Anos Noventa

Rodrigo Goldacker
27 min readDec 18, 2019

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Detalhe de foto retirada daqui.

1.

Começou em noventa e oito.

Tenho muitas boas memórias daquela década e é, particularmente, minha preferida entre as décadas que vivi; aquele tempo teve momentos demais e a nostalgia que me traz só cresce cada vez que os dias idos se afastam mais.

Eu vivia nos moldes e dramas de um moleque de colegial qualquer. Acordava, tomava café e ia para a aula a pé, andando com preguiça por seis quarteirões. Passava minhas manhãs fingindo prestar atenção, conversando besteiras com meus três ou quatro amigos. Ia para casa, almoçava com minha mãe e minha avó na cozinha, assistíamos qualquer coisa numa televisãozinha. Passava as tardes lendo gibis do Spawn, do Homem-Aranha ou do Cable; via Chaves, MTV e novela; tentava assistir algo mais “adulto” algumas vezes nas madrugadas, com a mão no botão de volume do controle e preparada para, se necessário, mudar de canal. Ia dormir escutando rádio baixinho ou, às vezes, alguma fita que tinha comprado no centro. Nos fins de semana ou ficava em casa jogando Final Fantasy 7 no videogame, ou ia no shopping para assistir a algum filme com alguns amigos ou com minha família, ou então ficava no boteco da esquina jogando Street Fighter. Quando nada disso tudo servia, ia à locadora e perdia o resto das horas livres com uns filmes em VHS.

E isso se repetia. Tinha dezesseis anos e acreditava, como todos os outros da mesma idade, ser o único com um gosto sutilmente diferente, o único com paixões platônicas, o único com problemas familiares ou com dificuldades para socializar.

Na minha cabeça, tudo noventista parece alaranjado, ensolarado, quente. Todas as minhas memórias daquela década são vertidas em um filtro disso e mesmo as noites parecem dias, os invernos são verões, até os azuis se avermelham. É uma falsa impressão, eu sei, porque tanto antes quanto agora há sempre o frio, mas nenhum dia nublado me vem na cabeça quando penso nos anos noventa. Talvez, uma tarde de chuva violenta e torrencial de verão, daquelas que bagunçam o mundo, mas nada mais.

Era este o meu mundinho. Era esta minha visão, egocentrista e fechada, que me garantia que era o mais esperto, o mais talentoso, o mais bonito, e que somente minha timidez barrava meu sucesso em tudo, o futuro brilhante que teria. Acho que muitos bobos como fui pensam assim em dada época da vida. Ao menos sonhávamos. O tempo passa e a obsessão por se comparar ou competir parece para a maioria se transformar em uma vontade mais intimista, de conquistar para si, de suceder para a própria felicidade, independente dos feitos alheios.

Não é deste tempo maduro e desiludido, contudo, que aqui eu falo. É do drama e do horror, da experiência única e nunca antes vivida, incrivelmente dolorosa e de especial grandeza, de ser um suburbano adolescente de classe média, branco, nem muito feio nem muito bonito, medianamente inteligente, apenas ligeiramente tímido e com as mesmíssimas inseguranças que acometem a todos nesta idade. Sabemos as ironias problemáticas destas classificações, mas aqui se encerram as ressalvas sobre o quanto era ordinariamente privilegiado o protagonista e banal o cenário. Agora, mergulhemos nas minhas próprias verdades e vaidades daquela vida e época.

Pois então. Foi assim que eu, o cara com maior bom gosto e mais inteligente da escola (e um dos mais bonitos, mesmo que um pouco tímido), revoltei-me numa manhã qualquer, sentado no pátio, olhando para longe. Observava a garota mais bonita da escola, a mais bonita que já havia visto, a mais linda menina do mundo, e ela não fazia ideia de como eu a amava mais do que qualquer outro poderia ser capaz de amar. E me irritava vê-la de mãos dadas com um cara tão babaca e sem graça, tão idiota e burro, quanto o total desconhecido com quem ela estava.

E é assim que começa meu pequeno épico suburbano.

2.

Gastei muitas semanas olhando de longe antes de confessar o amor ao meu melhor amigo da época, um menino gordinho que ia jogar videogame comigo em casa, às vezes.

Ele riu e soprou ar pra fora num deboche autêntico que não conseguiu conter.

Ela é dois anos mais velha”, ele fez questão de me informar. Eu entendi o peso daquela informação e meus ombros desceram num desânimo. Minhas esperanças de que, talvez, ela também me notasse, que talvez também me amasse, que tivesse tanta timidez em vir a mim quanto eu tinha de ir até ela, tudo aquilo desligou, apagou por um instante. Não por serem expectativas absurdas, isso eu não entendia na época, mas por ela ser dois anos mais velha.

Mas se acendeu novamente logo. Desenhava seus cachos morenos nos rodapés do caderno; escrevia poemas ruins sobre seus olhos castanhos em folhas que guardava como segredos estatais; via seu corpo dançando, suas bochechas corando, sua voz cantando os hits de rock que eu escutava. Criei tapes com playlists melosas que tencionava mandar-lhe em segredo, formulei cartas longas com declarações vergonhosas que, felizmente, nunca enviei.

Era o maior amor de todos. Ela era a mais bela garota, perfeita em tudo, nos seus jeitos e no seu sorriso, a mulher que nunca antes existiu, a única com quem podia ser feliz. Eu nunca amaria alguém novamente, nunca tanto quanto ela, e conquistá-la era minha única chance de ter uma vida plena e de algum dia ser verdadeiramente completo.

Era ridículo e platônico, idealizado demais, e ainda assim, enquanto mergulhava nessa fantasia íntima, seguia gastando mais tantas tardes jogando videogame com um amigo daqui, outras fazendo trabalhos escolares com outro amigo acolá, e outras tantas mais lendo gibis na banca sem pagar. Os dias vinham e iam, ainda quentes e laranjas, e meu mundinho não mudara tanto quanto eu acreditava que havia mudado. Eu ainda bisbilhotava revistas pornôs em sebos, ainda via desenhos animados e ainda conversava sobre besteiras. Ainda almoçava com minha mãe todo dia e ela ainda lavava minhas cuecas.

Eu ainda era um adolescente qualquer, perdido no meu próprio ego, vivendo sem entender os sentidos e significados maiores, preso em meu mundinho que não era muito maior do que alguns quarteirões.

Mas um dia saí disto, sem que fosse meu o mérito. Recebi uma detenção por não entregar um dever importante e por me dispersar muito nas aulas. Era coisa simples. Levei algumas broncas de minha mãe, mas nada especialmente terrível. Na tarde de sexta-feira lá estava eu, sentado com mais oito numa sala da escola, escrevendo um relatório inútil sobre qualquer coisa. Um rapaz chegou atrasado e fiz uma careta de desgosto ao perceber que era o mesmo idiota que rondava a garota dos meus sonhos.

Ele sentou ao meu lado. Era alto, tinha os dentes um pouco tortos e amarelados, usava uma calça jeans surrada e uma camiseta grande demais. Tinha cabelo longo, oleoso e desgrenhado, e calçava all-stars surrados. Olhei com todo o desprezo e, em resposta, ele sorriu e se esticou para ver o que eu escrevia. Riu baixinho, começou a copiar meu texto na folha única e amassada que tirara do bolso. Na saída, foi ao meu lado sorrindo e me perguntou o que eu tinha feito para estar lá.

Ao responder atravessado, ele riu e me chamou de “rebelde”. Gostei tanto do elogio que pela primeira vez ri de algo dito por meu futuro melhor amigo.

3.

A amizade que criara me presenteou com certo orgulho.

Senti-me popular e diferenciado por andar com um garoto dois anos mais velho. Ia até sua sala conversar com ele e logo fiquei conhecido por seu círculo social, todo formado de gente mais velha também.

Sendo mais velhos, eram mais tudo. Mais legais, engraçados e inteligentes, mais interessantes, tinham gostos melhores. Por estas qualidades todas, relevava quando caçoavam de mim ou faziam qualquer brincadeira que me ofendesse. Meus colegas de classe me olhavam diferente agora. Alguns, admirados, tentavam me usar como ponte para suas próprias ascensões sociais no ambiente escolar. Outros, enciumados, encaravam-me atravessados e ranzinzas, afastando-se.

Meu antigo amigo a quem primeiro confessara meu amor pertenceu a este segundo grupo e menos este frequentava minha casa quanto mais os garotos mais velhos o faziam. Os desconhecidos novos amigos que eu tinha feito o intimidavam. Um amigo descendente de japoneses, por outro lado, era do primeiro tipo e se aproveitou de mim para tentar vencer sua própria timidez e conquistar algumas amizades novas. No início eu me incomodei com ambas estas reações, mas finalmente as aceitei e compreendi, lidando com as duas. Permitia ao meu amigo estar comigo quando este tentou entrar em meu novo mundo tanto quanto insistia em tentar me manter amigo do outro rapaz que se afastava, relevando seu distanciamento.

Mas estes eram todos secundários naquela época. Eu passava a maior parte do tempo com Theo, aquele que antes eu tinha odiado por roubar a garota da minha vida e meu único amor. Na época, ele tentava forçar como seu apelido o nome do vocalista de uma banda grunge, por um puro capricho idiota de rebeldia adolescente, mas ninguém, absolutamente ninguém, ligava para isto ou o chamava como pedia para ser chamado.

Íamos juntos à feira comer pastel, à praça para jogar baralho, ao boteco para perder tempo com pebolim. Cabulávamos aulas para falar de bandas, trocávamos CDs de jogos, escrevíamos nossos nomes em todas as lousas de todas as salas. Junto com outros amigos, gastávamos tardes no cinema reassistindo o mesmo filme em muitas sessões e sendo xingados por conversar alto nas fileiras do fundo da sala escura.

Com ele, fui para minha primeira festa, bebi meus primeiros goles de álcool, fumei cigarros sem tragar. Dele ganhei minha primeira Playboy e junto dele fechei o jogo Alundra em uma tarde qualquer, usando uma revista de detonados toda rasgada que pegamos emprestada. Fomos para a detenção algumas outras vezes juntos, pulamos o muro da escola algumas outras vezes mais. Xingamos músicas juntos, desenhamos caveiras e cenas de batalhas nos cadernos estufados um do outro. Fomos juntos comprar roupas de flanela e juntos nós destruímos algumas calças jeans, como também rasgamos as mangas de nossos uniformes escolares. Quisemos montar uma banda, mas nenhum dos dois tocava qualquer coisa. Quisemos fazer uma história em quadrinhos, mas nenhum dos dois desenhava suficientemente bem. Quisemos montar festas e eventos, mas nenhum dos dois dispunha de dinheiro, ou de um lugar. Quisemos criar um clube secreto, mas todos os nossos amigos acharam a ideia idiota. Contudo, juntos íamos. Queríamos tantas coisas por pura felicidade de querer juntos.

E não me incomodava em vê-lo com a garota que amava platonicamente, embora evitasse estar com ele nestes momentos. Intimidava-me a presença dela e era incapaz de falar quando estávamos próximos. Ela era linda demais para que eu chegasse perto.

Theo me atestou em certo dia que uma menina de minha sala, Nathalia, parecia gostar de mim. Eu nunca notara, ignorava ela por completo. Era bonita até, era até legal, mas não era a garota da minha vida, meu único e grande amor, a mais bela das coisas vivas, não era minha morena dois anos mais velha que eu admirava de longe já há tantos meses.

Era só Nathalia. Contudo, ela era suficiente para Theo e, aparentemente, por consequência devia ser suficiente para mim também. Após meu amigo gastar num intervalo alguns minutos para convencê-la, fomos de mãos dadas para um canto do pátio onde, sem muitas palavras ou romantismos, demos ambos nosso primeiro beijo atrapalhado.

Theo e o amor da minha vida olhavam de longe, rindo baixinho.

4.

Meu primeiro namoro durou precisamente uma semana e foi extremamente chato.

Nathalia me arrastava nos intervalos de mãos dadas, tentando conversar. Eu não tinha assuntos com a garota e sua presença me incomodava, dificultando em minhas autocensuras bobas as conversas idiotas que eu antes tinha com todos os meus amigos.

Da mesma forma, tinha que me controlar em sua presença para não encarar o amor de minha vida quando esta desfilava pela escola.

Theo me incentivou no começo. Disse para que a levasse no cinema. Na sexta-feira logo após a terça em que nos beijamos, assim o fiz. Eu estava gostando do filme que fomos assistir enquanto Nathalia, emburrada, bufava esperando que eu a beijasse outra vez. Quando próximo do fim, juntei minha mão à dela. Somente quando os créditos desceram que virei e a beijei.

No sábado, Nathalia me arrastou novamente para o shopping com ela, onde sofri durante intermináveis três horas enquanto ela escolhia roupas. Os beijinhos que demos no ponto de ônibus depois disto não me pareceram compensação suficiente pelas horas de diversão com meu videogame que havia perdido naquela tarde. Na segunda-feira, ela me deu uma carta romântica, com um poemazinho fofo e uns versos de música, tudo escrito em letras redondinhas e com coraçõezinhos no lugar dos pontos nos is. Pediu-me que escrevesse algo em retorno para levar no dia seguinte. Beijei-a pela última vez, meio sem jeito pela carta que recebera de presente. Na terça, cheguei sem carta, sem amor e sem paciência e assim desfiz com curtas palavras nosso relacionamento. Ela lacrimejou um pouco, passou alguns meses sem olhar na minha cara, mas o tempo tudo cura e logo mais ela estava bem e com outro menino melhor, mais maduro e emocionalmente disponível do que eu era.

Mas naquela semana, quando relatei o fim do estranho e ligeiro namoro para Theo enquanto jogávamos Mortal Kombat, ele riu e bateu palmas. Achei a reação estranha e quis saber o que meu amigo mais velho entendia sobre relacionamentos. Gaguejei-lhe a pergunta, lembrando de súbito da minha amada e me forçando num agudo falsamente casual, ao que ele respondeu simplesmente:

Não sei nada. Nunca namorei.

Abri a boca tamanha minha surpresa. Então ri incrédulo, ao que ele me confirmou novamente. Pela primeira vez desde que nos tornamos amigos, havíamos chegado àquele assunto que tanto eu sempre desejara e paradoxalmente evitara abordar. Sentia a relevância de cada ato que encenava para tentar me passar despercebido tanto quanto para descobrir o que queria.

Como assim? E aquela garota morena que está sempre com você?” eu quis saber, tentando ao máximo desmerecer e aparentar descaso quando citei a minha grande paixão. Theo virou os olhos, concentrou-se na tela do jogo. Um instante de silêncio que me pareceu muito tenso cresceu, enquanto ele considerava e eu ansiava a resposta.

Nada. Sou só amigo da Julia”, ele respondeu. Mal sabia o estrago que fizera ao dar-me aquele alento, ilusão e o nome da minha pretendente. Meus poemas e rimas cresceram em quantidade gritante nos dias seguintes, tanto quanto as letras cantadas mentalmente referindo-se ao recém-descoberto título de minha amada Julia. Julia, Julia, Julia, a garota mais bonita do mundo, Julia, Julia, Julia, o único amor de minha vida. Julia.

Ah, só para saber”, na hora respondi para Theo, que me encarou com o canto do olho, desconfiado. Venceu-me na luta de Mortal Kombat e me pagou um guaraná logo depois. Perdemos o assunto entre outros temas mais mundanos enquanto caminhávamos na calçada quente.

Outro dia alaranjado terminava quando me despedi de meu amigo no portão de casa. Parecia-me ter sido o dia mais importante de todos.

5.

Gostaria de dedicar um espaço para destacar o quanto eu me sentia abençoado naqueles dias.

Era amigo de Theo, o que para mim significava ser amigo do rapaz mais legal do mundo. Era querido na sala por quase todos os meus colegas e, fora as detenções e faltas, ia bem de notas e na escola em geral. Minha mãe me amava e se agradava em me ver com amigos e com minha vida própria aos poucos deslanchando. Tinha dado meu primeiro beijo, livrando-me daquela pendência que assombra todo jovem, sentindo-me enfim liberto, aliviado por isso, como se tivesse conquistado o status de “normal” apenas depois do ato. E estava sempre próximo de Julia, cada vez mais próximo.

Dito isto, para estabelecer a satisfação que permeava minhas semanas neste ponto da história, já seria compreensível uma razão para porque gastei, numa tarde de terça-feira de outubro daquele ano, duas horas dançando, gritando e cantando sozinho pelas ruas do bairro. Exceto que existia um motivo para esta explosão de euforia particular e este fora o novo “melhor dia da minha vida” até então, a data em que tive o prazer de, pela primeira vez, trocar palavras com a garota que amava.

Estava no intervalo conversando e rindo com Theo, ao que Julia se aproximou. Virei para me afastar, como de costume, mas quando já distante alguns passos meu amigo me chamou de volta. Julia, ao seu lado, me encarava sorrindo e curiosa. Theo me perguntou se eu sabia o nome de um tal fulano que cantava uma tal música e eu acenei a cabeça e respondi.

Isso mesmo!”, ele gritou, batendo palmas. Julia sorriu e me agradeceu por lembrar.

Dei uma risada abobada, gaguejei ao responder um simples “não é nada”. Theo me abraçou e passamos cinco minutos juntos, os três, falando de qualquer bobagem, ao que o sinal tocou e Theo correu para o banheiro antes de ir para a sala. Acompanhei Julia lentamente, mal contendo minha extrema alegria, até a porta da sala dela, conversando sobre música e rindo das coisas estranhas de Theo. Ela me encarou no fundo da alma por um único instante, em que o mundo todo se travou e calou para que eu pudesse viver aquela troca de olhares, e despediu-se com um aceno ligeiro, entrando para sua aula.

Fiquei apoiado contra a parede do corredor, olhando o teto e sorrindo feito bobo por mais alguns minutos, ao que Theo me surpreendeu chegando e batendo no meu ombro, sorrindo. Menti que ficara lá esperando que ele voltasse e ele perguntou se queria cabular. Disse que não podia, ele se enfezou e foi para sua aula. Vaguei então para minha própria sala, tropeçando e ziguezagueando no caminho. Fui repreendido pela professora por chegar atrasado. Meu antigo amigo confidente riu de mim e, tendo me visto com Julia no intervalo, não teve dificuldades em entender porque eu flutuava e me perdia na minha própria cabeça durante o resto do dia.

Naquele tarde cheguei em casa ainda ofegante, suado, olhos brilhando e com um sorriso de orelha a orelha. Minha mãe olhou para mim e me decifrou num veloz instante, mas esquentou o almoço sem fazer perguntas. Apenas de noite, quando já ia me deitar, ela riu e perguntou:

Vou conhecer logo quem deixou você assim hoje?”

Desconversei, fingindo não entender, mas ao tentar adormecer, ainda sorrindo, explodiu na minha cabeça a cena, montada tal peça e perfeitamente encenada, de um dia, naquela ilusão não muito distante, no qual apresentaria Julia para minha família como minha namorada.

6.

Era o último dia de aulas do ano letivo antes dos longos dois meses de férias.

Foi também, mais uma vez, o dia mais feliz da minha vida, superando o anterior e aquele antes deste.

Recebi meu boletim assim que cheguei à sala e descobri que havia passado em tudo, sem problemas. Por ser o último dia, não tivemos aulas e os professores gastaram seu tempo a corrigir provas e trabalhos, ouvindo choros daqueles que haviam ficado para recuperação.

Livre disso tudo, gastei as três primeiras horas na escola com meus dois amigos de sala e rimos bastante de muitas coisas bobas. Contamos o que faríamos nas férias e marcamos de sair algumas vezes. Descemos juntos para o intervalo, mas lá me afastei para ficar junto de Theo, meu melhor amigo, e de Julia, minha paixão platônica, o amor de minha vida, a menina dos meus sonhos, a mais bela mulher e, naquele ponto, já merecidamente digna do título de minha melhor amiga.

Em dois meses de convívio viramos o trio mais unido já visto. Junto de Theo e Julia passava incontáveis horas e juntos conversávamos de tudo que existe para se conversar quando se é um adolescente dos anos noventa. Acredito que, a cada dia que ia, Theo entendesse e desconfiasse mais e mais de meu afeto por Julia, enquanto minha intimidade com a garota crescia em pouco tempo o suficiente para se equiparar àquela que conquistara bem mais lentamente com ele. Contudo, sendo meu amigo, permanecia sem citar o assunto, apesar de alguns olhares, sorrisos e comentários significativos, e tenho a impressão de que ele se esforçava em criar situações em que eu e a menina ficássemos sós.

Só tenho agradecimentos para estas reações dele. Enquanto isso, meu amor aflorava mais e mais, cegando-me e afogando-me numa euforia absoluta, um deleite especial e único, com proporção suficiente para que eu desconfiasse da realidade da própria vida, como se só sonho pudesse conter tanta perfeição. Sentia-me prestes a explodir de animação e motivava-me a ir para o colégio todos os dias apenas pela promessa de lá encontrar e conversar com as duas pessoas que mais gostava no mundo.

Como amava Julia! Quantas fitas não gastei, quantas canetas não sequei, quantos cadernos não desperdicei em seu respeito! Quantas músicas não eram ela, quantos sóis não lhe dedicavam o calor e quantas linhas não me esforcei em tentar usar para representar a beleza de seu rosto. Por quantas noites não recapitulei os tons de sua voz melodiosa, quantos sonhos, em dormir ou acordados, não a tiveram como foco na minha mente. Quantos sorrisos não lhe abri, quantos abraços não lhe segurei. Por quantos dias, quantos minutos incríveis de alegrias, não a amei!

Nunca antes eu nem ninguém mais amara tanto. E naquele último dia de aula, em que passamos quatro horas juntos na escola e mais cinco horas da tarde numa praça, eu, Julia e Theo, eu ria para o mundo, agraciado, sem qualquer problema na vida, sem qualquer tristeza, somente esperanças e conversas idiotas, somente o céu alaranjado e as vozes animadas, somente as horas gastas contra a grama, os movimentos dos cabelos negros e os brilhos dos olhos castanhos mel, as brincadeiras e trocas de socozinhos com Theo, nossas musicas que juntos os três cantávamos.

Às seis, quando devíamos partir, suspirei um instante, fechei os olhos e entendi a plenitude daquela situação. Tomei-me a pausar outra vez o mundo e o tempo se curvou para permitir que eu gozasse perfeitamente daquele singelo momento único.

Vieram então as despedidas. E o mundo voltou a girar. Entristeci-me ao entender que nas férias veria menos Theo e Julia, mesmo com as promessas dos três de sairmos infinitas vezes durante o recesso. Somente três vezes nos dois próximos meses nos veríamos, porém, e esta ausência de ambos me custou muitas outras folhas e fitas perdidas.

7.

Nas férias, fomos um dia ao cinema.

Assistimos Titanic, eu pela terceira vez, Theo pela quinta. Apenas Julia não assistira ainda e, finalmente, o filme estava para sair de cartaz. Somente nós e três casais estavam na sala.

Eu e Theo, enjoadíssimos da história, apenas cantamos agudos a música tema enquanto fazíamos comentários sarcásticos de todo resto. Julia, desligada de nós, chorou algumas vezes durante a sessão.

Rimos dela, embora eu desejasse na verdade abraçá-la e acalentá-la. Quando saímos da sala, com Julia ainda de olhos úmidos e limpando os rios de suas bochechas vermelhas, ela riu e nos bateu levemente, xingando baixinho. Abraçamo-nos os três, num calado pedido de desculpas, e então passamos a rir enquanto andávamos. Ficamos por horas sentados numa mesinha da praça de alimentação comentando do filme e de tanto mais, dizendo de nossas saudades e de nossas férias com tanto tempo livre, gastando nossos momentos.

Fora isso, fomos numa festa no condomínio de um rapaz da sala de Theo e Julia. Lá, nada mais de significativo aconteceu além de Theo, bêbado, ser carregado por mim de volta para casa. Quando nos vimos na terceira vez, numa tarde que passamos jogando videogame na casa de Theo, rimos e fizemos graça da embriaguez de meu amigo, ao que ele jogou os braços para o alto para imitar o estado em que teve que ser carregado, desculpando-se na sequência e então agradecendo por nosso auxílio.

Minhas aulas voltaram finalmente, mas Julia e Theo estavam formados, fazendo cursinho à dois quarteirões e distância. Visitava-os todo dia, ou eles iam ao colégio me ver, contudo não era suficiente e me vi um tanto deprimido, invejoso e enciumado do tempo em que não estava com os dois. Fui à festa de formatura e não consegui sorrir quando ambos receberam seus diplomas. Estremeci um pouco, temendo perdê-los.

Mas a nossa amizade e convívio, fora das minhas estúpidas preocupações, seguia forte tal sempre fora. Ainda nos esforçávamos em diariamente estarmos juntos e, mesmo quando os dois estavam estudando com suas pesadas apostilas de vestibulandos, eu me sentava junto deles, por horas, lendo gibis e auxiliando naquilo que podia, satisfeito apenas por ter suas companhias.

Talvez por falta de estudarmos juntos, foi nesta época que os dois passaram a frequentar muito, mais e mais, a minha casa. Ao ponto de almoçarem lá, de terem coisas suas guardadas no meu quarto e de, finalmente, passarem lá também algumas noites. Minha mãe não se importava. Gostava de Theo, apesar de uma ligeira desaprovação aos seus modos e exageros etílicos, e adorava Julia, que virou algo como sua segunda filha.

E os meses passavam. Estudávamos, conversávamos, cantávamos, filhos de nossas vidas, presos em nossos mundinhos alaranjados e noventistas. Criamos juntos mais histórias, espalhamos juntos algumas fofocas e nos segredamos algumas questões. Vimos juntos maratonas de seriados, estreias de filmes de verão e, sem nenhuma obrigação, os dois me acompanharam em uma peça de teatro obrigatória da escola, da qual nada absorvemos.

Vivíamos e, mais que isto, vivíamos juntos. Grudados, presos pelo convívio que, não mais forçado pelos dias de colégio, existia agora puramente por nossa vontade, por nosso desejo e vício em estarmos juntos. Completávamos as frases uns dos outros, conhecíamos os gostos e desgostos de cada um.

Somente minha ilusão adolescente poderia conceber que, dada tamanha intimidade, não fosse um assunto pairando e de ciência total entre todos aquele amor que eu ainda nutria e guardava por Julia.

8.

Aulas e mais aulas, dias e mais dias, conversas e mais conversas, canções e jogos, sóis laranjas e dias quentes, uns após os outros, e a primeira metade do ano rápida veio e veloz se foi.

Quando vinha o final daquele primeiro semestre, naquela velocidade cruel que apressa todos os bons tempos da vida, éramos já irmãos jurados, uma essência e alma dividida entre três corpos.

Viajei com minha família nas férias. Mandei dois postais durante minhas semanas de ausência para Theo e Julia que prendiam-se ainda em suas próprias casas, dedicados aos estudos intensos. Seus vestibulares estavam próximos. Recebi de volta cartas de ambos e, de Julia, também ganhei uma fita de músicas, esta fita que tanto ouvi ao ponto de decorar cada frase de cada música, esta fita com a qual dormi abraçado em algumas noites.

E então voltei. No agosto sem feriados, mais semanas se passaram e o silêncio crescia enquanto os dois caíam em seus livros. Eu ria de seus esforços, tranquilo por ainda ter mais um ano e meio de minha vida simples de colegial, mas tentava não atrapalhá-los tanto enquanto estudavam. Nesta época, um tanto carente, me reaproximei de meus amigos de colégio e até de Nathalia, que nesta altura já me perdoara e estava namorando outro.

Gostava de ver Julia estudar. Ficava perdido em suas caretas e sorria quando ela coçava os longos cabelos ou mordiscava a ponta dos lápis, quando folheava veloz procurando algo ou quando se distraía girando o apontador na mesa. Enquanto fingia estudar também, eu me entretinha preenchendo folhas e mais folhas de caderno a escrever o nome de minha amada e desenhando mil versões da menina em seus esforços estudiosos, mil versões de seu belo rosto concentrado, desafiado, belo em tudo, a ler ou calcular, a escrever ou apagar.

E foi por culpa disto que Theo teve então uma confirmação final deste meu sentimento. Certo dia, arrancou-me o caderno da mão enquanto eu desenhava, perguntando o que eu tanto escrevia. Tentei tomar de volta, mas ele saiu correndo pela praça onde estávamos. Julia, concentrada, continuou sentada escrevendo enquanto eu desesperadamente ia atrás de meu amigo e de meu caderno. Quando o alcancei, ele folheava as sequências de dezenas e mais dezenas de Julias feitas contra as folhas.

Arranquei o caderno de sua mão. Ele sorria irônico, debochado. Nada disse, apenas o encarei irritado por alguns tensos segundos. Foi ele quem quebrou o silêncio ao sarcástico elogiar:

Belos desenhos, artista.

Abaixei o rosto, ruborizado, encarando meus próprios pés. Minha mão suava e tremia um pouco; apertei a capa do caderno.

Não é nada”, menti. Theo soltou ar num riso de descrédito absoluto, depois sorriu simpático e se aproximou me tocando o ombro.

Já era meio que óbvio”, contou, sua expressão tornando-se séria. Eu levantei o rosto e encarei de volta, acenando a cabeça em negativas para o que ele dizia. “Qual é, eu já desconfiava faz um tempão”, Theo insistiu, para acabar com minhas tentativas de negar.

Olhei para Julia, que lá longe ainda estava enfiada entre os livros.

Será que ela também percebeu?”, perguntei com a voz baixa, num quase muxoxo, pedinte e inseguro, absolutamente entristecido.

Theo riu.

Bom, definitivamente ela gosta bastante de você, pelo menos disso eu tenho certeza”, ele garantiu. Sorri de volta para isto e, abraçados, voltamos para a presença da menina sobre a qual até então estávamos falando.

Por que demoraram?”, ela quis saber. Theo e eu nos entreolhamos, nada dissemos e nos sentamos de novo, sem mencionar qualquer coisa.

9.

O segredo compartilhado se resguardou por mais tantas e tantas semanas sem ser jamais mencionado.

Theo me respeitava e exceto algumas olhadelas e sorrisos, resistia em não me maltratar sobre aquilo; ou ao menos assim foi no começo. Por certo tempo, seguimos nossa vida como se nada demais estivesse acontecendo.

Quem te vê passar assim por mim, não sabe o que é sofrer.

Foi com esta música boba, em moda na época, que a zona de conforto ruiu. Theo, certo dia, ao escutar isso no rádio, virou-se para Julia, abraçou-a junto a mim e, enquanto lentamente nos empurrava um ao outro, cantando e sorrindo, virou a cabeça, ora a olhar-me, ora a olhar a garota, dando muito mais significado e interpretação aos versos do que o necessário para passar a mensagem.

Julia e eu rimos amarelo. Desvencilhei-me, aterrorizado pela vergonha, e virei o rosto para olhar, não o rosto mais belo do mundo logo à minha frente, que ainda receoso me entreolhava, nem ao meu melhor amigo ao meu lado, mas para a grama. Somente aquilo naquele instante era merecedor do meu olhar e atenção, somente aquilo eu podia encarar, somente a grama. Julia riu e se virou, coçando a nuca sem jeito, e partiu de volta para seus estudos.

Depois, fulminei em um instante de ódio Theo, retomando por um segundo todo o desgosto por ele que tivera ao vê-lo pela primeira vez, garantindo mentalmente uma vingança apropriada. Mas este apenas ria, abobado, livre e leve, vendo graça no desconforto do casal que tentava formar.

Os dias seguintes foram estranhos e nós nos perdemos naquele desconforto. Gagueiras, frases pela metade e olhadelas rápidas, risos curtos e mãos se beliscando. E a grama que, nos piores momentos, permitia-me o olhar e assim me salvava de olhar a beleza estonteante da menina à minha frente. Julia, como eu a amava. E ela nunca me amaria de volta. Éramos apenas amigos e meu sofrimento era o maior que já existira. Meu conhecimento de que ela já sabia de meu afeto era meu maior desagrado. Cheguei a considerar afastar-me dos dois, dado o horror daqueles dias, mas era dependente demais tanto da amizade quanto do amor para poder fazê-lo de fato.

Piorando, Theo, numa sádica forma, forçava mais que nunca, como jamais antes, momentos em que Julia e eu ficássemos sozinhos. Seu prazer aumentava a cada dia em que observava a tensão que entre nós crescia. Torturar-me na minha invencível timidez parecia trazer o maior dos deleites para meu melhor amigo.

E os vestibulares vieram. Por uma semana praticamente não conversamos, enquanto os dois se esvaíam nos preparativos finais. E então as provas passaram e, com suspiros de alívio e abraços, estávamos livres outra vez. Eu, que já tinha notas satisfatórias o suficiente para passar de ano, faltei e cabulei várias vezes para, junto dos dois, ficarmos andando pelos quarteirões do subúrbio, descobrindo as calçadas sempre iguais dos bairros residenciais, perdendo-nos em horas gastas nos degraus de alguma via.

Theo, agora feliz como nunca antes fora, cambaleava bêbado já nas manhãs, carregando garrafas puras de coisas ruins que dividia em golinhos conosco. Julia bebia pouco e eu menos ainda. Temia muito o que poderia fazer se embriagado e entendia muito bem as razões para que meu amigo tanto tentasse me tirar da sobriedade.

Um dia, entretanto, ele conseguiu vencer-me nesta disputa velada. Ao me garantir numa mentira que tomar tequila era “tranquilo”, fez com que eu virasse num boteco três copinhos do líquido. Julia tomou também, mas só dois golinhos.

Pela primeira vez na vida eu estava bêbado, junto da garota que amava platonicamente já há mais de um ano e de meu melhor amigo, este sendo um dos dois únicos conhecedores deste amor e então obcecado em tornar-se cupido.

10.

Foi bêbado que me declarei. Foi bêbada que Julia escutou-me atentamente.

Gostaria de dizer que bêbados nos beijamos ali, mas foi apenas um abraço cambaleante que se seguiu, ao que andamos em um silêncio absoluto observando Theo, logo à frente, saltitar pelas vielas.

Julia pareceu apenas ignorar meu amor, tanto no resto daquele dia, no qual ficamos a conversar e rir enquanto andávamos, quanto nos dias seguintes. Não citei mais o assunto e Theo, que escutara minha declaração, também cessou sua insistência. Fingimos que nada acontecera. Ainda éramos amigos, amigos apenas, grandes amigos.

Então saíram os resultados dos vestibulares, na mesma semana em que acabou meu ano letivo. Theo e Julia tinham passado nos cursos que desejavam, na mesma faculdade, e seguiriam juntos para lá no próximo ano. Ao me verem naquela tarde e contarem as novidades, ambos aos gritos de alegria, eu lhes sorri de volta, animado. Theo pulou em mim, gritando e me dando socos nos ombros, absolutamente tomado. Julia aproximou-se. Seu sorriso, até então todo aberto, travou e desceu enquanto, ofegante, ela levantou o rosto a me encarar com brilhoso olhar. Theo se calara e, graças às dádivas misteriosas, parecia ter simplesmente sumido, tanto quanto o mundo, uma vez mais, tinha me presenteado com o cessar de seus giros.

Julia então me abraçou. Então a olhei. Ela olhou de volta. Então passei meus braços contra sua cintura. Suspiramos juntos. Então os olhos se fecharam e as cabeças lentamente viraram-se e desceram, os lábios semiabertos caminhando para se colidirem. No momento mais longo de todos, no instante em que tudo parou para dignificar nossa junção, naquele preciso e precioso segundo, que jamais será superado, foi. Julia me beijou e a beijei de volta. Estávamos lá, selados. Nada mais, apenas nosso beijo que durou eternos poucos segundos. Afastamo-nos, sem nada dizer, ao que Theo, que brotara de volta com todo o resto da realidade, deu um urro de contentamento.

O laranja do ensolarado dia, o dia daquele beijo, cravou-se em mim a trazer sorrisos até agora, enquanto isto aqui escrevo. A simples lembrança me estremece, a magnificência de nosso simples ato de lábios, de mais um casalzinho adolescente suburbano, isso me fazia invencível, detentor da maior alegria já sentida, do mais explícito e inocentemente puro dos prazeres, aquele do amor correspondido.

Como tudo nas épocas, o beijo já me garantia tanto mais do que por si só significava. O beijo era amor, era uma vida passada juntos, era um namoro que viria e os nomes dos filhos a escolher, era a apresentação de minha namorada à minha família e nossas mãozinhas enrugadas, juntas, balançando com nossos corpos mancos nas velhices futuras. O beijo era a promessa de um perfeito e idealizado mundo, de uma existência especial.

Mas era só um beijo e suas promessas eram iludidas. De fato, não foi o único beijo que partilhei com Julia e nos amamos por outras semanas e alguns meses mais, que viraram um semestre, depois dois. Mas cessou em dado instante, talvez, com a magia noventista. Ao virar o século, acabou nosso amor. Julia, agora na faculdade, tinha outros interesses. Eu, que do meu amor platônico me vira em um relacionamento simplesmente real, também já me gastava em outras vontades e desejos.

Passamos o ano-novo da virada juntos, entretanto, e se descrevi tanto nosso primeiro beijo da melhor década de todas, seria justo também que narrasse o último. Em uma sacada, juntos, gastamos a última tarde daquele milênio abraçados, sorrindo e nos amando, rindo e bebendo. Theo também estava lá, conosco a se agraciar de nosso tempo partilhado, a relembrar do tanto já ido entre os três.

Julia e eu nos beijamos quando a contagem regressiva começou. Dez, nove, oito. Lábios selados, colados num amor único e acalorado, alaranjado como os olhos mel de minha amada, nossas mãos sentindo os corpos um do outro. Sete, seis, cinco. Pela última vez, estávamos lá nos anos noventa. Tanto a amava, tanto amava Julia; ela me amara em alguma quantia também e justificávamos isto por estarmos juntos. Quatro, três, dois. Um beijo, final beijo daquele tempo, que durou para sempre no último capricho do tempo em nos apressar, nos dez segundos que para sempre duraram nas minhas memórias. Um. E Julia, e eu, e nosso amor. Zero.

11.

Todo o resto pouco importa.

Nada mais se passou de relevante e o esmigalhar de nosso amor, nosso subsequente afastamento e as vidas que se seguiram não pertencem a este relato.

Revi Theo e Julia ainda muitas vezes mais e, muitíssimo ocasionalmente, acontece ainda de até hoje nos reunirmos. Superamos mágoas e caminhamos em nossas vidas. Mesmo muito distantes a amizade perdura, de certa forma, com seus cheiros de nostalgia.

Mas encerro isto com mais do que só isso. Talvez um sonho ou simplesmente uma mentira, mas é um específico cenário recorrente que me vem ao relembrar da época e que gostaria de trazer, de compartilhar.

Os anos noventa possuem uma personificação para mim, um lugar-feliz apenas e unicamente meu e daqueles que comigo partilharam daqueles dias.

Vejamos se sou capaz de descrevê-lo. Por um instante pedirei esforços imaginativos. Desculpo-me já pelos excessos.

Veja um fim de tarde e foque nos coloridos do céu, apenas. Não pense ainda em terra e nada que não nas nuvens sombreadas, os coloridos de fogo dos raios, a coloração de vermelho um tantinho desbotado do fundo, o bordô e a cor de sangue, o laranja bege e o laranja vivo, a mistura de tantos tons de uma mesma natureza. E pense também nisto tudo tomado por um silêncio pacífico, por um abafado agradável de umidade ligeira, por uma brisa pouco forte.

Então veja brotarem, feito mágica, dois prédios em construção contra este fundo de pintura. Não é possível ver o chão: talvez um chão nem mesmo exista. Apenas duas torres, esvaziadas e desertas, feitas de concreto e vidro. E nos últimos andares, aqueles ainda não concluídos, visualize guindastes, peças soltas, tijolos e terra, imagine os pilares sem paredes, o pó de cimento, as escadas mal acabadas e um elevador de corda balançando, gingando junto com os ventos. Não existe mais nada, nenhum mundo para fundar aquelas construções, que vão infinitamente para baixo contra os tons de céu laranja, e aqueles desconhecidos que sobem as novas alturas destes prédios agora estão ausentes, descansando sabe-se lá onde.

Mas existe alguém lá, sim. Talvez seja Theo, junto a mim, os dois balançando as pernas contra as bordas de um andar inacabado, sentindo a vertigem e conversando, rindo sozinhos e ecoando contra o nada, fazendo graça. Talvez sejamos eu, Theo e Julia, os três abraçados no último andar dali, sorridentes a ver o sol e o prédio oposto ao qual estivermos, cantando juntos, juntos para sempre. Talvez eu esteja sozinho, considerando e lembrando, perdido em minhas memórias, chorando ou rindo de carinhos passados. Talvez esteja Julia lá comigo, os dois apoiados contra um pilar de cimento puro, nos beijando outra vez, solitários contra as sombras, amantes finais de um cenário do passado, de uma foto que já foi.

Contudo, sei que alguém estará lá, sempre. E é isto que me traz a paz ao entender o que já foi, ao relembrar e fantasiar, ao gastar meus sonhos numa destas torres solitárias, sozinhas nos anos noventa, presas contra o pôr do sol que nunca desce e sendo elas mesmas prédios que nunca deixam de subir. Theo, Julia e eu, os únicos visitantes deste meu mundinho.

Pois é isso. E foi isso que foi. Cessa-se aqui esta história, absolutamente banal, que a tantos únicos outros deve ter sido semelhante. Pois esta é a maravilha do especial, que se encontra comum em contagiar a tantos. Fui apenas outro, apenas outro adolescente com meu mundinho que agora nestes prédios inacabados revisito sempre quando quero.

Mas isso foi, simplesmente, isso foi; tendo ido, não há de voltar, por mais que deseje. Perco-me então nestes relatos, com meus amigos e amores que no passado ainda vivem, correm, cantam e conversam, que ainda amam, abraçam e beijam, que ainda são.

Ainda estão, ainda estamos, todos os três e tantos outros mais, eternamente nos anos noventa.

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Rodrigo Goldacker
Rodrigo Goldacker

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