuei de tempos em tempos dando versões apostiladas ou em .pdf do Verde Verdade a amigos. As reações desde sempre foram muito positivas, em caso de quem tinha gostado muito da história e de suas viradas, ou então muito negativas, de quem se entediou com a lentidão do começo ou se indignou com a brutalidade da segunda metade. Conforme os anos iam passando, essa contradição nas avaliações me deixava numa dúvida constante sobre a presença ou ausência de qualidades naquele meu primeiro livro, acentuando o dilema sobre se eu deveria publicá-lo ou não. Isso ficou mais difícil ainda de considerar conforme eu ia escrevendo mais livros com que podia comparar Verde Verdade para estudar qual deles precisaria revisar menos para ser publicado mais cedo.

No começo, enviava ainda dessas apostilas do livro por Correios para editoras. Depois, só enviava os .pdfs por e-mail. Durante a próxima década, só se interessaram por Verde Verdade editoras dessas que exigem pagamentos caros para fazer a tiragem. Como um purista perfeccionista querendo um bom fim para meu primogênito, eram impraticáveis os critérios que eu mesmo desejava para a publicação com editoras tradicionais ou independentes.

Eu não ia publicar com as editoras e condições que assumiriam a publicação de um moleque qualquer sem reputação, e as editoras com quem eu queria ser publicado não iriam trabalhar comigo justamente por essa minha juventude e anonimato. Esse stalemate se manteve enquanto eu deixava de ser somente um anônimo qualquer aos dezoito anos, que seria alguém absolutamente impossível de ser publicado em condições melhores, para me tornar um adulto com um currículo minimamente mais associado ao que se esperava de um autor. No que passei a trabalhar escrevendo, desenvolvi uma presença digital no Medium, escrevi mais livros e no que segui para formações auxiliares como o mestrado em Comunicação.

Mas tudo isso foi bem aos poucos e bem depois.

No durante, foram dez anos de negativas, quando não ausências de respostas, que sempre me atingiam bastante.

A década até a publicação

Terminei de escrever Verde Verdade inebriado por uma euforia juvenil. Estava às vésperas dos vestibulares, o que deveria me deixar em pânico, mas fui para as provas com leveza e contentamento, mesmo que considerasse os cenários mais pessimistas como prováveis.

Eu tinha, afinal, largado o cursinho um mês antes das provas para me dedicar a um projeto paralelo sem absolutamente nenhuma relação com as matérias vestibulares. Algumas poucas frases de cursinho foram tudo que entrou na minha cabeça, mesmo isso só quando aproveitei alguma delas no livro. O conceito de “se houver proporção, haverá semelhança”, por exemplo, era ressignificado em Verde Verdade para comentar poeticamente a semelhança de comportamentos entre Lúcio e Gabriel. Isso ajudava o livro, mas provavelmente não me ajudaria numa pergunta que usasse desse conceito no caderno de matemática de algum vestibular.

A segunda metade de 2013, na minha visão sobre minha própria vida, parece para mim o grande momento em essência do que foi minha juventude em seu melhor e ao mesmo tempo mais ambivalente estado. Nunca estive tão convicto, tão esforçado, tão apaixonado pela vida, e ao mesmo tempo estava tomando decisões arriscadas, optando por caminhos difíceis na vida, e constantemente tomado por insatisfações e limitações no que poderia ser e fazer. Mais ainda, o tanto de tempo absolutamente livre que tinha foi o que fez brotar minha vida artística, com tudo que tive a oportunidade de ler e escrever. Eu vivia muito bem entre essas tarefas de leitura e de escrita, tomadas desde então com a fidelidade que já se aproximava um pouco de uma profissão, e aproveitava dos confortos de ter dinheiro sem trabalhar, de ter muitos amigos para passear por aí, de passar a maior parte dos dias zanzando pela cidade com minha mochilinha e tomando café em diferentes pontos bonitos dos bairros mais caros de São Paulo.

Eu passei no ENEM e nos vestibulares pouco depois de quando meu avô recebeu meu livro de presente. Ali, eu mandei o livro também como um presente para alguns outros amigos. Ganhar minha primeira leva de retornos sobre meu projeto literário, que por sorte foi uma primeira leva de opiniões bastante positivas (talvez por educação dos meus primeiros leitores) também me deixou mais certo das minhas escolhas. Isso me encaminhou num estado ainda maior de leveza de espírito associada a uma firmeza dos atos tomados. Minha grande ansiedade sobre meu futuro acadêmico estava resolvida finalmente. Eu estava oficialmente de férias, sem novas grandes cobranças, logo após ter concluído um grande projeto.

Dessa época, lembro de uma memória em particular. Um dia, fui ao Parque Villa Lobos para correr, coisa que eu costumava fazer volta e meia principalmente aos fins de semana. No final da tarde por lá, parei minha corrida e sentei ao lado de uma grande e antiga árvore. Meu avô me ligou e tivemos uma discussão. Pela euforia da vida como um todo, pelo projeto do livro e pela dopamina daquele momento de corridas, eu tentava explicar ao meu avô, sem saber me articular direito, o que estava acontecendo comigo. Ele, preocupado com minha animação e com minhas ideias de fuga, tentava me trazer de volta pro chão. Essa dinâmica marca muitas das nossas interações naquele momento. Sinto que meu avô teria se sentido menos preocupado no ano seguinte, quando conversássemos mais frequentemente e ao vivo, e sinto que esta é uma das questões que deixamos em aberto em nosso relacionamento.

Eu imaginava que estava me inscrevendo em Letras ou Jornalismo nas principais faculdades onde tinha me inscrito. Numa delas, porém, sem querer me inscrevi em Publicidade, um curso que nunca tinha sequer considerado. Quando meu avô certo dia me ligou para avisar que eu tinha passado em segundo lugar na Faculdade Cásper Líbero, fiquei confuso que tivesse sido no muito disputado curso de Jornalismo. Mas não era: eu tinha passado como segundo colocado em Publicidade mesmo. Na classificação geral entre todos os cursos, fiquei em quarenta e sete entre os dois milhares de inscritos. Ainda bastante bom, só um pouco menos impressionante.

Fui ver o curso, gostei e, também por pressão do meu avô, fomos juntos fazer matrícula. Na época, eu e meu avô ainda conversávamos muito sobre a ideia que eu tinha de, ao invés de estudar, arranjar um empreguinho qualquer para sair logo da casa da minha mãe. Eu pensava em fazer isso inclusive indo para outro estado, considerando principalmente ir para Blumenau.

É difícil para mim hoje em dia considerar o quanto eu estava realmente disposto a levar qualquer coisa dessas a sério. A parte de arranjar um emprego qualquer para viver de aluguel era algo que eu considerava fazer e que acho que talvez tivesse até conseguido, mas também considerava esses outros cenários mais absurdos e complicados que envolviam ir a outras cidades sem conhecer ninguém nelas.

Acontece que os apelos do meu avô, principalmente, acabaram me vencendo. Fomos juntos no começo de 2014 resolver todas as burocracias envolvidas na aquisição por um caminho pouco utilizado do diploma do Ensino Médio, bem como na inscrição, com esse diploma ainda em vias de sair, no curso em que eu tinha passado como segundo colocado. Meu avô tinha vindo de Brasília para São Paulo, estava hospedado num apartamento que ele recentemente tinha adquirido com a sua esposa, chamada Lídia, que ele conhecera em Brasília nos anos em que morou lá.

Essas lembranças que tenho com meu avô são outras das que explicam muito do que era nossa relação naquela época. Estávamos num momento de alegrias e melhoras da situação geral da família; estávamos, simultaneamente, ainda num período de ansiedades sobre o que seria o futuro. Andávamos à pé por lugares de São Paulo, resolvendo burocracias e conversando. Meu avô, ao ir comigo ao prédio da Secretaria da Educação de São Paulo, contou para mim que tinha estudado ali quando era criança.

Nesse período ele lia aos poucos meu livro e eu aguardava ansiosamente o término de sua leitura. Era o maior texto que eu já tinha dado para que ele lesse. Durante a leitura, ele só reclamou uma vez sobre um erro de português gritante: “degrais”. O resto, eu esperava que ele terminasse para conversarmos.

Certo dia, meu avô foi visitar minha mãe e avó. Foi sua primeira visita, desde que tinha ido embora para Brasília, em que não houve um grande episódio de brigas e gritos. Não estou exagerando, isso não é um artifício poético: foi a primeira vez que uma visita dele foi pacífica. Meu vô estava muito bem, feliz e sorridente. Aos sessenta e dois anos, ele fazia exercícios frequentemente (natação às manhãs várias vezes por semana; pilates também com frequência semanal), continuava em forma, não tinha grandes dores e se movia bem. Não havia nada com que nos preocupássemos a respeito das saúde dele.

Na volta dessa visita, eu comentei ao meu avô que as coisas pareciam estar melhorando, mencionando especificamente a situação que parecia um pouco mais estável da família e também meus encaminhamentos na ida à faculdade. Ele respondeu, pensativo e distante, que “é, parece que sim”, e entramos juntos num ônibus. Eu desceria antes, na estação em que a Rebouças cruzava a Faria Lima, porque iria à academia que eu frequentava ali na Rua dos Pinheiros. Ele ia descer na Paulista para caminhar pela Frei Caneca até seu apartamento.

Combinamos que na semana seguinte iríamos a uma loja ver roupas novas com que eu poderia ir à faculdade. No ônibus, não pudemos conversar porque não encontramos dois lugares vagos um ao lado do outro. Assim, ele sentou na frente e eu no banco logo atrás dele.

Trocamos uma despedida rápida quando cheguei e desci. Do ponto de ônibus, fiquei vendo meu avô partir no ônibus rumo à Frei Caneca.

Foi a última vez que o vi consciente.

Nos dias seguintes, eu configurava o notebook que tinha ganhado de presente de meu avô com um novo sistema operacional e não conversamos tanto durante esse período. Devemos ter conversado uma última vez rapidamente por telefone, em algum momento. Mas no começo da semana seguinte, antes que nos encontrássemos novamente (tínhamos combinado sair para comprar roupas antes do meu início de aulas), ele subitamente teve um AVC e entrou em coma.

Durante meu começo do ano na faculdade, todo dia saía das aulas, ou dos trotes de calouros, onde eu interpretava uma certa leveza para fazer contatos com os outros alunos, e então ia andando até o Hospital Nove de Julho, onde encontrava minha família sofrendo e meu avô inconsciente.

Durou algumas semanas, quase um mês. No dia 18 de fevereiro, ele faleceu.

Foi, não tenho a menor das dúvidas, o momento mais trágico da minha vida.

Nos meses seguintes, a Lídia começou a me enviar alguns dos livros que meu avô tinha me deixado como herança. Eles vinham principalmente em encomendas pelos correios. Eu tentei seguir a faculdade como dava. Em um encontro, a Lídia me mostrou também a cópia do meu avô de Verde Verdade.

Aqui, há uma divergência de versões. Anos mais tarde, a Lídia revisitou essa apostila, que eu tinha deixado com ela, para me dizer que meu avô devia ter parado no capítulo 06, onde havia uma dobra de marcação. O capítulo 06 é aquele em que Gabriel aparece pela primeira vez. Já eu me lembro, na época em que a Lídia me mostrou essa cópia pouco após a morte do meu avô, que houvesse um marca páginas no final do capítulo 08, pouquíssimo antes de Lúcio morrer — e durante uma década, meu avô ter parado ali me assombrou porque pareceu uma ironia macabra.

Fico imaginando a leitura dele, em que eu enquanto narrador estava propositalmente guiando suas expectativas a uma série de preocupações para subverter essas expectativas depois na segunda metade do livro. Penso que ele nunca teve a oportunidade de compreender isso e que, de certa forma, meu livro pode ter naquele período acentuado suas preocupações com minha euforia. Eu tinha feito um livro para apresentar uma caricatura a meu respeito, a partir de um exagero do que eu imaginava que ele projetasse em mim, somente para depois complexificar esta caricatura e me mostrar sob uma nova perspectiva. O fato de meu avô ter ficado só com a primeira metade da história quer dizer que, infelizmente, a leitura nele teve o efeito contrário ao esperado, servindo para fortalecer essas expectativas equivocadas dele a meu respeito ao invés de desconstruí-las.

Como Verde Verdade tinha sido escrito para meu avô, meu projeto do livro foi à gaveta durante os meses seguintes. Eu vivia uma época da minha vida marcada por um profundo sofrimento pouco articulado. Continuar vivendo com minhas mãe e avó, agora sem meu avô mesmo à distância, foi de uma profunda melancolia. Foi minha época de vida mais desalentada e desesperançosa, em que me senti realmente sozinho no mundo frente a uma falta de estrutura muito profunda em diferentes frentes do meu futuro próximo.

Mais do que nunca, eu passava minha vida na rua. Não queria estar em casa de jeito nenhum. Se estava sendo sofrido em 2013, a situação depois de meu avô morrer alcançou um novo nível de instabilidade que durante os próximos anos foi ficando aos poucos cada vez pior. Consegui manter minha juventude, na vibrante vida social especialmente, mas havia um outro lado de mim profundamente ferido ao mesmo tempo, algo que eu não demonstrava para as pessoas, mas que distorcia e prejudicava minha personalidade, meus valores, minhas escolhas, minhas ideias e minha capacidade de ter interações autênticas.

No final de 2014, tive um processo complicado que envolveu uma grande crise em tudo de mim, inclusive no sentido mais profundo de uma crise existencial, também uma crise por um primeiro amor que não deu certo, também uma crise por me sentir perdido na minha vida, e ainda uma crise por não ter lidado apropriadamente com a morte do meu avô. Essa crise me alçou no término de seu árduo processo a um novo estado eufórico de revelação. Fiquei absolutamente maravilhado, o que me fez no ano seguinte escrever um novo livro, dessa vez um chamado Dezembro, sobre precisamente dezembro de 2014. Era um livro autobiográfico com mais que o triplo de palavras que Verde Verdade, algo que eu não imaginava que fosse conseguir publicar, mas que fazia como um registro e um exercício para mim. No que terminei esse livro, comecei de novo a pensar no meu livro antigo, ainda sem saber direito o que faria com ele.

O título “Verde Verdade” tinha nascido inspirado por uma série de grafites que eu via espalhados por São Paulo. Sempre diziam coisas como “veracidade/ver a cidade” e trocadilhos semelhantes. Na época, eu nunca tinha visto a versão “Verde Verdade”, então assumi que era uma variação que, mesmo inspirada, partia como original de minha parte. Numa tarde de 2015, saindo de uma sessão com meu psicólogo (que comecei a frequentar poucos meses depois de escrever Dezembro, porque tinha uma preocupação muito justa de que o livro, os seus processos e suas experiências talvez demonstrassem que eu estava ficado maluco), encontrei com um gigantesco painel de grafite, todo em verde e com as palavras colossais “VERDE VERDADE” em cima, no que interpretei isso como um sinal.

Mais uma vez revisei o livro e mandei para editoras. Dessa vez, fiz questão até de registrar o livro na Biblioteca Nacional. Mais uma vez sem retorno.

Tirei uma foto de quando topei com a parede que estampava gigante nome de meu livro.

Anos mais tarde eu já era redator quando, por volta de 2018, novamente revisei o Verde Verdade. Eu tinha o plano de dá-lo para a leitura de um professor meu da faculdade que tinha aberto uma editora e que era inclusive quem tinha me indicado para o emprego que eu tinha.

Nessa época, já tinha saído da casa de minhas mãe e avó. Com meu primeiríssimo salário como estagiário em redação, em janeiro de 2017, eu já tinha perdido mais de 60% do valor no aluguel do cortiço para onde mudamos. Mudamos, no plural, porque fui morar junto com minha na época namorada, Jaqueline, com quem eu tinha começado a namorar nos meados de 2016.

2016 em particular tinha sido uma última experiência e uma despedida definitiva do que eu tinha vivido de juventude privilegiada. Após resolver um mínimo dos meus traumas com a morte do meu avô e a começar a fazer terapia, eu vivia a mesma vida de confortos e qualidade de vida, com muito tempo livre, dinheiro e nenhuma grande responsabilidade, e seguia passando meus dias na rua para evitar ficar no ambiente infernal que cada vez mais se tornava minha casa com minhas mãe e avó. Foi nesse contexto de vida que me apaixonei, que escrevi outro livro (“Eu só existo às terças-feiras”, uma maneira de reescrever metaforicamente minhas experiências descritas anteriormente em Dezembro) e que o dinheiro que me mantinha nessa vida boa acabou, quando os últimos valores das heranças que recebi do meu avô se esgotaram. Dei sorte por ter conseguido um estágio na área que queria, essa da redação, no mesmíssimo período em que fiquei falido— depois de anos de tentativas enviando currículo sem ser chamado.

Quando meu avô morreu, meu pai passou a pagar minha faculdade e a participar um pouco mais da minha vida. Eu tinha conhecido meu pai em 2011, mas nosso contato foi crescendo aos poucos devido às nossas diferenças em realidades e opiniões. Na falta do meu avô, era com ele nessa época que eu reclamava sobre o quanto era difícil viver com minha família, mas era mais difícil falar disso com meu pai porque ele era teimoso e porque eu tinha ainda vergonha de explicar a gravidade real da situação que vivia. Então, quando eu e a Jaque fomos morar sozinhos, fomos praticamente sem apoio. Ninguém da minha família concordava muito com aquela nossa decisão, principalmente nos primeiros meses em que acreditavam que fôssemos desistir logo.

Não desistimos. Ficamos dois anos e meio morando no cortiço mais precário que se possa imaginar e passando por grandes perrengues financeiros. Ao mesmo tempo, evoluíamos aos poucos profissionalmente e como pessoas. A Jaque foi construindo de pouco em pouco a rede de contatos na nova cidade que a levou a trabalhar com comunicação. Eu, como redator, ia exercitando diariamente minha escrita.

No trabalho, pessoas revisavam os meus textos às vezes para mandar aos clientes. Uma dessas pessoas, uma moça do atendimento chamada Giovanna Buzo, um dia se dispôs a ler e revisar também meus livros. Ela fez isso com Verde Verdade e daí eu o mandei para editoras mais uma vez, e para a editora que era do meu professor inclusive. Mais uma vez nada andou de verdade, por um motivo ou por outro.

Uma nova ida do Verde Verdade à geladeira durante os próximos anos que foram marcados por enormes burocracias e desafios práticos. Primeiro, decidi intervir na situação de minhas mãe e avó porque, como havíamos previsto eu e meu a avô quando eu tinha 10 anos, a situação delas tinha piorado muito depois que eu tinha ido morar longe (e eu morava literalmente no outro extremo da cidade).

Eu e a Jaque levamos minha avó para morar conosco, no que tivemos sérios desafios financeiros pelo rombo econômico que a falta de controle de minha avó tinha causado. Minha mãe foi morar em Indaiatuba, cidade que conhecíamos por ser onde a Jaque vivia até mudar comigo para São Paulo. Houve a pandemia, no que fomos morar em São Roque com minha avó. Durante o final desse tempo em São Roque, fui buscar meus livros novamente para inscrevê-los em concursos.

O “Eu só existo às terças-feiras” inscrevi no Prêmio Kindle de 2022, no que não ganhei, mas achei a experiência muito positiva. Deu alívio publicar um livro que estava há tanto tempo guardado e com isso ter a oportunidade de receber retornos de leitores, especialmente os desconhecidos. No ano seguinte, foi a vez de Verde Verdade. Decidi deixá-lo para uma segunda tentativa em 2023 porque achava, com razão, que o processo de revisar Verde Verdade daria mais trabalho. Também achava, e continuo achando, que ele é um livro menos acessível e mais divisivo do que era o livro das terças-feiras.

Revisei uma última vez o livro nos meses anteriores a agosto, pedi a uma amiga designer que trabalhou comigo que fizesse a capa para o livro a partir de alguns direcionamentos que eu resgatei lá do meu caderno de 2013. E então coloquei o livro no ar, fiz uma pequena campanha de divulgação quando lancei, fiz um vídeo explicando o projeto para publicar nas redes sociais.

E assim, finalmente, esse meu filho foi pro mundo.

A publicação de Verde Verdade tirou um peso gigantesco das minhas costas. O lançamento no final de agosto de 2023 fez com que o livro saísse por volta de uma década depois de quando foi escrito, em setembro de 2013. As rodadas de revisões durante essa década, evidentemente, ajudaram muito o livro a melhorar sobretudo na sua escrita.

Como era de se esperar, é um livro que não é todo mundo que gosta. O primeiro review que recebi dele no Goodreads foi de duas estrelas em cinco. O segundo review, meses mais tarde, me deu quatro estrelas e foi muito mais positivo. Na Amazon, há o triste caso de um review positivo, mas com a pessoa tendo errado a nota e me dando só uma estrela depois de dizer que o livro era uma “ótima leitura, parabéns ao autor”.

Dez anos mais tarde, eu lamento a falta do meu leitor principal, meu avô. Vendo os retornos de outras pessoas sobre a obra, inclusive de familiares que acompanharam todos os acontecimentos da época, tenho consolidado algumas das minhas visões sobre o livro. Fico feliz com o resultado do que fiz lá atrás, mesmo sabendo das limitações que a obra possui.

Ao mesmo tempo, amadureci mais minhas visões sobre os dilemas do jovem que fui, dilemas que me inspiraram e levaram a tudo isso.

Hoje, com os acontecimentos da década que se passou, principalmente nas dificuldades que tive indo morar sozinho e intervindo depois na situação da minha família, eu tenho mais certeza do que nunca de que foi um equívoco dar à criança que fui aos 10 anos o poder de escolha sobre algo tão fundamental quanto o sacrifício da própria infância. Também acho agora que eu estava muito certo durante toda minha adolescência e juventude quando avisava sobre minha urgência em sair da casa da minha família, e também não tenho nenhum arrependimento em ter saído do jeito que saí, do jeito mais rápido possível e também da maneira mais precária possível. Acredito que foi terrivelmente subestimado o real efeito que aquele ambiente teria ao influenciar e prejudicar minha saúde mental durante meu crescimento. Acho que foi equivocado me usar como uma espécie de “cachorro de terapia”, ou um tipo de “jardinzinho zen”, considerando que me manter por perto teria tido algum efeito terapêutico para melhorar a situação de minha família, ao invés de considerar que a responsabilidade (mal atendida) de criar uma criança só fosse piorar ainda mais a situação já bastante frágil da família. Mais ainda, não era um peso ou uma responsabilidade que devia estar sobre mim esta de sacrificar minha vida pelo possível benefício dos adultos ao meu redor.

Há outro lado: considerando os resultados, penso hoje que ter ido embora, e talvez não ter assumido minha criação, podem ter garantido ao meu avô um final de vida, nessa sua última década e pouco em que viveu depois que foi para Brasília, que andou mais feliz e leve. Em certo sentido, assistindo o que aconteceu com minha família quando meu avô estava morto e eu estava distante, esse desmoronamento realmente só não tinha acontecido mais cedo porque antes meu avô dava suporte e porque antes eu estava lá.

Ainda assim, quando o desmoronamento aconteceu, minha escolha de lidar com ele e tentar resolvê-lo foi algo que veio muito inspirado pelo legado de meu avô. Era algo que ele certamente não gostaria que eu tivesse que assumir, um fardo que não deveria ter sido meu, mas que inevitavelmente se tornou meu quando tive que escolher entre agir ou observar a tragédia. Durante muito da minha juventude, fugi dessa responsabilidade pelo tempo que demorou até que eu acreditasse que estava pronto para lidar com ela. Quando escolhi lidar, ou talvez melhor dizendo quando me senti obrigado a tal pela gravidade das circunstâncias, não estava pronto ainda. Acho que nunca estaria, mas o estado em que estava foi suficiente para que, com muito esforço, os nós começassem a se desamarrar.

Outro dos desenhos que fiz no caderno do livro lá em 2013, colorido em 2023.

Publicar Verde Verdade hoje é, também, revisitar essa jornada que confirma e fortalece os argumentos temáticos do livro e, consequentemente, daquele autor de 18 anos que fui quando escrevi. As discussões com meu avô não tive, mas tive elas comigo. Fiz as hipóteses, fiz os testes para comprová-las, e acho hoje que tive sucesso num caminho em que poucos concordaram comigo de partida. Fiz minha carreira na escrita como falei que faria, segui escrevendo como disse que era minha vontade de vida fazer. Além de publicar Verde Verdade, em 2023 eu escrevi dois livros novos. Tenho mais livros em andamento e planos futuros para um possível doutorado, depois de ter concluído meu mestrado em Comunicação em 2022.

Um dos livros que fiz em 2023 repetiu algo que não fazia desde 2013: foi escrito para dar de presente a alguém em particular. No caso, este de 2023 foi escrito para dar de presente à minha companheira Jaqueline, como uma metáfora intrincada de tudo que passamos nesses anos. Como no caso do Verde Verdade lá atrás, esse livro também terá duas experiências diferentes de leitura: uma do “leitor leigo”, aquele desavisado dos contextos dos quais me aproveito; outro da pessoa a quem o livro foi feito como um presente muito pessoal. E dessa vez, imagino, a pessoa a quem o livro foi dado terminará a leitura.

Ainda penso muito no que meu avô diria se ele estivesse aqui.

Se estivesse aqui para ver o lançamento dos livros, para ver o que aconteceu com a família, que hoje está mais estabilizada do que jamais esteve após do pior período de tempestades que já passou (nesse texto não contei nem um décimo do que realmente houve de gravíssimo), para ver como prossegui nos estudos e nas leituras. Penso hoje em ter filhos e penso no que ele diria a respeito.

Penso também no que ele poderia ter vivido. Hoje sei que ele pretendia passar mais tempo em São Paulo, morando no apartamento da Frei Caneca. Isso teria nos permitido manter uma proximidade inédita, algo que nunca tínhamos vivido antes, num período em que certamente teríamos muito a trocar. Penso em quantas viagens e momentos felizes pelo mundo ele não deixou de viver com sua segunda esposa, o mais feliz e saudável dos relacionamentos que ele conseguiu estabelecer só em seus últimos anos, após uma vida que foi sofrida e complexa no casamento com minha avó. Nesse sentido, a história dele sempre me inspira esperança. Foi alguém que viveu uma vida difícil e que se reinventou já depois dos cinquenta anos para reencontrar felicidade, reconstruir-se como pessoa e viver seus melhores momentos depois de todos os desafios, ainda mantendo uma leveza profunda e sem se render ao amargor que suas condições muitas vezes trágicas e precárias teriam permitido.

Nos meus momentos mais complicados durante essa década, e olha que os momentos complicados foram vários, eu consegui manter uma convicção no que queria ser e fazer, algo que se construiu em 2013 e só se intensificou com os resultados, mesmo quando lentos ou modestos, ao longo dos anos. Foi uma combinação de esperança, esforço e paciência que me fez passar pelos piores períodos. O Rodrigo de 18 anos acreditava que Verde Verdade era um ótimo livro, que eram corretos seus preceitos argumentativos por uma vida com responsabilidade, mas com mais qualidade de vida, e que aquele seria o início de uma jornada pessoal e espiritual de minha parte com as palavras. O Rodrigo de 28 anos confirmou tudo isso, com as ressalvas e complexidades nos asteriscos que carrega a vida adulta. Verde Verdade é bom, mas inacessível e polêmico; eram verdadeiros os meus preceitos pela vontade de viver em outro ambiente, mas ninguém na época acreditou em mim nesse tema, ou não havia viabilidade prática para que nada fosse feito, e eu tive que provar isso sozinho dos jeitos mais difíceis e precários; a jornada com as palavras se manteve e profissionalizou, mas envolveu a diluição de uma série de romantizações que o dia a dia mais prático e desiludido do trabalho profissional não permitem que um adulto mantenha.

Curiosamente, quem tem gostado mais de Verde Verdade, livro que escrevi mais novo, é o público um pouco mais velho, depois dos vinte e cinco pelo menos. Os mais jovens acham o livro muito lento e, em certas partes, pesado demais. Como meu outro livro publicado (o das terças-feiras) teve um bom retorno principalmente dos jovens, tenho agora dois livros publicados que por um lado demonstram mais de minha amplitude e versatilidade, enquanto por outro acabam gerando a seguinte situação: pode ser que quem leia um dos meus livros e me dê uma segunda chance pegando o próximo não goste tanto do que vai encontrar.

No momento em que escrevo isso, uma nova pessoa que não conheço parece estar lendo Verde Verdade. No Skoob, essa pessoa comentou “o cachorrinho não merecia isso, meu Deus”, imagino que comentando uma das cenas mais trágicas do livro, quando o cãozinho Viralata, que aparece durante a maior parte da história, é atropelado e Gabriel o enterra.

De volta ao Goodreads, outra das avaliações que recebi, muito positiva, dizia: “acho que não vou perdoar o Rodrigo tão cedo pelo que acabei de ler… me senti traída. (…) Você ama um personagem, depois você já não sabe mais o que sentir sobre cada um deles, é uma verdadeira confusão controlada, onde você percebe que está, o tempo todo, sendo “enganada” pelo autor e que, mais cedo ou mais tarde, ele vai despejar toda a verdade e, quando isso acontece, você não sabe nem como reagir (muito bom, de fato). Todos, até mesmo o menor dos figurantes, tem ideias complexas, histórias antigas, é quase como se você pudesse se sentar e passar uma tarde com cada personagem pra entender sua vida, de tão individuais e únicos que eles são.”

Esse é o review que mais gosto entre os que o livro recebeu até agora. A crítica ficou sendo a alguns erros de revisão que falta ainda que eu atualize o arquivo na Amazon para resolver (mais uma vez, ainda falta uma revisão a Verde Verdade, mesmo depois de dez anos e já publicado — o que me parece profundamente irônico).

A mulher de meu avô, que se tornou também a madrinha do meu casamento, leu o livro nessa oportunidade da publicação e gostou muito. Tive a oportunidade de conversar com ela, por ser a única pessoa que entende o contexto, sobre toda a ironia trágica que por anos me assombrou no fato de que dei esse livro ao meu avô pouco antes da morte dele, com uma narrativa que fingia ser de um autor mais inocente e romântico no começo, imagem esta que meu avô levou de mim portanto ao túmulo porque sua leitura ficou por aí.

Ela sempre preferiu enfatizar, e acho que é uma boa abordagem, que a leitura das cartas que enviei junto ao livro já tinham sido importantes ao meu avô por si só, o que me ajuda a me confortar um pouco. É também uma coincidência, dessa vez mais positiva, que eu tenha articulado como podia aos meus dezoito anos a gratidão que sentia por meu avô. Anos mais tarde, articulei mais profunda e poeticamente essa gratidão, mas infelizmente ele não estava mais lá para ler. Como era possível a mim em 2013, porém, fiz o meu melhor: nas cartas, no livro cheio de problemas que durante dez anos revisei e alguns erros ainda passaram, na minha vida cheia de viradas, decisões arriscadas e felicidades inesperadas.

Em 2024, pessoas que absolutamente não sei quem são estão lendo e tendo suas experiências com personagens, ideias e narrativas que eu desenvolvi mais de dez anos antes, quando entediado tentando escapar do cursinho e refletindo sobre como poderia me explicar melhor ao meu avô sobre minhas urgências e sonhos do período. Hoje, aquele menino de dezoito anos que fui é finalmente ouvido, embora quem leia costume imaginar que está lendo a voz do meu eu mais adulto. Foi uma árdua jornada, cheia de percalços, que me trouxe a algum novo lugar e que fez brotarem essas pequenas alegrias. O próximo passo disso tudo, como sempre esteve, por enquanto permanece como uma grande incógnita.

Ter finalmente publicado o Verde Verdade, tomando coragem até mesmo para fazer isso sozinho via autopublicação ao invés de perder mais tantos anos enrolando, me parece algo como um ato de rendimento, uma resignação amarga inclusive nas infinitas recusas e derrotas que sofreu o livro (e eu enquanto seu autor) até sua derradeira rejeição ao perder também o prêmio que motivou sua publicação numa específica data, local e formato. Ao mesmo tempo também carrega, de jeito um tanto quanto agridoce, algo de um suave poder e de uma forte leveza — porque depois de tudo isso o livro esta lá publicado, posto no mundo.

E para mim parece haver algo de muito poético e simétrico em como tudo isso se reuniu sob uma bonita rima sutil.

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