A única coragem possível ao homem
Sobre conformidade, rebeldia, autonomia e privilégio
Tive o privilégio de poder ser um adolescente rebelde.
Mesmo estudando na época numa escola particular luterana, aos doze anos eu já me autoproclamava ateu e meus cadernos eram todos daqueles com capas de discos do Iron Maiden. Desde minha pré-adolescência, deixei meus cabelos compridos várias vezes, passando da altura do ombro em algumas ocasiões, e também raspei a cabeça na zero quando me dava na telha. Eu podia sair pelas ruas com roupas tão fora de esquadro que nem de pijamas poderiam ser chamadas sem ofenderem à categoria dos pijamas. Desde adolescente fumei, bebi e usei drogas, podendo falar abertamente sobre isso. Eu tive opiniões controversas (e às vezes herméticas) sobre os mais diversos assuntos. Eu não fazia minhas lições de casa, cabulei aulas e encontrei caminhos pouco utilizados para me livrar de burocracias. Virei noites fora de casa, caminhando madrugada adentro, várias vezes bêbados, pelas ruas do centro de São Paulo.
Mas esse é menos um texto sobre minhas rebeldias em si e mais um texto sobre as consequências que minhas rebeldias tiveram.
E no caso, a consequência de qualquer ato rebelde meu foi costumeiramente mínima, isso quando não foi consequência nenhuma. Nunca levei um enquadro de policiais, nunca fui preso, nunca fui expurgado absolutamente dos ambientes institucionais (ambientes nos quais eu gostava de puxar a corda sempre que tinha alguma chance). É um texto, portanto, sobre o privilégio que tive, enquanto um rapaz branco cisgênero e heterossexual transitando entre níveis da classe média, de poder ser rebelde sem experimentar alguma violência ou consequência drástica a esta rebeldia. É sobre o privilégio de ser homem, num sentido mais abrangente, e mais especificamente sobre um dilema ético a respeito do que é possível fazer com esse privilégio, como construir alguma subjetividade partindo desse lugar.
É sobre a única força e coragem real que este estado privilegiado da masculinidade entrega ao homem, que é o estado de ser vulnerável, de não se conformar, nem se render ao caminho de menor resistência apesar de todos os engodos e prêmios que este caminho prometeria.
Vai ser uma ida para um pouco para além do raso, uma jornadinha construída sobretudo a partir das minhas visões e experiências particulares sobre o assunto, e esse é um texto que inclusive publico com alguma expectativa esperançosa de que se mantenha em certa obscuridade — porque a alternativa vai ser de desleituras e controvérsias. Estou plenamente ciente de que estou aqui tateando um território simbólico em guerra e, por mais que essa ambição minha talvez seja ingênua, torço para sair dessa minha aposta sem me sujar tanto de sangue.
Como sei que a realidade pode ser mais implacável do que qualquer expectativa minha, vou ser direto ao ponto dessa análise, porque julgo que ela é necessária, algo que minha perspectiva me permite articular de um jeitinho que acredito ser só meu e que considero também importante. Apesar das minhas ansiedades todas, dos meus medos de talvez ser atacado de todos os lados, também nisso serei rebelde e privilegiado ao ponto de me permitir lidar com as consequências (se elas vierem mesmo) só depois do feito.
Uma última tomada de ar para juntar forças e me preparar.
Vamos lá.
1. Nunca fui tão covarde e vulnerável quanto fui quando era bonito
Quero falar nesse texto falando sobre a covardia inerente em levantar pesos e ser gostoso. Mas para isso, quero antes usar de exemplo uma das transições mais importantes da minha vida, que aconteceu na passagem dos meus dezesseis para meus dezessete anos. Então tenham um pouco de paciência comigo enquanto revisito mais algumas dinâmicas da minha juventude.
Até meus dezesseis anos, eu vinha me desenvolvendo nessa rebeldia que mencionei como uma criatura absolutamente indomável, selvagem e livre de qualquer concessão. Eu era MUITO esquisito, em todos os sentidos possíveis. Eu era gordo, usava óculos sujos que não combinavam com meu rosto, vestia principalmente roupas de moletom e casacos pretos, beges ou marrons (mesmo quando fazia calor). Eu era bastante pálido, tinha aquelas penugens obscenamente feias do que começa a ser uma barba no rosto, uma sombrinha horrível de bigode. Meu sorriso era de dentes amarelos e todos tortos. E eu vinha sendo assim há alguns anos. Eu não era só outro nerd esquisito, eu era um nerd esquisito do tipo que destacava, que virava o alvo do bullying dos outros.
Eu vinha sendo assim já há anos, resistindo a qualquer mudança mínima que comprometesse minha estranheza. Era um ato de rebeldia pra mim ser assim, uma forma de mostrar que eu realmente não me importava nada com o que os outros pensariam. E era também um jeito ótimo de me manter protegido dos outros numa certa autossabotagem. Eu tinha uma família muito disfuncional que mal entendia quais eram as expectativas sociais, quanto menos como comunicá-las para mim. E eu tinha também muita autonomia/negligência, o que me permitia seguir como eu bem entendesse. Eu não entendia direito quais eram as expectativas da normalidade, porque a vida que eu tinha desde criança estava muito longe de ser o que se considera normal, e mesmo se eu entendesse provavelmente não seguiria essas expectativas porque eu era rebelde, teimoso e birrento.
Mas apesar de toda essa minha rebeldia, eu também era bastante inseguro e carente. Eu queria ser amado e validado. Queria me sentir bonito, queria que meninas me achassem atraente. E queria também que meus amigos adolescentes vissem que as meninas me achavam atraente. Dado que eu era muito mais tímido do que fingia ser, quanto mais bonito eu estivesse, maiores as esperanças eu teria de que alguma menina eventualmente chegasse em mim — o que me libertaria de ter que tomar alguma iniciativa semelhante.
E por isso os dezesseis marcaram um momento em que uma confluência de fatores me fez mudar. A começar, foi o ano em que eu restabeleci contato com meu pai biológico, que era (e é) um homem pragmático, alguém que costumeiramente assume as regras do jogo como critérios a se tentar obedecer sem criticá-los de qualquer maneira. Imagino o horror que meu pai, um homem extremamente vaidoso, deve ter sentido ao me conhecer quando fomos nos encontrar pela primeira vez no Shopping Eldorado. Ele encontrou a bagunça que eu era conforme descrito acima, roupas desbotadas de moletom, óculos, jeito todo introspectivo. E passou quase que instantaneamente a me pressionar no sentido das regras do jogo, de uma visão mais pragmática de como as expectativas sociais funcionam.
Além de me presentear com roupas novas, ele ia comigo escolher e escolhia o que fazia sentido com os gostos dele. Eram normalmente roupas de marca, porque meu pai tinha também uma condição financeira melhor do que aquela que eu tinha experimentado na minha família materna até então. Eu poderia escrever um texto inteiro sobre roupas e sobre as diferentes filosofias sobre isso que encontrei nas minha duas famílias. Mas um exemplo só já vai comunicar bem:
Quando conheci meu pai aos dezesseis anos, meu avô materno era ainda vivo. Até então era ele quem assumia a posição de pai na minha vida, apesar de fazê-lo à distância, morando em outro estado por questões de trabalho. Quando meu avô saía comigo para comprar roupas, a abordagem era muito diferente. Era mais funcional, pensando no que seria mais confortável ou apropriado para fazer exercícios. Numa perspectiva de saúde física, meu avô há anos já vinha me aconselhando (nunca exigindo, pois não era essa a abordagem dele) a fazer exercícios. Quando íamos comprar roupas, a abordagem dele era essa: o que é suficiente, o que é confortável, o que é bom para fazer exercícios. Comprávamos roupas em lojas como a Hering, a Adidas. E lembro especificamente do meu avô me dizendo uma vez que pagaria qualquer curso que eu quisesse fazer na vida, qualquer livro que eu quisesse ler, mas nunca me daria um tênis “de marca”. Na época em que ele me disse isso, lá nos idos de 2012 mais ou menos, lembro que ele estipulou até um valor do que seria visto por ele como absurdo: um tênis “que custasse mais do que quatrocentos reais”.
Eu gostava dessa visão do meu avô. Concordava com ela e me parecia correta. Refletia os valores do meu avô em que os resultados aparecem por um esforço intelectual (gastar com cursos, com livros) ao invés de aparecerem pela superficialidade de se conformar a certas expectativas de consumo (usar roupas de marca). Essa filosofia de vida era o que me fazia aos dezesseis anos ter uma profunda maturidade e autonomia a respeito das minhas ambições intelectuais, os caminhos que eu gostaria de viabilizar no meu futuro como carreiras possíveis. Era um foco em se “conformar” via disciplina, esforço nos estudos e excelência intelectual, sendo livre no resto todo. Já nessa época, porque meu avô era assim, eu podia ser mal vestido e esquisito enquanto já sabia que queria terminar trabalhando com escrita (como de fato vim a fazer).
A perspectiva do meu pai era o oposto absoluto. Ele era um homem muito consciente sobre sua imagem e a imagem dos outros. Porque ele era conservador desde dessa época (embora eu ainda não soubesse disso), meu pai era uma pessoa especialmente competente em identificar as regras do jogo social, saber exatamente como jogar com elas do jeito mais competente possível, para dessa maneira conquistar os efeitos que o beneficiassem. Quando meu pai se vestia bem e se perfumava, ele não tinha nenhuma perspectiva crítica a respeito das regras que adotava no que era “se vestir bem”, estar “bem apresentado”. Era uma abordagem funcionalista: se o que eu quero é passar uma boa imagem numa reunião de negócios, que esteja o quão pomposo puder estar, com a roupa de marca que for mais simbolicamente impressionante. E se quero passar uma boa imagem para mulheres, igualmente, que esteja tão adequado às expectativas sociais do que é um homem bonito e bem vestido quanto for possível.
Para mim, naquela minha adolescência rebelde vinda da tradição de um purismo idealista por parte do meu avô, essa nova perspectiva pé no chão foi chocante. Se meu avô até então urgia que eu cuidasse dos meus dentes porque isso “era uma questão de saúde”, meu pai era direto e reto ao dizer que eu precisava cuidar deles porque “era feio”.
Mas essa nova perspectiva era brutalmente eficiente, não só por causa do meu pai, mas porque eu estava particularmente vulnerável nessa época. Como disse, eu era um adolescente inseguro, carente e esquisito. Foi dramático o impacto que teve em mim meu pai ter aparecido, ter me ensinado as regras do jogo e inclusive financiado com seu dinheiro a minha adaptação a essas regras. Em um intervalo de alguns meses eu troquei os óculos por lentes de contato, as roupas esgarçadas de moletom por roupas de marca, e o ser gordo por emagrecer entrando numa academia. Meus cabelos compridos e em cortes sempre terríveis, que tinham me rendido o apelido um pouco irônico de “Beatle” entre meus amigos, deram lugar a cortes de cabelo mais curtinho, mais tradicionais, conforme o que se esperava de um menino da minha idade.
Naquele ano em que conheci meu pai, eu estava também no meu primeiro ano num colégio novo, tentando fazer novos amigos e também tentando me adequar no que fosse possível para talvez ter casinhos com garotas. Parte disso eu fazia e continuei fazendo com minha rebeldia indomável: uma coisa que muito me agradava mesmo quando eu tinha a aparência do nerd esquisito é que eu não me conformava direito a esse estereótipo no sentido em que eu era insano, inconsequente (e inclusive bêbado) mesmo quando era feio e esquisito — o que já me rendia alguma “boa fama” entre meus colegas adolescentes mesmo antes da minha repaginada no visual. Quando comecei a alinhar aquela minha selvageria nos comportamentos boêmios com uma submissão aos padrões estéticos, minha vida social explodiu. Meus dezessete e dezoito anos foram, de longe, a fase mais sociável da minha vida. Eu não parava quieto e intercalava a escola com ir à academia, às festinhas com amigos, rolêzinhos em praças, etc. E vivia assim, feliz e bem, quase todos os dias.
É simbólico que depois de ter começado a me submeter mais e mais às regras do jogo, as recompensas tenham vindo nesses contatos com meninas. Comecei a dar beijinhos eventualmente em garotas, a ter quase-casinhos quando dava. Muita coisa ainda era impraticável por causa das minhas próprias travas (comportamentais, de estranheza no momento em que eu abria a boca, de timidez), mas o os avanços eram evidentes. Eu ficava mais magro, vestido no padrãozinho “bonito” das roupas de marca que ganhava do meu pai, e começava a ser mais notado. Às vezes as meninas se atraíam por mim até que eu abrisse a boca e elas escutassem as absurdidades bizarras que eu articulava com meu esquisitíssimo senso de humor. Mas as aparências tinham mesmo seus benefícios.
Fiz também amigos nessa época que foram me ajudando. Lembro em particular de um, que era um loiro de olhos azuis que desde adolescente tinha essa visão prática da aparência: fazia academia e exercitava uma certa performance de masculinidade com meninas e foi com o tempo me ensinando a me portar nesses contextos que para mim eram assombrosos. Lembro de uma vez em particular que fomos juntos a um shopping e em que ele arranjou uma menina numa praça de alimentação que me achou bonito. Saímos eu e a menina andando pelo shopping, mas eu estava nervoso e agi de um jeito ansioso que fez com que ela desistisse rapidamente de mim: a embalagem era aceitável, mas o conteúdo estranho da minha timidez não foi. Voltamos a onde estava meu amigo em seguida sem termos feito o que se esperava que tivéssemos feito (dado uns beijinhos) e eu voltei pra casa naquela noite morrendo de vergonha.
Novos amigos, nova escola, novas roupas, novo corpo com academia, novo rosto sem óculos, novo corte de cabelo. Novo tom de pele, alaranjado de sol, que veio substituir a palidez porque deixei de virar madrugadas lendo e no computador em casa para passar tardes andando e lendo por parques de São Paulo. Até uma verruga peluda que eu tinha na lateral do rosto acabei tirando. Novo pai, com essa visão das regras do jogo, frente ao pai antigo que meu avô tinha sido com sua perspectiva menos pragmática.
Dos dezessete aos meus vinte e um anos, eu segui submisso e conformado às regras do jogo. Indo religiosamente à academia todos os dias, consegui me manter magro e às vezes fiquei até fortinho. A iniciativa (e o dinheiro) do meu pai foram revolucionando meu guarda-roupa. Por uma série de razões, só o que não arrumei foram os dentes, que seguiram sendo meu principal ponto fraco. Mas fora isso, dependendo do gosto dava para dizerem que eu era bonito. Ou que eu era aceitável.
Naqueles anos eu tive meus beijinhos de baladas, beijinhos em festas de rua. Algumas vezes meninas chegaram mesmo em mim, caminhando pela Augusta principalmente ou em festinhas, e eu adorava quando isso acontecia. Eu passei a usar Tinder e aplicativos semelhantes e minhas fotinhos seguindo as regras do jogo funcionavam para que eu saísse em encontros. Alguns eram terríveis, quando algumas das meninas notavam o quanto eu era esquisito no comportamento, mas outros funcionavam. Desse jeito e nessa época perdi também a virgindade e tive meus primeiros casos, que não chegavam a ser namoros porque eu mesmo fugia deles. As consequências que alguém espera ao se conformar às expectativas, ao se adequar aos normativo? Tive todas, exatamente como queria. E sabia que se continuasse me submetendo e adequando, se continuasse conformado, esses “resultados” continuariam vindo.
O que eu era, para além de egocêntrico, narcisista, considerado bonito num padrãozinho pouco criativo e relativamente bem sucedido na minha vidinha descolada de jovem? Eu era vulnerável, submisso, conformado e covarde. Minha performance toda era para tentar ser aceito, amado e suficiente para conquistar e atender aos critérios e expectativas do meu novo pai e sua família, dos meus novos amigos, das novas garotas com quem ia topando e com quem ia tentando me relacionar. O que a validação dos outros me entregava era concreto, resultados que eu precisava encontrar para me sentir viável e querido. Mas para conquistar isso tudo, fui me apagando numa performance cara (e esforçada) do que eu entendia como esperado de mim.
E agora vamos partir desse causo pessoal de minha vidinha para uma análise mais abrangente do que quero dizer com tudo isso.
2. Os benefícios concretos de se conformar e a fragilidade de ser um homem forte
Quando digo que eu era fraco e até um pouco covarde ao me conformar aos padrões de beleza para dar alguns beijinhos na boca, eu gostaria de desnudar essa afirmação de alguma crítica inerente que perceba como necessariamente negativa a vulnerabilidade, a fraqueza e covardia. O lugar de dita “força” que se consideraria na negação da conformidade nem sempre é desejável e nem sempre é possível. Pessoas são vulneráveis das mais diversas maneiras e, se queremos ou precisamos atingir certos resultados, a submissão às vezes é o único caminho que nos viabiliza.
Aos privilegiados, a conformidade constantemente oferece prêmios, enquanto no resto dos casos o que se oferecem são punições. Na maioria dos casos, minha posição privilegiada me permitiu ver a conformidade como uma escolha, algo que se eu não fizesse me deixaria estagnado sem atingir algum objetivo que eu gostaria de atingir, mas raras vezes na minha vida a conformidade foi uma questão de sobrevivência, de ser punido se eu não me conformasse.
Porque foram raras as vezes, quero citá-las uma a uma. Eu fui punido por não me conformar especialmente nas escolas particulares em que estudei na infância e na pré-adolescência, porque me viam como uma “criança problemática” e às vezes inclusive me contextualizavam e puniam em relação aos preconceitos que tinham com minha mãe, que era mãe solteira e bipolar (com crises diversas na minha infância até ser finalmente estabilizada). Esse lugar do “problemático da família disfuncional” foi a posição menos privilegiada em que estive e foi a que me fez sofrer as mais diretas retaliações, sobretudo o ostracismo social (dos alunos, dos pais dos alunos que às vezes exigiam dos filhos que se afastassem de mim, e até dos professores às vezes). Quando não me submeti nesse sentido, sei também que sofri retaliações sendo sabotado por professores conservadores que me reprovavam em certas matérias ou abaixavam minhas notas com base em critérios subjetivos que podiam facilmente distorcer como “nota de participação”. No colégio em que estive aos dezesseis e dezessete anos, embora não soubessem tão explicitamente da disfuncionalidade da minha família, meu jeito rebelde e boêmio também me levou a ser vítima dessas mesmas arbitrariedades de certos professores conservadores que hoje, como adulto, tenho certeza absoluta que às vezes me puniram com notas baixas. Lembro especificamente de uma professora de inglês que me reprovou numa matéria enquanto fez com que um colega meu passasse, sendo que tínhamos a mesma presença e as mesmíssimas notas. O critério de diferenciação foi a tal “nota de participação”, que permitia que ela deixasse passar quem ela gostava enquanto podia me dar a lição de moral que pretendia.
Mas eu lembro desses casos que me afetaram porque foram poucos e mesmo neles as consequências foram mínimas. Entre as alegrias da maneira como fui criado por meu avô, estava essa visão de que a validação da escola era uma arbitrariedade, uma formalidade burocrática pela qual eu precisava passar. Porque eu tinha sido o pior e o melhor aluno da sala em diversas ocasiões a depender do meu humor e do meu interesse, não estava em questão a minha inteligência ou falta dela, o meu valor como pessoa pensante, nas notas que eu recebia da escola. Quando a professora que eu mencionei me reprovou numa matéria que eu achava que passaria (inglês) e isso se somou às matérias em que eu sabia que reprovaria por minha incompetência mesmo (física, química), perdi um ano do Ensino Médio. Isso teria sido uma consequência relativamente grave a outro adolescente, como foi a outros dos meus colegas do período que eu sei que também foram reprovados por moralidades similares.
Mas no meu caso, pela liberdade que eu tinha na minha casa, eu pude simplesmente combinar com meu avô que eu ia largar a escola, simples assim, para ir logo aos cursinhos de vestibular. Achei um caminho pouco conhecido em que o diploma do Ensino Médio era obtido pelo ENEM e fiz uso disso. Enquanto meus amigos foram ao terceiro ano do Ensino Médio, eu que devia repetir o segundo ano fui ao cursinho. Quando muitos deles estavam no cursinho depois de terminarem o “terceirão”, eu já estava na faculdade.
Essa história remonta outro dos meus privilégios, esse que veio do meu avô, que foi essa abertura à autonomia. Nesse sentido meu avô tinha algo de uma visão prática, também: ele sabia que algum diploma eu precisava ter para seguir à graduação, mas não se importava com o caminho pelo qual esse diploma seria obtido. Meu pai biológico, que já estava na minha vida nessa época, não teve nenhum poder de impedir que eu seguisse como segui e, porque o caminho que eu seguia parecia pouco usual, ele ficou ansioso quando comentei o que estava fazendo — largar o Ensino Médio para ir direto a um cursinho parecia uma loucura e é algo que imagino que ele não teria me deixado realizar se tivesse mais autoridade sobre meus atos. Mas como ele me conheceu ali na adolescência, a autoridade que ele dispunha era tão somente a de me fazer pressão e de me criticar, não a de me ordenar ou de me impedir.
E para falar de como a visão pragmática e as vulnerabilidades não são necessariamente algo a ser julgado, acho que meu pai e meu eu de dezessete anos continuam sendo bons exemplos.
Por que meu pai jogava pelas regras do jogo sem considerar criticá-las de qualquer maneira? Por que ele tinha essa visão tão pragmática e pé no chão de todas as coisas? A resposta é simples: porque ele tinha uma família para sustentar (minha madrasta, minha irmã mais nova, e indiretamente eu e ainda mais dois outros irmãos de parte de pai que tenho e que ele também ajudava). Meu pai queria fazer dinheiro para ajudar sua família. Simples assim. Se para fazer dinheiro meu pai precisava ir com uma roupa bonita numa reunião de negócios, ele não ia arriscar sair da linha para se reafirmar num ideal pouco prático de autonomia rebelde.
A poesia da minha rebeldia adolescente tinha pouco espaço na vida de um homem que queria e precisava fazer dinheiro. Que não fez faculdade e que não estudou para além do mínimo porque tinha começado a trabalhar aos catorze anos. A riqueza do meu pai veio do trabalho e do esforço dele, depois de ter crescido numa família pobre que veio praticamente fugida do interior do Paraná e sem condição nenhuma. Tudo que meu pai conquistou na vida foi pelo próprio esforço e por aprender a se conformar às regras do jogo e obedecê-las do jeito mais competente possível, sem criticar. É por isso que meu pai foi e é um conservador. É por isso que ele é também bem-sucedido.
O adolescente que eu fui aos dezessete anos era parecido ao meu pai em diversos sentidos. Tinha uma série de coisas que eu queria fazer da vida — ter casos com garotas, ter vida social com amigos, tornar-me independente financeiramente com um emprego — que dependiam de seguir as regras do jogo em alguma medida. Porque eu tive todos os privilégios dos quais dispus, pude intercalar e conciliar essa conformidade a uma rebeldia quando quis me dar ao luxo de não ser premiado (ou ser pouco punido) por algo.
Mas ali aos dezessete anos eu não tinha ainda arsenal conceitual nem experiência de vida suficientes para articular tudo isso. E tinha essas necessidades mais urgentes.
Eu queria dar alguns beijos na boca o mais rápido possível, e dei meu jeito para isso me conformando. Eu queria terminar o Ensino Médio o mais rápido possível, porque queria ir à faculdade. Se fiz isso de um jeito diferentinho que me deixou contente, mesmo a estratégia inusitada que implementei para tal ainda foi uma forma de submissão que, por qualquer lacuna burocrática que encontrei, ainda me deixou com o mesmo diploma de Ensino Médio que eu teria se tivesse me submetido à síndrome de pequeno poder e aos valores conservadores dos professores. Professores estes que não teriam me punido com baixas notas de participação se eu parecesse ser um jovem menos rebelde e selvagem, aliás, e se minhas notas fora isso não estivessem já no limite ao ponto da nota de participação fazer diferença.
Se eu pude deixar para trás as regras do jogo em algumas instâncias, foi só quando já tinha recebido os prêmios que buscava jogando e a partir dali continuar seguindo as regras passava a fazer menos sentido. Mencionei que eu segui as normas estéticas “dos dezessete aos vinte e um” e se parei nessa idade foi porque foi quando comecei a namorar com a mulher com quem vim a casar. A oportunidade de uma relação mais autêntica com minha namorada e futuramente esposa me permitiu explorar de jeito menos conformado a minha imagem, à medida do quanto minha namorada aguentava (e ela é até hoje a mulher que amo inclusive por ter me suportado mesmo na época em que fiquei com um bigode ridículo, ou quando fiquei parecendo um mendigo).
Minhas prioridades também mudaram porque, começando naquela mesma época a trabalhar, fazia mais sentido para mim o esforço para me conformar e aprender as regras do jogo profissionais do que insistir em me adequar às regras do jogo da atração. Se eu fosse mais iludido de que ser bonito era a base do meu valor, eu teria assumido uma postura cruel comigo de tentar conciliar as exigências de um estágio (começar a trabalhar muito ganhando pouco) com as exigências de continuar arrumadinho (fazendo dívidas pra continuar tendo roupas, ou saindo exausto do trabalho tarde da noite para ir à academia).
Da mesma maneira, se meu pai precisa ir de roupa social de marca para impressionar seus funcionários e parceiros nas reuniões corporativas com outros empresários, eu pude me dar ao luxo de ir normalmente trabalhar de camsieta, calça jeans ou até bermuda porque nas agências de publicidade isso não me rendia punições. E se hoje posso ser livre ao ponto de trabalhar só de cueca quando está muito calor no verão, é porque meu trabalho é remoto. Mas a conformidade ainda está presente, menos num maniqueísmo de sim ou não, e mais numa escala de cinzas a depender das exigências do contexto: se estou só de cueca e vou entrar numa reunião na qual preciso ligar a câmera, eu pelo menos coloco uma camiseta e me gravo só da cintura pra cima. Se preciso ir visitar os clientes, dar uma aula ou participar de eventos corporativos às vezes, nessas ocasiões vou minimamente arrumado (e vale mencionar que tanto quanto o guarda-roupa que me ajudou com meninas veio das ajudas do meu pai, vieram dele também as roupas decentes que me ajudaram a seguir as regras do jogo no contexto profissional).
A liberdade de não se conformar é parte de um privilégio particular que eu pude exercer enquanto adolescente e adulto mimado. É irônico inclusive que eu tenha me incomodado tanto com as poucas regras que me foram impostas, dado que meu lugar é aquele ao qual são menos exigentes os critérios em quase todos os sentidos. Frente a tudo que exigem de mulher esteticamente, para manter só nesse exemplo, é ridículo o quão pouco me exigiam — uma roupinha minimamente ajeitada, ser normativo minimanente no peso — para me enquadrar e viabilizar socialmente.
E se eu critico o pragmatismo conservador do meu pai, a verdade continua sendo a de que os resultados concretos do sucesso dele em manter as aparências foram o que financiou minha graduação depois que meu avô morreu. Não julgo o adolescente que eu fui quando comecei a frequentar academias e a usar lentes de contato porque eu jovem, vulnerável às pressões externas, inseguro, carente, queria ser visto como bonito e queria ter experiências sexuais. E seguir as regras do jogo, no contexto do universo em que eu vivia, era um imperativo para que tudo isso acontecesse. Sem a faculdade que meu pai me pagou seguindo as regras do jogo, eu não teria tido como articular ou nem mesmo conceber que alguma alternativa de desconstrução a essas regras fosse viável.
O homem que consome conteúdo de autoajuda masculina para se motivar, o homem que vai à academia e destrói sua saúde com esteroides para atingir um certo ideal de corpo, o homem que gasta com roupas e ostentação: esse é um homem vulnerável, na verdade, que está buscando em alguma medida validação. Se ele não estiver ainda suficientemente corroído em sua humanidade pelas regras do jogo absurda de certos contextos masculinos mais radicais, talvez ele esteja até buscando amor. Quero analisar a covardia e a conformidade desse homem sob uma perspectiva que reconhece essa vulnerabilidade porque considero que isso é importante para propor alternativas. E se existe a perspectiva da resignação e do radicalismo rumo à autonomia que não se curva nem se submete sempre que possível (que é a perspectiva que escolho pessoalmente e à qual voltarei mais pra frente nesse ensaio), é importante que existam outras alternativas que lidem também com a vulnerabilidade de um jeito menos destrutivo.
Quero voltar ao meu exemplo para demonstrar o que quero dizer com isso. As ditas “regras do jogo”, como eu tenho mencionado até agora, não são um monolito. Na verdade, mesmo elas estão constantemente em disputa. Mesmo na minha juventude, as regras do jogo às quais eu me submeti foram curadas pela minha escolha. Existiam certas performances de masculinidade (inclusive algumas propostas pelos valores da família do meu pai) às quais eu nunca me submeti, fosse porque elas iam contra certos dos meus valores depois de ter sido criado por duas mulheres em casa (minha mãe e minha avó), fosse porque me pareciam cínicas demais. Nos imageboards anônimos que por um tempo eu frequentei na adolescência, o ódio às mulheres e o fatalismo cínico desconstruíam rotineiramente até mesmo a possibilidade de amor, construindo todas os vínculos como necessariamente relações de interesse. E porque eu tinha um fundinho romântico e queria me apaixonar, essa não foi nunca uma perspectiva que me pareceu possível.
E apesar de não me render nunca a esses extremos mais radicais, eu estabeleci em diversos momentos da minha juventude uma performance muito tóxica do que era ser um homem quando achava que estava atendendo a certas regras do jogo. E se certas coisas eu neguei por valores, parte disso eu fui moldando porque os resultados foram me demonstrando na tentativa e erro o que era necessário ou não, até o que era ou não prejudicial. No momento em que eu sinto que estive mais corrompido por uma visão destrutiva de masculinidade, ali nos meus vinte e um anos, eu reparei que eu não precisava necessariamente ser um lixo humano, um machista mal disfarçado falando diversos impropérios, para ter vida sexual. Na verdade, o ponto em que eu estava chegando já começava até mesmo a me prejudicar nesse sentido, porque a reputação de ser um lixo de homem começou a afastar meus amigos e as garotas em quem eu me interessava de mim.
De novo, todo esse pacote de regras é sempre mais fluido do que parece. Se eu fosse mais bonito ainda do que sou, teria que investir menos em estar bem vestido, ou talvez pudesse investir menos em evitar de falar abobrinha. Se eu fosse ainda mais feio, talvez eu tivesse que ostentar mais ainda dependendo do círculo em que estivesse, ou mais cedo tivesse que aprender como ser minimamente gostável e simpático com os outros para além da pessoa insuportavelmente narcisista, arrogante, machista e egocêntrica que fui me tornando. O custo social de ser desagradável é menor quando se tem dinheiro, beleza ou ambos.
Para cada homem, essas regras e essas nuances todas se apresentam à sua maneira. É diferente considerar como, quando e quanto se conformar sendo mais ou não bonito seguindo o padrão estético em voga, ou tendo mais ou menos dinheiro e recursos para investir tentando se adequar ao padrão. Lembro que a falta de carro e não morar sozinho eram desafios consideráveis para mim durante minha “carreira de solteiro” e isso me fez adotar certas estratégias (certas baladinhas estrategicamente localizadas próximas a metrôs, aplicativos de encontro buscando garotas que moravam sozinhas) para viabilizar os resultados que eu buscava. Quando jovens inseguros despejam dinheiro de suas mesadas ou de seus salários no bolso de gurus e coaches masculinistas, a conta que tentam fazer é essa: tenho dinheiro, será que consigo comprar o resto?
A vulnerabilidade masculina por trás das performances de masculinidade é algo que precisa ser urgentemente considerado de um jeito mais responsável. Quando meu pai é conservador até hoje sobre a imagem de uma certa masculinidade, ele o faz porque é o jogo que ele sabe que lhe convém, aquele que o beneficia e no qual ele consegue se adequar. Meu pai, que foi um galã mulherengo na juventude porque era de fato muito bonito, compensa hoje sua vaidade com mais ostentação e apego a um certo tipo de ambientes. Algo que ele nunca conseguiu emplacar comigo foi uma versão minha que funcionasse em baladas de sertanejo, por exemplo, e ele nunca entendeu direito porque eu usava certas roupas de um estilinho alternativo, nem porque eu deixava a barba grande ou um brinquinho na orelha, apesar dessas escolhas me parecerem depois óbvias quando entendi melhor as regras do jogo do universo do macho alternativinho que era o nicho no qual eu estava disposto a tentar competir. Por esse apego ao que lhes convém, é óbvio que homens ficarão costumeiramente resistentes a qualquer desconstrução às regras que parecem prometer certos resultados que eles buscam.
Um exemplo do que quero dizer com isso: quase todos os discursos sobre as regras da sedução de hoje são cínicos. A um homem dessas esferas redpill, o que se costuma prometer é que ser rico e gostoso significa transar muito, ou talvez até casar, mas não existe vínculo. Mesmo a esposa do homem nesse jogo é sempre uma ameaça de traição ou de abandono se ele fraquejar minimamente, se ficar 1% menos rico ou gostoso, e esse modelo todo estabelece uma obsessão paranoica que fortalece todos os ciúmes e inseguranças. Nesse universo, não existe amor. Ser gostoso e rico, seguir as regras desse jogo para conquistar por parâmetros superficiais, significa conquistar gente superficial e interesseira. Mas esse mundo não promete e nem viabiliza confiança, parceria e nem amor.
Eu comecei a me incomodar com o cinismo e o machismo que estava performando durante minha fase mais corrompida porque eu percebia que algo que eu queria encontrar algum dia — um vínculo emocional autêntico e honesto, um amor numa relação de confiança — era algo inatingível segundo aqueles parâmetros. As regras do jogo no mundinho das baladinhas alternativas e dos aplicativos de sexo casual e, mais até do que nos ambientes, as regras do jogo no estereotipo específico do homem alternativo boêmio e mulherengo que eu performava, nada disso me entregaria o que eu estava realmente buscando.
Porque não me fazia sentido seguir as regras de um jogo que não me oferecia o que eu procurava, eu abandonei tudo isso quando assumi meu namoro com uma facilidade que pareceu chocante a quem me conhecia na época. Estar bonito e arrumadinho de acordo com as regras do jogo certamente me ajudou a chamar a atenção da minha atual esposa quando ela me viu pela primeira vez. Teria sido suficiente para termos um casinho sexual de algumas semanas ou meses, como era o hábito das minhas relações daquele período. Mas foi só porque abandonei o joguinho todo para falar honestamente com ela sobe minha vida (dos meus problemas familiares, dos meus sonhos, dos meu sentimentos) que namoramos e casamos.
Muita gente não quer amor mesmo, por um motivo ou por outro. Mas muita gente quer e só foi convencida por algum jogo de regras cínicas de que o amor é impossível. Um dos caminhos mais simples para tentar reformar ou propor masculinidades melhores é esse: construir e divulgar caminhos nos quais um rapaz que quer namorar não precisa virar um lixo humano, um bilionário, um coach e nem um deus grego para conseguir isso.
Mas a verdade é que o problema é muito mais fundo.
Há uma certa covardia e uma certa vulnerabilidade que são atendidas sim por certas performances como elas são hoje. Do mesmo jeito que eu não vou a uma reunião de trabalho só de cueca, eu não iria só de cuecas a um primeiro encontro ou a uma baladinha alternativa. Quando experimentei com minha aparência usando o bigode ridículo ou o estilo de mendigo com uma barba desgrenhada e roupas rasgadas, fiz isso porque estava confortável e seguro no meu casamento. A versão minha que foi para o mundo conhecer mulheres e que finalmente encontrou uma com quem estabeleci um vínculo foi aquela que, nas aparências, atendia ao mais prático e pé no chão do que era esperado no padrão estético de um homem. Na época, eu era vaidoso ao ponto de ir no salão fazer a sobrancelha.
E o homem covarde nem sempre abandona as regras do jogo quando consegue o que quer. Seja porque já se identificou com aquelas regras ao ponto de não saber mais diferenciar a si mesmo do que é o produto da conformidade (a maior tragédia possível à identidade), seja porque sente que defender seus interesses exige a conservação do jogo que o beneficiou, seja porque sua ambição o mantém propenso a buscar sempre mais.
Meu pai já conquistou praticamente tudo que as regras do jogo poderiam lhe entregar no mundo dos negócios. Se ele quisesse ir para a empresa dele de chinelo de dedo, provavelmente poderia. Mas a visão pragmática lhe imputa que a conformidade ao conservadorismo estético garante a reputação da empresa e a estética de dignidade (que é diferente de dignidade verdadeira). E isso é verdade. Para além disso, meu pai teve sua vida tão inerentemente ligada a se conformar às regras que para ele não parece haver alternativa possível. A essa altura, ele já há muito perdeu qualquer resquício de outra coisa e se moldou não para necessariamente performar. Ele é aquele homem bonito, bem-vestido, bem-sucedido. E nada mais. À praticidade do meu pai, falta poesia ou rebeldia para articular a possibilidade de ser qualquer outra coisa. Diante dessa discussão toda, que no mundo dele não faz sentido nenhum, ele provavelmente diria algo como “qual a necessidade de ser outra coisa que não o mais bonito, rico e bem-sucedido possível, se não vou ganhar nada com isso?”
Como eu disse lá no começo, ao privilegiado a conformidade é uma escolha, enquanto aos outros é uma imposição. Eu posso ser rebelde por conta do meu privilégio. Meu pai, apesar de ser privilegiado hoje em dia, retém a cabeça de sobrevivente de quando o mundo para ele era basicamente “conforme-se ou fracasse”. E para tantos outros, conformar-se é o caminho para tentar garantir o mínimo de retorno num mundo cada vez mais precário no qual se escancaram cada vez mais nossas vulnerabilidades.
Para um homem que precisa de amor, submeter-se às regras do jogo numa academia, num carro ou nas roupas bonitas vai parecer o único caminho possível, sem qualquer possibilidade de pensar criticamente sobre o quanto a performance, o consumo e a aparência estão deformando e afetando seu tempo, seu esforço, seus investimentos e seu senso de si. E mais ainda, para um homem que precisa de dinheiro para pagar as contas, ir o mais arrumado possível a uma entrevista de emprego é uma estratégia de sobrevivência, sem pensar nem por um segundo de forma crítica no que “arrumado” significa ou não.
No Brasil, a imposição da conformidade vem por vias inclusive mais violentas ainda do que a ameaça de morrer de fome e desempregado. Pode significar morrer mesmo.
Eu podia ir às minhas aulas numa faculdade de elite na Avenida Paulista usando chinelo de dedos, fedendo a maconha, barba desgrenhada. Um jovem negro nas exatas mesmas condições pode levar um tiro se sair assim para ir até a padaria. A barba desgrenhada no meu rosto envolve muito menos risco e minha rebeldia é inerentemente menos marcada por consequências do que seria o caso se eu fosse mais pobre, com um tom de pele mais escuro. Na juventude eu podia ser rebelde e boêmio saindo bêbado pelas ruas da Liberdade durante a madrugada, ou dormindo na porta do metrô ou no vão do MASP esperando a manhã chegar, porque o máximo de risco que eu corria era o de ser assaltado (e olhe lá), enquanto uma mulher inconsequente em “boemia” semelhante correria riscos muitíssimo piores — incluindo o risco de uma violência sexual que é algo que nunca sequer passou por minha cabeça como uma possibilidade de risco que eu sofresse mesmo quando caminhei pelos cafundós mais ermos e ridiculamente perigosos nos quais me enfiei durante minha adolescência e juventude desregradas.
Porque esses riscos de outros grupos são muitíssimo mais concretos, os riscos emocionais e psicológicos — de validação, de pertencimento, de conforto, de ambição — que movem as vulnerabilidades dos privilegiados precisam ser colocados em perspectiva. Mas é importante que isso não signifique desconsiderar a vulnerabilidade que existe. Um gostosão de academia correndo o risco de infartar pelo tanto de testosterona que se injeta está correndo esse literal risco de vida por uma ameaça que pode parecer menor do que o de levar um tiro da polícia: o risco de não ser amado, de não ser desejado, de não ter uma certa vida sexual que deseja possuir, ou de não encontrar um certo tipo de relacionamento romântico. Mas reitero, nesse caso o “pequeno” risco de não ser validado é suficinte para a inconsequência desse gostosão levá-lo a arriscar a própria vida botando uma pressão desnecessária à sua saúde cardiovascular. E essa é uma vulnerabilidade tremenda.
Os homens privilegiados que se conformam são todos inseguros. São todos donos dessas vulnerabilidades tremendas. Defendem com unhas e dentes as regras dos jogos que estão jogando porque temem que, se as regras mudarem, não saberão se adequar para conquistar o que buscam por outros caminhos. Se eu já investi em roupas caras e em anos de academia para tentar ser desejado, não me interessa nem um pouco se as regras do jogo mudarem para mulheres buscando homens que saibam conversar melhor. E para além da resistência conservadora às mudanças, há uma insegurança mais profunda, uma covardia no se adequar. O apagamento da identidade às vezes é tamanho que não existe rigidez para garantir nem o básico de coerência. O covarde que se sente desejado porque se conforma às regras do jogo na academia trocaria a mensalidade da Smart Fit por um curso de oratória de um coach picareta, ou talvez até por sessões de terapia, se acreditasse que o critério para ser desejado mudou e precisa se atualizar.
Por baixo, há um desespero. A obsessão pela vaidade é uma armadura tentando proteger e suprir uma vulnerabilidade profunda, uma fragilidade de base que é das mais trágicas e tristes porque fala sobre a ausência de um sentido de identidade. Quem é privilegiado e poderia escolher, mas mesmo assim se adapta a todo custo, busca seguir as regras a todo custo, faz isso porque não tem introspecção suficiente para entender que uma escolha sequer existe. Tudo que há dessa pessoa é a regra social, a conformidade social, e é só a partir desse lugar que essa pessoa existe. Para o homem que precisa ser bonito para existir, não ser bonito significa não ser nada. É um estado de ameaça de inexistência, de aniquilação do resquício inseguro que sobrou de si, caso se fracasse na submissão às expectativas.
Em discursos progressistas, esse é um lugar rotineiramente pouco percebido. O privilégio e a covardia ambiciosa que ele normalmente oculta são pouco discutidos e pouco estudados, especialmente porque quem vivencia esse tipo de experiência não tem interesse nenhum em sequer conceber e articular que está fazendo isso, quanto mais de compartilhar esse estado com os outros.
Se faço isso aqui, é só porque estou na ocasião privilegiada em particular de ter me submetido desse jeito, mas não me submeter mais. E se não me submeto mais, é por ser rebelde. E se sou rebelde, é porque sou privilegiado o suficiente para sustentar essa rebeldia sem ser punido ao ponto de aniquilação (concreta, como no caso do tiro, ou subjetiva, no caso do apagamento de si, como no caso do bombado testosteronado aí de cima). E meu privilégio, além de material, é também um privilégio de vínculos, de amor, de uma certa perceptiva de autonomia que herdei do meu avô. Com meu pai eu aprendi a jogar as regras do jogo e ainda as jogo quando preciso — vou arrumado a reuniões de trabalho, tenho roupas aceitáveis para quando vou por exemplo dar aulas. Mas eu não fui engolido por essas regras. Essa abordagem pragmática existe em mim aliada a outras coisas, outras oportunidades.
A maior oportunidade que eu vejo no meu estado de privilégio não está nas premiações que posso receber quando me conformo, nem na falta de punições de quando decido não me conformar. Existe uma oportunidade mais profunda e rara na minha identidade hoje a partir de todos os meus privilégios, uma oportunidade que é ao mesmo tempo um interesse profundamente subjetivo meu, algo que me interessa pela experiência de ser quem sou que desejo construir, mas que felizmente deixa também como consequências certos benefícios coletivos.
Toda vez que um homem privilegiado de classe alta resolveu sair de terno e gravata, ele fortaleceu as normas sobre vestimenta que fizeram um favelado ser seguido no mercado quando entrou lá de bermuda e chinelo de dedo. Toda vez que um privilegiado saiu de chinelo de dedo para ir no mercado, ele despotencializou esse símbolo da associação que em outros tempos levou qualquer um de chinelo na rua a ser imediatamente considerado suspeito. No lugar de privilégio, sempre que confrontado com um dilema em que alguém pede conformidade, as escolhas são duas. Conformar-se e ser premiado por isso, fortalecendo as regras que vão continuar estabelecendo condicionais mesmo aos privilegiados no futuro, e que vão continuar punindo aqueles sem privilégio que não puderem ou não quiserem se conformar. Ou então ser rebelde e ajudar a desgastar essas normas aos poucos.
O rebelde privilegiado é ridículo? Com toda certeza. Porque sua rebeldia carrega menos risco, ele também é menos potente enquanto símbolo. Mas a romantização do risco e da punição são em si só problemáticas. Se usar o ridículo do rebelde privilegiado como escudo humano significar que menos gente precisa ser baleada ao não se conformar, que seja. Nesse caso, é quase um dever moral do privilegiado ser rebelde, mesmo quando isso for ridículo, se com isso ele puder proteger o próximo que seria punido de forma mais veemente ao repetir os mesmos comportamentos.
Para além disso, a oportunidade do privilégio é um estado possível de coragem, não pelas punições materiais (que ao privilegiado costumam não existir), mas de uma coragem de existir sem validação e sem recompensa. Um estado corajoso que estabelece uma ética do privilégio onde, justamente por minha falta de consequências de primeira ordem, posso ser a linha de frente no questionamento e na desconstrução de certas regras do jogo, algo que vai beneficiar depois pessoas menos privilegiadas do que sou.
Àquele em posição de privilégio, considero que questionar e desconstruir as normas da conformidade é uma espécie de imperativo ético. O único uso ético da posição de privilégio é o de ser o primeiro a decidir deixar o terno e o chapéu em casa para sair de de bermuda e camiseta numa tarde de calor extremo. É fazer isso ciente de que não vai levar um tiro por essa contravenção. É advogar a partir disso para que todos os outros tenham o direito de sair de bermuda também. E aproveitar da falta de riscos à sobrevivência para advogar por um futuro em que ninguém seja punido por não se conformar a certas arbitrariedades. Escolher certas lutas e observar avanços não só nas situações em que outros puderam repetir o comportamento depois de você, mas também naqueles casos (raríssimos no Brasil) em que você do seu lugar privilegiado nem teve mais que ser o primeiro a se rebelar sem ser punido.
MAS, e isso é importante, o imperativo ético não é o único motivo para ser um privilegiado rebelde. Existe também uma oportunidade promissora de existir nesse lugar. Um lugar que é livre de heróis, livre das regras do jogo, e que por isso entrega o máximo que é possível existir de autonomia. Mas que pede em troca um contato nu e cru, direto e reto, com a própria vulnerabilidade.
Dadas as urgências materiais, com razão pouco pensamos nas necessidades emocionais e simbólicas que o privilegiado corajoso precisa sacrificar para existir autenticamente. Mas ignorar esse aspecto é um erro que inviabiliza projetos de rebeldia a larga escala porque o que se exige de privilegiados quando são pressionados a existirem sem validação é algo que muitos não conseguem realizar por suas vulnerabilidades e inseguranças emocionais.
Porque sou eu mesmo o homem que tenta existir sem tirar validação da conformidade ao que se espera da dita “imagem do homem” enquanto expectativa social, nisso eu sei melhor do que ninguém o que é viver desse tal jeito sem heróis, sem símbolos, sem autoestima advinda da conformidade a regras sociais. E por isso também sei que para um certo perfil de pessoa, ainda privilegiada só que um pouco menos do que sou, ou só menos teimosa e birrenta, ou menos criada para buscar autonomia desde cedo, ou menos interessada em estudar e articular certas ideias ambíguas e complexas, ou que só é mais insegura, enfim, para esse outro perfil de gente é talvez inviável exigir conformidade (veja a ironia desse paradoxo!) a algum estado de si que envolva abandonar as regras do jogo de vez.
É sobre isso que quero discutir em seguida.
3. Não se pode exigir conformidade radical a existir sem confortos e heróis
Este texto é um pouco uma gracinha na escala das concessões. Por um lado, ele está conformado ao que se espera dele e de mim. Eu me conformei, e inclusive naturalizei e internalizei, na fluência deste estilo particular de linguagem que é também outro subproduto do meu privilégio. Eu me conformei à grafia das palavras de uma forma compreensível, ao uso das vírgulas e das letras maiúsculas, às regras de concordância. Muitos anos antes de aprender com meu pai a me vestir com roupas bonitas conformadas às expectativas terceiras para me sentir bonito, eu já tinha aprendido com meu avô a me vestir com palavras bonitas conformadas às expectativas terceiras para me sentir esperto.
Em teoria, eu poderia inventar um idioma novo, particular meu, que só a mim atendesse e que só eu mesmo fosse compreender. Mas mesmo diante das minhas birras e excentricidades, tento manter um mínimo de solo comum para me comunicar minimamente. Eu poderia, também, usar a linguagem mais acessível e reducionista possível, aquela que como redator publicitário eu já usei muitas vezes para vender suco, carro, bolo de chocolate por delivery. Mas fazer isso também comprometeria algo da minha alma e anularia justamente a potência possível da minha autonomia particular. Eu poderia ainda tentar me “disfarçar de desprivilegiado”, algo como um cosplay de pobre como costuma ser dito, adotando uma performance mentirosa de um lugar diferente daquele do qual de fato vim, mas isso além de desonesto (e feito só para me beneficiar pessoalmente nos raríssimos espaços onde ser privilegiado “pega mal”) me impediria de aproveitar justamente as oportunidades que meu lugar (e meu privilégio) me dispuseram na subversão deles mesmos.
Seria impossível para mim escrever um ensaio desses numa linguagem que disfarçasse ou ocultasse meu privilégio e acho que o melhor uso possível da subversão na minha linguagem é este aqui, melhor do que seria se eu tentasse me apropriar (como às vezes também tenho que fazer na publicidade) de gírias e linguagens periféricas só para fingir pertencer a um lugar que não é o meu. No melhor dos casos essa apropriação cultural seria forçada, no pior dos casos seria ofensiva, e em todos os casos não serviria de nada para além de explorar a desgraça terceira numa tentativa rudimentar de me beneficiar. É o mesmo tipo de performance ridícula, uma traição de si e dos outros, que faz o fulano pedindo “desculpas por ser homem” como uma maneira superficial e melodramática de se encaixar em algum círculo no qual quer ser aceito.
Ainda na ideia de cosplay de pobre, porque é bastante elucidativa e foi algo que eu inclusive performei (problematicamente) várias vezes: uma coisa é que eu vá com roupas simples ao elitizado Shopping Iguatemi, onde isso é subversivo, outra coisa é que eu vá com essas roupas simples a um sarau literário no periférico SESC Grajaú, para não incomodar pessoas críticas ao privilégio que pudessem estar por lá. Se eu saísse mencionando que cresci no bairro periférico do Campo Limpo para performar algo como um “ser desprevilegiado” num ambiente amigável à periferia, sem mencionar que mesmo no Campo Limpo eu vivia numa das melhores casas de uma das melhores regiões, ou que hoje vivo num apartamentinho de classe média alta numa parte ótima da Vila Prudente, isso é cosplay de pobre, uma performance só para meu próprio benefício.
Nisso lembro também de um caso emblemático da minha adolescência: dois amigos meus, um deles branco e outro negro, costumavam combinar um joguete curioso. Iam a um supermercado dentro de um shopping de elite, fingindo que não se conheciam e partindo cada um para um lado. O branco, bem-vestido, aproveitava para roubar bebidas e enfiá-las na sua mochila enquanto os seguranças seguiam o outro por sua cor de pele e suas roupas mais simples. Apesar de inconsequente e na época feito pensando no benefício direto (bebidas roubadas) e não nas implicações, isso que faziam para mim parece ter algo de poeticamente político — mas só pelo contexto no qual acontecia.
O que é subversivo ou não depende das regras, do contexto, do lugar e do motivo. Sair mal vestido não é inerentemente revolucionário sem considerar tudo isso. Pode ser também só inconveniente ou oportunista.
Tanto quanto as regras do jogo não são escritas em pedra, porque vivem mudando socialmente, e são inclusive múltiplas em arranjos porque na verdade há diversos jogos para diversos grupos, também a adesão a estas regras acontece na verdade numa escala, não num binarismo maniqueísta. Isso mesmo aos privilegiados e sempre de maneiras complexas. Há sempre uma negociação. Minha escrita desse ensaio não funcionaria num anúncio de sucos, nem no universo pragmático de negócios de uma apresentação corporativa. Minha performance de masculinidade específica não funcionava bem numa balada sertaneja, mas era mais do que suficiente para que eu me divertisse com as moças alternativas da baladinhas indie lá da Rua Augusta.
Dizer que existe uma potência em direção à autonomia, à autenticidade, à rebelião, não quer dizer que essa potência é um absoluto, que deve ser aplicada desconsiderando todo o resto, nem que é sempre o caminho para qualquer coisa se consolidar. Se meu objetivo aqui fosse falar com mais homens, por exemplo, se fosse conscientizar em larga escala, inclusive poderia se argumentar que esse meu texto deveria ser mais conformado do que está sendo.
Quando me conformo às regras do que a escrita espera de mim no trabalho ou no universo acadêmico, isso é iuma estratégia de sobrevivência. Preciso do meu salário para comer e não posso inventar moda por lá como estou fazendo aqui no meu Medium. Quando escrevo aqui no meu Medium, inclusive, posso fazer isso com certa liberdade de me articular por uma combinação curiosa de marginalidade com privilégio: sei que não serei punido diretamente por comunicar essas ideias aqui, sendo que são ideias controversas que em outros ambientes poderiam me prejudicar, tanto porque meu privilégio me protege de certas consequências (não dependo de ninguém que possa ficar ofendido com esse texto), quanto porque o próprio formato (texto denso e longo) e o próprio lugar (um post obscuro no Medium) me mantém protegido por minha irrelevância. Se eu fosse um influencer evangélico, dependente de agradar uma audiência conservadora para me manter, e por qualquer loucura quisesse me dar de livre a comunicar essas ideias num vídeo curto de Tiktok, as consequências poderiam ser bem mais severas ao meu modo de vida.
Para além da sobrevivência, certas conformidades partem da ambição. Eu tenho uma ambição de viver de escrita porque entendo a leitura, o estudo e a escrita como um chamado de vida, como algo que eu faria mesmo se as consequências fossem tão graves quanto morrer de fome embaixo da ponte. Dado meu privilégio e as concessões estratégicas e pragmáticas que fiz (ter me graduado em Publicidade e ter mestrado em Comunicação, trabalhar como redator publicitário, ao invés de ficar o dia todo só escrevendo ensaios e poeminhas), morrer embaixo da ponte como consequência direta de escrever é um risco que no meu caso não existe. Dada essa ambição, essas conformidades e outras (inscrição em concursos literários, publicação dos meus textos em certos formatos e ambientes, inclusive quando faço isso com ressalvas ao torná-lo produto para grandes corporações digitais) são parte de uma estratégia de longo prazo.
Existe um aspecto ético na ambição que se conforma mesmo que só em certos casos, certamente, mas ela me parece tão fundamental para sentir vontade de viver que não consigo defender outro posicionamento. Talvez seja uma falha de caráter minha, mas sou mais propenso a considerar que é um aspecto da minha humanidade.
Voltando ao exemplo do meu pai que é alguém extremamente ambicioso, eu não acho nem mesmo que houve um compromisso ético quando a conformidade dos meu pai às regras do jogo passou de ser uma questão de sobrevivência para se tornar uma questão de ambição. O que critico é a ambição sem limites, que se conforma sempre e de forma cínica para continuar angariando indefinidamente. Nesse sentido acho que a ambição exige uma pequeneza, uma certa modéstia e uma capacidade de coexistir com o pensar nos outros. O problema não é a fome do sobrevivente, nem o estar saciado do ambicioso moderado, mas a gula do egoísta megalomaníaco.
Quero deixar isso escrito numa proposta quase aforística:
Conformidade sem risco de punições é covardia, conformismo. Conformidade com risco de punições é sobrevivência. Conformidade para ser premiado com algo de primeira necessidade é sobrevivência. Conformidade para ser premiado com algo de segunda necessidade é ambição. E conformidade para ser premiado com algo muito desnecessário é capricho.
Às vezes, no Brasil as regras são tão injustas que para quem está no fundo do fundo a conformidade significa punição e morte. E nesses casos o jogo se inverte e rebeldia vira sobrevivência. Porque o jogo é violentamente viciado, a conformidade fora do privilégio tem sempre esse cálculo agravante, sobre o “perder/perder” entre ser punido por se submeter ou por se rebelar.
Se você está se conformando ao dizer amém ao seu chefe depois de levar uma bronca por algo que não foi culpa sua porque sabe que isso paga seu aluguel, vale considerar que sob uma certa perspectiva das brasilidades, você ainda está na frente de um pedinte aleijado que deu azar numa tarde sem receber comida ou esmola e precisa escolher entre se conformar morrendo de fome ou se arriscar a levar porrada e ser preso caso tente roubar um pão. E é importante colocar essas duas pessoas em perspectiva se você está se conformando a ver sua empresa se corromper de alguma maneira numa licitação escusa só porque você quer ir pra Disney nas próximas férias.
E tem gente que escolhe mesmo de jeitos burros. Gente rica, ou de classe média, ou até pobres que poderiam tentar outro caminho, que se “rebela” virando traficante não por sobrevivência, mas porque sonha em ter uma cobertura duplex. A mesma estrutura existe na rebeldia e se tem gente que se rebela por sobrevivência, tem também quem se rebela por capricho. Tem quem se “rebela” deixando quebrar a empresa que herdou para viver como bicho-grilo em São Tomé das Letras. A cultura de ostentação não ajuda em nada quando você vê a promessa do carrão frente à moderação de uma vidinha assalariada, mas ainda assim há escolhas individuais em relação ao estado social e sistêmico. Se o seu caso não é daqueles em que está quebrado ao ponto de não funcionar, então você pode escolher de jeitos mais ou menos inconsequentes.
Mesmo entendendo os motivos que a fazem possível, sou particularmente contrário a rebeldias inconsequentes hoje (tendo sido alguém que as praticou por poesia antes, afinal sou artista) porque acho que é pouco inteligente e pouco sustentável. O lugar da rebeldia radical existe, mas o rebelde privilegiado precisa engolir seu orgulho romântico e entender que não é essa a posição em que seu poder pode ser melhor utilizado para contribuir.
O herdeiro em São Tomé tem menos impacto ao abdicar de sua posição de poder por idealismo do que teria caso tivesse se conformado minimamente e usasse sua posição para um pragmatismo de reforma gradual, para comer pelas beiradas, talvez para doar aos esfomeados, ajudando gente que nem o pedinte aleijado com sua margem de lucro. Ou a lançar vagas afirmativas, ou ao formar alguém vindo da base da pirâmide para ser seu sucessor. Ao abdicar de seu privilégio, pode ter muito bem dado espaço no mercado de trabalho pro próximo herdeiro mimado, mais dado aos caprichos, que vai enfiar todo seu lucro em viagens de lazer para Dubai.
Dito tudo isso, querem saber?
Tenho uma ambição gigantesca de conquistar autonomia. Se a rebeldia acontece na esfera do pensar no benefício aos outros e no pensar em benefício próprio, posso garantir que a rebeldia que me move é antes pensando em mim. Algo que só não é uma gula destrutiva no sentido mais absoluto dessa ideia porque consigo vincular isso a um pensar nos outros. Mas nos caminhos em que acho que não vai afetar a ninguém que não a mim, essa é uma autonomia que busco. E ela é exaustiva e desafiadora o tempo todo porque no meu caso envolve uma desconstrução constante de qualquer dependência a qualquer critério de conformidade às expectativas terceiras. Não no sentido do que é prático, do que preciso fazer por questões burocráticas e técnicas.
Conformado fico em trabalhar. Mas não fico conformado em encontrar um propósito de identidade na minha posição de trabalho. Não me identifico com alguma imagem romantizada do que seria um redator publicitário. Quando ocupo esse papel, é sempre de um jeito pragmático, técnico e cínico. Faço o que faço com a competência que de mim é exigida para me viabilizar financeiramente. Não tiro autoestima ou propósito nem da minha competência, não há orgulho que me adorne em nada do que faço para pagar minhas contas, com exceção talvez da ironia divertida que me faz considerar que a mesma obsessão com escrita (e liberdade via escrita) que me levou a escrever ensaios como esse é aquela que me tornou competente em me conformar para seguir a norma culta e saber formatar direito um artigo obedecendo SEO no portal de uma empresa de sucos explicando os benefícios do maracujá para a saúde.
Essa é uma posição inerentemente desafiadora e instável que exige um trabalho emocional constante e uma visão que, porque é desiludida e pragmática, aplica conformidade sob uma perspectiva de performance sem nem mesmo tentar estabelecer identificação. Quando um homem vulnerável vai malhar porque quer ficar bonito, isso normalmente acontece numa via de duas mãos: o desejo de ficar bonito para os outros, sim, para ter uma vida sexual, mas também o desejo de ficar bonito para si, para retirar autoestima da identificação com a beleza.
Meu maior radicalismo está na instância em que evito, sempre que posso, esse segundo estado, o estado da identificação a qualquer coisa que possa me fornecer autoestima. Inteligência? Derivo pouco ou nenhum orgulho disso porque no meu caso é quase um subproduto de de uma rebeldia e de uma autodeterminação que sei que se tratam de subprodutos de um privilégio grande. E no meu caso essa rebeldia e essa autodeterminação são tão radicais que mesmo o tamanho do meu privilégio não impediu certas vezes que eu fosse punido (ou deixasse de ser premiado) por isso.
Eu diria que as únicas identificações que tento construir para gerar autoestima são essas duas: a de exercitar tanta autonomia quanto me for possível, conciliando no quanto isso for possível um posicionamento minimamente ético que me permita conciliar essa autonomia a beneficiar, ou pelo menos não prejudicar, os outros. É um projeto paradoxal meu, falido já por natureza, de tentar exercitar ao mesmo tempo a liberdade de um individualismo radicalíssimo (do tipo que deixaria o neoliberal mais radical envergonhado), junto a um desejo coletivista de fazer isso de forma a contribuir para um benefício comum progressista e subversivo. Fico pensando que minha individualidade pode ser subversiva e que isso pode ser coletivamente importante, mas isso é mais uma desculpa moral que faz eu me sentir bem por ser individualista do jeito que quero ser.
É uma posição de nicho, cosmopolita, que só consigo tentar manter por diversas instâncias de privilégio no meu acesso a tudo que tive, algo que se torna mais pornograficamente contraditório dada a situação desigual e conservadora do Brasil, país em que vivo. E mesmo assim, é o estado em que existo.
Porque quero matar meus heróis, esse é um estado que, mesmo frágil, tento sempre manter de pé sozinho, sem a romantização de exemplos a serem seguidos. Eu poderia romantizar a rebeldia de um Renato Russo, de um Caetano Veloso, de uma Rita Lee, de todas essas figuras subversivas de gente privilegiada que fumou maconha e sofreu retaliações em alguma medida por se manifestar politicamente, mas sei que fizeram tudo isso e seguiram vivos, e foram inclusive celebrados por isso, porque estavam gozando de seus próprios privilégios. A lírica complexa e sem concessões de Russo era financiada pela bonança dos famíliares de Brasília, entrunchados no funcionalismo público e nos cargos militares. Caetano Veloso foi exilado, foi sim, e foi bonitinho cantar suas melancolias em inglês lá em Londres.
Não é que eu ache incorreto o que essas figuras fizeram, até porque estou fazendo basicamente o mesmo (e olha que faço de forma menos eficiente). A autonomia da minha vida até os dezenove anos foi bancada pelo cargo estável com bom salário do meu avô no Banco do Brasil e dali pra frente, porque meu avô faleceu, o restante dos meus empurrõezinhos materiais foram financiados pelo empresário de sucesso que é meu pai. Mas dado que esses outros rebeldes privilegiados viviam nessa mesma corda bamba em que vivo, fica difícil me inspirar neles. É estranho dizer isso, mas a vista lúcida da semelhança me impede nesse caso a construção de uma identificação. Ou pelo menos de uma identificação que pudesse inspirar, gerar autoestima.
Essa falta de identificação com autoestima e essa busca radicalmente rebelde não são acidentes de percurso. São parte de uma escolha consciente minha, talvez até de uma imposição das minhas circunstâncias para além do meu poder de escolha. Meus privilégios eram materiais e de classe, mas havia precariedade e disfuncionalidade emocional intensíssimas no meu contexto de infância (algo que inclusive me impeliu à rebeldia como algo muito menos “escolhido” a princípio do que às vezes nesse ensaio faço parecer). Mas mesmo se for esse o caso, fato é que eu pude reagir aos meus traumas sendo rebelde sem ser punido e traumatizado mais ainda por isso.
A autonomia, o questionar e quebrar identificações, são portanto para mim algo de uma loucura peculiar que só faz sentido dentro destes certos contextos extremamente particulares e específicos não só de como fui criado, mas dos traumas que tive, do acesso aos estudos e terapia que tive, e inclusive das oportunidades para ser assim que partiram das minhas circunstâncias… e também um pouco de certa sorte.
Volta e meia estudo os romanos e os egípcios. É gostoso para mim ver os primórdios do registro histórico dessas grandes civilizações. Descobri recentemente que se argumenta que a primeira pessoa registrada com um nome na história escrita talvez tenha sido Iry-Hor, um faraó do Egito. Porque meu nome é Rodrigo, fiquei feliz de saber que o hieróglifo do nome desse faraó, a primeira pessoa individual da história humana a ser escrita lá nos cafundós de mais de três mil e cem anos antes de Cristo, podia ser lido também como Ro. E durante séculos depois disso, só quem aparece nos registros egípcios e sumérios da história humana, com uma individualidade mesmo que mínima ao terem pelo menos nomes, são os reis, os generais, quando muito os burocratas. Sempre homens. Sempre no topo do topo de qualquer sistema de poder no qual existissem. E saber disso me remove qualquer gozo maior que pudesse existir em pensar no Iry-Hor que tinha um nomezinho parecido com o meu e foi o primeiro a ter um nome. Vai saber quais atrocidades ele cometeu…
Nos romanos, é gostoso demais acompanhar as jogadas políticas e retóricas de Cícero. Muito boa aquela história dele jovem ganhando um caso de vida ou morte, em que um cara seria torturado do jeito mais absurdo e brutal possível se fosse injustamente condenado. Por defender esse romano, o próprio Cícero corria um risco de tudo ou nada porque se perdesse cairia em desgraça e talvez acabasse morto. Mas Cícero também era a seu modo um aristocrata, defensor ambicioso dos seus próprios privilégios, e tanto quanto foi competente em salvar um homem de tortura injusta para ganhar um caso que fez seu nome, tenho certeza que ele poderia ter condenado outro homem à mesma tortura, usando da mesma retórica, se isso avançasse mesmo que um cadinho só a sua agenda.
Boécio foi um filósofo romano cristão que nasceu logo depois do que é convencionado como o fim de seu império e que escreveu na prisão enquanto esperava ser morto. Ele é um poético fim a um legado específico de gênios, um dito “último romano” no sentido convencionado aos intelectuais do funcionalismo público, competentes e de legado aristocrático, um legado que foi corroídos pela invasões bárbaras de sua época.
Boécio era alfabetizado e educado para escrever bonita filosofia e lhe foi permitido e viabilizado escrever isso na prisão enquanto esperava morrer. Seu legado filosófico foi preservado por milênios e foi relevante para a escolástica e, portanto, também para o início das universidades. Bonito, trágico. Até pensarmos que frente ao conforto da morte digna e articulada de um Boécio escrevendo bonitinho numa prisão, há as centenas de milhares de mulheres, crianças, escravos, plebeus, que experimentaram aquela época de “fim” do império romano com muito menos lirismo. Não dá pra ter melancolia filosófica sendo arrebentado por um machado bárbaro no meio da rua, sendo escravizado, sofrendo violência sexual de estranhos que invadiram sua vila… E essas vozes todas, que devem ter gritado bem mais alto do que o tom d resignação digna de Boécio, essas vozes na história acabaram caladas.
Mulheres romanas não tinham nome. Na família de Júlio César, eram todas Julias, não porque eles achasssem o nome tão bonito assim, mas porque era um jeito de demarcar propriedade, pedrigree. Nesse sentido, para uma Julia da família imperial, que era tão privilegiada quanto uma mulher podia ser naquela sociedade, não havia nem a dignidade de um nome. Minha cachorra é uma border collie com o nome Sunna e nesse sentido tem mais dignidade do que tinha uma mulher romana. O Julia que uma moça imperial tinha era mais próximo ao descritivo de raça “border collie” que marca na minha cachorra uma linhagem. As Julias romanas tinham raça, não nome. Quando eu tentei procurar uma Virgínia em particular da qual me lembro, uma que foi a primeira a tentar exercer algum poder político mínimo dando um pouco mais de dignidade às mulheres romanas por vias escusas, a única Virgínia que achei (exceto numa nota de rodapé mencionando aquela que procurava mesmo) foi outra, a Virgínia que foi morta pelo próprio pai para “recuperar sua dignidade” depois de ter sido violada por um terceiro.
A história romana é um pouquinho maior no sentido de pessoas que dela participaram do que foi a dos egípcios antigos. Além dos imperadores e faraós, aqui temos um pouquinho a mais de um relato o outro de plebeus, um leque mais abrangente de aristocratas. Um personagem menor dos registros históricos é um certo Jesus que acabou crucificado, que aparece nas notas romanas como pouco mais do que um registro de rodapé, só mais um numa longa lista. Fora da Bíblia e dos textos dos cristãos, o Jesus dos registros romanos é uma figura histórica com menção somente no contexto de ter nascido, ter existido, e ter sido crucificado, gerando seguidores a partir disso. Não resumi: isso é tudo que nos romanos é dito sobre Jesus, que era periférico e desimportante demais para receber qualquer detalhe para além disso.
Quantos outros, como ele, não nasceram, existiram, foram crucificados (ou torturados de outras formas ainda piores dos jeitos horríveis que só os romanos tinham criatividade sádica o suficiente para inventar) e terminaram perdidos, sem nem nome? Quanta da gente sem nome da história romana — plebeus, marginais, escravos, mulheres — não poderia ter sido tão impressionante na retórica quanto Cícero se tivessem tido a oportunidade de jogar o mesmo jogo?
Os gênios que conhecemos ao longo da história são sempre os privilegiados porque qualquer outro gênio fora do privilégio é sempre calado pelas circunstâncias. Os mais privilegiados e geniais dos brasileiros, inclusive, são ainda na história dos gênios privilegiados do mundo quase como Jesus na história romana, uma nota de rodapé no cânone oficial do poder. Porque mesmo o português nos isola, até Machado de Assis, nosso gigante da literatura, não é ninguém para o mundo que ultrapasse nossas fronteiras, nada para além de uma excentricidade irrelevante de um paiseco insular.
Então estudar história para mim é gostoso, mas não é necessariamente inspirador. Para cada Cícero que me diverte, para cada Boécio que me inspira, fico pensando em quanta gente não pode divertir ninguém, nem inspirar ninguém, porque foi silenciada ou morta pelas circunstâncias.
Neil Gaiman, um autor de livros e quadrinhos. Cresci inspiradíssimo por ele, fui um fã de primeira categoria de Sandman durante toda minha adolescência. Recentemente ele recebeu diversas denúncias de assédio sexual e abuso de poder que me parecem suficientemente convincentes e que desconstruíram para mim a figura. A banda The Killers, um rock indie bem brega que eu gostava bastante quando era moleque. Woody Allen. Jack Kerouac. A lista dos heróis com quem podia me identificar em nosso privilégio compartilhado, esses homens que tive como referências e que depois me desiludiram, vai crescendo ano a ano. Até personagens ficcionais vão perdendo a potência porque o individualismo do Harry Potter que me fez ter força pra lidar com a disfuncionalidade da minha família quando criança vai sendo lascado e ofuscado por mais ceticismo político e pela minha insatisfação absoluta com o que fez de si a sua autora — que como mulher também exerce e representa a mesma alienação de privilégio que estou aqui mencionando.
Há ainda homens do privilégio que me inspiram? Com certeza, mas com ressalvas. Meu avô, que não foi perfeito nunca, sendo essa sua beleza porque sempre evoluiu até morrer. Aliás meu pai, sim e também, com sua pragmática ambição que o tirou do nada com trabalho honesto. O ermitão, enquanto arquétipo. Hesse, o escritor alemão, Shakespeare, pelas peças ambíguas, Pessoa pela poesia, e Jung, apesar de suas limitações. Bolaño, o autor chileno, e o já mencionado Machado de Assis. Foster Wallace, Kafka. Lennon, com sua vulnerabilidade para criticar inclusive a si mesmo, e Van Gogh por suas cartas apaixonadas pelo mundo. Assisti um show do Paul McCarteney recentemente e meu vínculo emocional profundo com esse homem me fez perdoar sua voz rouca pela idade. Teve algo de simbólico, entre a ironia e o lúdico, em vê-lo subir ao palco com uma bandeira do Brasil, outra do Reino Unido e outra dos LGBTQIA+. Há algo para mim de maravilhoso no pastiche anacrônico de um bilionário inglês branco, hétero, casado e de oitenta anos, e as bandeiras das disputas progressistas atuais que ele segurava nas mãos. Um bom exemplo, inspirador possivelmente, de como usar sua plataforma e privilégio para antagonizar o conformismo. Mas com todas as concessões do capitalismo em suas canções de vovó em inglês…
Mas a verdade verdadeira é que vejo essas inspirações, as poucas que sobraram inclusive, como algo a ir desconstruindo mais. Vivo antagônico às identificações numa busca por liberdade. Sei bem o que se identificar aos rebeldes privilegiados, especialmente os do passado, fez aos rockeiros, por exemplo. Meu pai consegue num só fôlego cantar o hino hippie em favor dos direitos gays If You’re Going to San Francisco, esvaziada de qualquer significado inclusive porque ele não fala inglês e não se importa com o contexto, e no momento seguinte defender a moral e os bons costumes. No show do Paul McCartney tinha gente rica o suficiente para me deixar com a certeza de que muitos ficaram incomodados com um gesto tão inofensivo e pouco subversivo quanto um bilionário inglês e branco de oitenta anos segurando uma bandeira de diversidade sexual.
E posso dizer, como alguém que vive nesse estado, que para mim em particular ter a chance de viver assim é uma grande oportunidade. Não tenho nenhum orgulho a proteger dos meus ascendentes alemães, portugueses, espanhóis, italianos, não me ofendo ao criticar a selvageria das fases coloniais da história desses povos, porque não me sinto vinculado a nenhum deles para além das consequências materiais do fenótipo, do sobrenome, do meu herdado lugar social. E essas consequências observo com pragmatismo cínico, com um senso de sobrevivência nas minhas fases precárias e de subversão quando estou mais confortável, não como uma fonte de orgulho ou inspiração. Entre os meus, vivo sem heróis.
E sendo bem sincero, faço isso antes por minha jornada particular, um caminho existencialista de um radicalismo individuatório que deseja desvincular-se de mitos que possam me alienar com qualquer critério oferecendo conforto em troca. Não faço pelas implicações políticas, inclusive fazia jovem (quando rebelde e bobo), muito antes de entender que essas implicações políticas existiam. Quando eu me disse ateu com doze anos de idade, fiz isso porque vi nisso rebeldia e liberdade, porque vi nisso meu caminho livre do que tentavam me impor, e não fazia a menor ideia das implicações políticas que isso tinha. Só adulto, revisitando memórias, reparei nas óbvias consequências que isso teve nas minhas à época já bastante desgastadas relações com a comunidade luterana do colégio particular que eu frequentava.
Quando me “visto bem”, quando vou arrumado a uma reunião de trabalho, não consigo tirar autoestima do reflexo que vejo no espelho. O que vejo é uma imagem de submissão. Eu tirava um tipo paradoxal e mais profundo de autoestima ao me ver no espelho do mercado com a barba desgrenhada, usando chinelo de dedo e uma camisa toda rasgada. A autoestima que só existe em negar qualquer critério externo que tentasse condicionar migalhas de autoestima a obedecer as regras dos outros.
Porque essa poética me agrada, porque essa é a oportunidade particular que vejo como principal e única enquanto oportunidades das quais disponho por meu privilégio, posso dizer que não é exatamente o estado de ser mais confortável. Faz sentido para mim que o uso mais privilegiado do privilégio é este, o de não se submeter. Mas isso está próximo da autossabotagem e, se me demanda esse texto longo e complicado pra tentar explicar (e um ensaio de cento e cinquenta mil palavras no qual tentei aprofundar minha visão sobre identidade anteriormente), dá pra entender que não é algo exatamente acessível. Aliás, é algo que parece alienígena, incompreensível para a maioria das pessoas mesmo quando tento explicar de jeitos muito mais simples do que tenho feito nesse texto.
E não é uma questão só de complexidade, nem de inteligência. É uma questão de deslocamento cultural e, reitero, de privilégios. Confrontar minha vulnerabilidade cara a cara é um privilégio. E fazer isso sem ser punido também. Posso justificar a inconveniência quando o que faço contra as normas parece subversivo, como ir ao mercado de pijamas, mas conheço homens privilegiados que são inconvenientes de jeitos conservadores, como quando dão cantadas em desconhecidas na rua ou atendentes de restaurante, ou quando atendem o celular no meio do cinema. O motivo deles não serem punidos por isso é o mesmo que o meu.
Viver com a perspectiva de que nada me garante nada, de que posso morrer amanhã por qualquer arbitrariedade, abraçar que minha identidade enquanto homem não me entrega inerentemente nenhum valor convencionado que possa proteger meu ego enquanto algo valoroso ou meu lugar no mundo como protegido da desgraça (aquela desgraça incontrolável, improvável pelo privilégio mas ainda possível, aquela da qual nem o privilégio protege), essa perspectiva é difícil. Eu acho que a mantenho quase por maldição. Às vezes, frente a dores muito grandes como a que senti como quando meu avô morreu, eu quis ter uma visão mais conformada, inclusive religiosamente conformada. Participar de uma comunidade espiritual dogmática que me desse pertencimento, explicasse minhas tragédias e me desse um norte e uma bússola moral simplificada. Seria ótimo. Mas não consigo.
Estava lendo Galeano esses dias também. Em Veias Abertas da América Latina, vou me identificar e inspirar em quem? Em Cortéz? Nem se eu quisesse o tal conforto do pertencimento acho que conseguiria me colocar nesse lugar. Não há autoestima a ser conquistada que me levasse a tentar defender ou suavizar certas coisas.
O interessante dessa posição é que, porque não envolve potência simbólica, não permite nem mesmo uma potencialidade de redenção. Se eu demonizasse Cortéz, por exemplo, e se eu me vinculasse com ele, poderia fazer parte do movimento dos salvadores brancos que veem um romanticismo revolucionário no privilegiado médico Che Guevara abandonando sua família, lutando país a país para libertar seu continente enquanto funda nações que muitas vezes vão degradar em novos tipos de autoritarismo. Mas não é também meu caso.
Não tiro potência simbólica também no romantismo de um Trótski, por mais bonita poeticamente que seja a ironia de sua tragédia frente à traição que sofreu de Stálin, ou o contraste de seu pragmatismo desumano e burocrata de quando teve poder em relação à jovialidade revolucionária que teve antes enquanto intelectual marginal e perseguido. Embora eu carregue minhas visões políticas, que costumam ser mais progressistas, nem mesmo a autoestima da identificação nesses ditos heróis revolucionários me inspira. São todos também limitados e problemáticos a seus modos e, mesmo que não fossem, mesmo se enquanto símbolo eu achasse algum inspirador perfeito e irredutível, simplesmente não é isso que estou buscando.
Imagine um menino que tirou a nota mais alta numa prova, mas só porque proibiu que qualquer outra pessoa competisse com ele. Ou com um jogador que se gaba por vencer todos os jogos usando um dado viciado. É mais ou menos assim o lugar dos homens na história. Tenho sim certa inveja de quem pode dizer que venceu um jogo de dados contra alguém que usava dados viciados, mas esse não é um lugar do privilégio. Há símbolos heroicos com toda certeza, mas o privilégio é quase antitético a qualquer heroísmo porque presume um azeitamento trapaceiro em qualquer disputa, algo que me parece feio demais quando confrontado honestamente.
Para cada Cícero, quantas não foram as Julias impedidas por Roma de jogarem o mesmo jogo?
4. Uma oportunidade sem precedentes para ser corajoso pela vulnerabilidade
É um lugar árido, esse lugar do privilégio masculino que pode matar seus próprios heróis. É meu lugar, então posso dizer com propriedade: é árido, muito.
Para mim, é uma oportunidade estar nesse lugar árido, mas é só porque sou maluco. E só posso ser maluco desse jeito, reitero e reforço, porque sou muito privilegiado. Acho que é uma certa forma de coragem, sim. Existir individuando-se, desvinculando-se, caçando identificações para desconstruir, vivendo com o mínimo do mínimo de autoestima derivada de identificações, só com aquele restinho que te impede de ficar lelé, e ao mesmo tempo performando cínico a conformidade quando for necessário por uma ambição, ou por sobrevivência. É uma força, essa de estar sempre frente à frente com a própria vulnerabilidade, sem tentar ocultá-la com algum símbolo de herói, de tradição. É o que me permite chorar sem ter vergonha, falar honestamente dos meus traumas sem achar que é inapropriado e é o que me permite escrever textos esquisitos com um radicalismo de honestidade como fiz nisso aqui. Pra mim, é isso aí. É meu jeito de funcionar.
Mas dito tudo isso, esse lugar árido é uma expectativa que eu não acho justa colocar nem sobre mim, quanto mais nos outros. É inclusive algo que às vezes tento segurar a barra em implementar comigo porque nisso acabo sendo cruel com minha humanidade e minhas limitações.
Sair desgrenhado pode me dar uma autonomia desse tipo hermético e filosófico, mas às vezes eu tenho que aprender a pelo menos tentar aceitar a submissão de sair de blazer num evento corporativo não só na necessidade prática, mas também na necessidade emocional — para assim conseguir derivar um mínimo de satisfação dum elogio que alguém faça dizendo que estou elegante ou bonito. Preciso também não atender a expectativa idealizada de uma negação emocional ao aceitar que posso, e provavelmente inclusive preciso, me permitir sentir bem ao ser elogiado, ao me sentir bonito ou inteligente, ao chorar ouvindo o Paul cantar com sua voz cansada e rouca a melodia de Blackbird num show.
Não sou invulnerável nem no abraçar corajoso de alguma vulnerabilidade absoluta. Foi tão (ou mais) rígido e cruel ter me comprometido a um ideal de roupas rasgadas e barba desgrenhada para me obrigar a viver sem elogios (ou recebendo e derivando autoestima só meu próprio e exótico elogio existencialista) quanto tinha sido antes o ideal de condicionar minha autoestima a elogios estéticos fazendo a sobrancelha no salão.
Aliás, qualquer coisa que me der felicidade: se no dia que sair todo largado me fizer feliz por um caminho torto no radicalismo do meu autoelogio existencial, que seja. Se no dia que cortei o cabelo curtinho me fizer feliz o elogio da minha vó de que o corte ficou bem em mim, que seja também. Que eu seja feliz quando der, do jeito que der. Alguma felicidade por às vezes me enganar de que meu caminho e minha perspectiva são especiais, que valem de alguma coisa, mesmo que não sejam, mesmo que não valham, mesmo que eu me desiluda disso depois. O sorriso dado não se apaga do tempo quando depois esquecemos, ou quando corrigimos intelectualmente o equívoco.
Sair desarrumado ou arrumado são performances ainda. Para além do que discutimos sobre como essas performances nos impactam socialmente, o que estou defendendo é que num sentido subjetivo possamos encontrar prazer seja lá o que for que estamos performando. E talvez, num sentido mais radical e profundo ainda, encontrar prazer independente da performance externa ser uma ou outra. Prazer como um estado interno que a nada se curva, que não dependa de critérios, que não se curve a fazer assim ou assado, mas que encontre um caminho para fluir — e se conectar — pelo caminho que der, quando um caminho for necessário, ou por caminho nenhum quando assim for possível.
Porque esse parágrafo de cima foi abstrato e poético demais, algo mais concreto: se ninguém mais ler ou ninguém mais gostar, que eu tire alguma alegria, alguma satisfação orgulhosa e prepotente, num pequeno orgulho ao ter me esforçado para escrever esse ensaio esquisito inteiro num surto de inspiração durante dois dias.
Indendente do quanto me conformei no uso do lirismo doce e das maiúsculas, ou do quanto me rebelei no hermestimo prolixo e denso ou nas ideias amargas, antes de alguém gostar ou desgostar, antes de alguém ler ou ignorar, antes do fracasso ou do sucesso, posso tirar prazer do simples escrever. E no fazer mesmo a fantasia duma consequência futura esperançosa (ser lido e elogiado) ainda é um presente que por enquanto independe do depois.
Existe uma coragem vulnerável profunda também em ceder à fraqueza, ao chorar, ao se submeter por querer ser aceito e amado. Existe uma coragem vulnerável profunda em se permitir ser feliz. A coragem de autonomia que menciono não pode ser rígida, mesmo quando árida, porque não pode se conformar nem com essa instância de alta dignidade. Precisa estar preparada para fluir no estado de ser precário, de ser dependente, de ser inseguro e de procurar auxílio, o prazer e o acolhimento do outro, quando as necessidades emocionais assim exigirem.
É paradoxalmente uma aridez intelectual que demanda de si mesma a coragem vulnerável da abertura radical à emoção pura, sem conforto ilusório, mas com o pedir socorro, o amar, o sorrir, o gritar, o chorar, o buscar o outro. E é interessante como ao homem é necessária coragem e uma cambalhota intelectual dessas inclusive para ser vulnerável e emocional desse jeito. É a força de se admitir fraco, o paradoxo de ser corajoso por chorar sem se conter.
Para os outros, acho que essa expectativa impositiva é mais inviável e insustentável ainda porque exige essa emoção em carne viva enquanto oferece pouco em relação a unguentos ou panaceias fáceis que prometam anestesiá-la ou controlá-la. Esse estado é radical e só encontra cura num vínculo com o outro, numa paradoxalmente incondicional condição desse vínculo ao outro, que liberta porque limita, e que isola porque conecta intensa e profundamente demais, para muito além do que o social convencionado costuma entender como apropriado.
Conheço poucos homens dispostos a seguir esse caminho. Os que estão dispostos já fazem isso, aos trancos e barrancos. Para os outros, é preciso ofecer alternativas menos drásticas. O próprio privilégio opera numa escala, em nuances, e se essa exigência de desconstrução do masculino é extremamente desafiadora nos lugares mais privilegiados, fica quase impraticável em qualquer outra situação. Inclusive a romantização da coragem é um problema que pode seguir pressionando rumo a uma possível conformidade mesmo nesse discurso. Seria muito irônico, por exemplo, se homens passassem a chorar só para mostrar que são corajosos o suficiente para fazê-lo.
Em termos mais diretos, não tem chance nenhuma de que todos os outros bombados de academia que estão derivando autoestima de se esforçar para ter um corpo Calvin Klein façam de uma vez esse movimento de largar mão dessa conformidade que constrói seu bem-estar, sua autoestima e em certos casos até sua identidade.
Um exemplo ilustrativo disso na minha situação em particular: aos 29 anos, as entradas tem me agourado cada vez mais que estou aos poucos ficando calvo. Por um lado, não quero me submeter à pressão estética de fazer um implante capilar. Sei também que se resolver fazê-lo estarei exercitando meu privilégio em poder gastar caro com um luxo inútil desses. Ao mesmo tempo, calvície é uma das coisas mais ridicularizadas socialmente para homens, algo que vai ferir minha autoestima enormente caso se confirme como meu destino porque eu também internalizei essa regra social. Paradoxalmente, exigir que eu renegue o que sinto num estoicismo rebelde seria também aderente à expectativa para com os homens de que nunca privilegiem suas emoções. Seria justo, ou seria cruel, exigir que eu engolisse minha autoestima e me resignasse a sofrer com isso só porque a alternativa é me conformar? E se meu problema fosse algum para o qual não existe conformidade possível nem pagando (ser baixinho demais, por exemplo), eu deveria sofrer com isso para sempre aceitando as tais regras?
Ninguém é obrigado a fazer nada disso, seja seguir ou abandonar regras que prejudiquem sua vida emocional, seja ao sofrer por ser baixo, largar a academia ou aceitar a careca, só por causa de uma perspectiva radical e purista de coragem que direciona uns poucos esquisitos como eu. Ninguém é obrigado, e na verdade poucos estão dispostos, a renegar radicalmente a conformidade, nem a articular ou considerar o hermetismo das discussões de identidade que estou propondo nesse texto. Lidar com a vulnerabilidade desse jeito é algo que pouca gente quer fazer, mesmo entre os que querem nem sempre é viável, e para os homens em particular isso é mais difícil ainda porque foram condicionados justamente ao contrário, a evitar a vulnerabilidade e a introspecção investindo suas vidas em joguinhos sociais de validação e ambição externa. Para além das implicações práticas, o custo emocional envolvido pode ser alto demais.
Penso num garoto como eu fui aos dezessete anos, sem muitos amigos, virgem e querendo uma vida social e sexual, se tentassem me vender logo de cara essa ideia seca de desistir do jogo sem ganhar nada em nenhuma partida, de seguir sendo estranho e seguir sendo punido por isso por algum imperativo ético ou moral. Se eu não enlouquecesse, isso me levaria a uma vida sozinha e triste. E se eu enlouquecesse, isso me levaria a uma vida sozinha, triste e rendida a alguma ideologia redpill qualquer. O mesmo desespero que leva adolescentes às ideologias de ódio quando fracassam em se adequar aos critérios inalcançáveis das imagens conservadoras de masculinidade existiria aqui, nos critérios inalcançáveis dessa minha radical masculinidade existencialista.
Não só as necessidades práticas não atendidas me afetariam profundamente no sacrifício autodestrutivo de uma resignação absoluta dessas, como também me afetariam profundamente as igualmente não atendidas necessidades emocionais. Aliás, separar essas necessidades no sentido de que uma deveria ser priorizada frente a outra é também parte do problema.
Diante disso, o que fazer? Jogar a toalha?
Eu acho que não, embora a resposta que eu vá dar agora seja algo que domino pouco. Eu acho que alguém tem que inspirar homens de formas mais saudáveis, oferecer alternativas mais saudáveis para els lidarem com suas vulnerabilidades, pelo menos regras do jogo de conformidade menos destrutivas. Mas como deve ter dado para perceber nesse texto, eu não tenho exatamente o perfil para inspirar ninguém, então isso é algo que jogo pros outros.
O que posso dizer, inclusive porque passei por isso, é que existe essa fragilidade particular que define a conformidade às expectativas como uma estratégia de sobrevivência e também de existência. Faz sentido para mim, por exemplo, que os jovens estejam se tornando mais conservadores porque, num cenário de crescente instabilidade e precariedade, são eles os que mais tem a arriscar se forem inventar moda de modular rebeldia ao invés de se conformar às estritas regras do jogo.
Faz sentido para mim também que certos homens insistam em certas performances de masculinidade que não trazem mais as recompensas que deveriam trazer (como o radical masculinista que inviabiliza suas relações com as mulheres tentando se conformar às regras que supostamente deveriam torná-lo atraente ao sexo oposto) porque chega um ponto em que a performance está se conformando não mais à promessa de algum benefício externo, mas a uma estabilidade da própria identidade, do pertencimento ao próprio grupo.
Enquanto puderem sentir que têm uns aos outros e que estão estabilizados em sua visão rígida do que um homem deve ser, certos grupos de homens (como os misóginos de imageboard) vão se ater fielmente às suas perspectivas, mesmo se não conquistarem com isso o que gostariam, mesmo se forem até punidos por isso com ostracismo, repercussões profissionais, solidão, prisão, etc.
É por isso também que esses mesmos teimosos podem recusar outras performances mais socialmente aceitáveis que talvez até trouxessem os resultados que desejam, porque a rigidez purista a um ideal de masculinidade parece mais importante. Inclusive porque o sacrifício de morrer sozinho por algum ideal é uma imagem fácil do imaginário heróico masculino, consigo facilmente pensar num homem que se apega teimoso a uma performance radical e purista de macho tradicional mesmo se acabar sozinho, infeliz e falido por conta disso. E tudo isso a ele vai parecer mais aceitável do que confrontar o próprio orgulho.
Inclusive não preciso só “conceber”. Todo mundo conhece alguém assim.
Esse ensaio tem a expectativa de partilhar minha perspectiva e minha experiência sobre o assunto, não de resolver esse emaranhado complexo a respeito do grande dilema dos homens e dos privilegiados. Mas se posso deixar meus dez centavos sobre, eu diria que a fragilidade que os impele a se conformar deve ser tomada como um pressuposto, uma demanda emocional para a qual se proponham alternativas. Essa demanda emocional não pode ser algo a se destruir, porque é impossível, e é absurdo pedir que todos vivam com o desconforto resignado de não atendê-la e senti-la sempre em carne viva.
Fosse feito isso, seria só uma nova maneira de conformidade, mais exigente e cruel ainda, mais cega ainda ao aspecto emocional, uma pressão que romantizasse o confronto direto, que ordenasse autoritária a desconstrução do conforto conservador da conformidade a um certo jogo de regras ou imagens. Não consigo imaginar exigência mais insustentável que se possa fazer aos homens do que a pressão para se desconstruírem inteiros, para matarem todos os seus símbolos e heróis, sem colocar nada no lugar.
Podemos (devemos!) matar Cortéz, mas (na minha opinião infelizmente) ainda vamos ter que deixar outro homem subir no palanque. Pelo menos, pode ser algum homem menos detestável…
Um exemplo para o que quero dizer com isso:
Vamos considerar um homem que estabelece uma identificação com um ideal de homem e com uma conformidade a certos critérios que acredita que podem aproximá-lo desse ideal. Digamos, para o bem do exemplo, que ele faz isso porque tem a esperança de que seguir esses critérios, identificar-se com essa imagem do que ser homem para ele simboliza, lhe entregue validação, autoestima, vida sexual, amor, sucesso financeiro, talvez um casamento e filhos, pertencimento, amigos. Diante disso, a solução não é certamente desconstruir a identificação, a esperança de estabilidade da imagem, a conformidade às regras, e obrigá-lo a se confrontar com a verdade nua e crua de que nenhum jogo e nenhum símbolo, nenhuma conformidade a nenhuma identidade, lhe garante ou sustenta a esperança de pertencer, de ser amado, de ter autoestima.
Num sentido existencialista, que é aquele que assumo, isso pode ser até verdade.
Tenho algumas desses coisas (o amor, os amigos, alguma estabilidade financeira) sem a estabilidade da identidade, sem me conformar à identificação simbólica e às regras do jogo. E tanto quanto é possível conquistar certas dessas coisas sem as regras do jogo, ou pelo menos usando das regras do jogo de forma pragmática e cínica, eu afirmo que seguir as regras do jogo de forma “honesta” não garante nada.
Nada garante que alguém vai ser feliz, bem sucedido, encontrar o amor, vencer a solidão, encontrar um propósito para a vida, só por estar performando convincentemente a masculinidade de acordo com as regras do jogo de algum grupinho determinado. Mesmo quando isso traz resultados materiais — como me trouxe várias vezes quando me esforcei nisso — , o que sobra por baixo do teatrinho de brincar de machão é um vazio profundo nas coxias. Não foi me conformar a nenhuma regra do jogo, nem nenhum prêmio externo, que me ajudou com esse vazio. O que me ajudou foi introspecção, vulnerabilidade honesta.
MAS essa perspectiva sem garantias de nada é, uma última vez, árida. Não é para todo mundo. Se alguém quer esperança e mais estabilidade do que isso, não julgo nem um pouco. O que se pode se propor nesse caso são alternativas, jogos menos destrutivos que ofereçam as mesmas esperanças. TALVEZ você possa obedecer às regras do jogo para ser desejado sexualmente fazendo academia e se vestindo bem, MAS sem precisar destruir sua saúde tomando esteroides nem arruinar sua conta comprando um tênis caro em dez parcelas. TALVEZ você possa obedecer às regras do jogo para ter uma vida sexual tendo um carro que vai usar para levar quem sai com você num restaurante e no motel, MAS esse carro talvez não precise ser uma Ferrari que você vendeu sua casa pra comprar. TALVEZ a dignidade e estabilidade do homem enquanto identidade esteja mais no trabalho honesto, sei lá, em algum desses símbolos mais estoicos que associam à masculinidade, do que na ostentação do consumo. Talvez você possa se validar mais como um homem por ser íntegro e digno, por não bater em mulheres nem trair sua parceira, do que por ter ciúmes autoritários, gostar de esportes e ter um pau.
Ou sejam, um homem PODE ser amado, respeitado e acolhido sem precisar ter que bancar o machão. Pode ter conexões e ser visto como digno abandonando esse papel, sem a ansiedade de ter que ficar sem papel nenhum, ou condicionado ao papel igualmente exigente de uma desconstrução existencialista ao estilo Bo Burnham em Inside. Eu posso querer viver sem heróis, mas sou o primeiro a admitir que isso é difícil pra caralho e que se ninguém oferecer outros heróis viáveis e civilizados para as pessoas, os heróis malucos do estilo coach picareta redpill, ao estilo Marçal ou aos ainda piores do que ele, vão continuar brotando para atender a demanda.
Os novos papéis propostos aos homens precisam exigir o mínimo (não bata em mulheres, não minta, lave sua bunda direito) e só vão ser viáveis se não exigirem o máximo, se estiverem numa nuance que é verdadeiramente viável a uma parcela significativa dos homens atenderem o que está se exigindo com a capacidade de articulação, pensamento e vida emocional que possuem. E como o emocional dos homens é particularmente subdesenvolvido, nesse sentido a jornada vai ser longa. Enquanto os homens forem analfabetos funcionais emocionais, vão passsar primeiro pelo O Pequeno Príncipe das emoções, muito antes de se poder exigir que leiam e absorvam o radical equivalente emocional de um Finnegans Wake. O equivalente emocional de um Joyce é algo que, se forem fazer (e só “se” porque ninguém é obrigado), é algo que só vão conseguir considerar depois de um mestradinho de terapia, uma instensa crise existencial de base e um baita desconforto emocional em confrontos com a incerteza e a vulnerabilidade. Não é tema duma primeira aula, nem é aquilo urgente de se reconsiderar por agora.
Aliás, o Finnegans Wake literal ilustra também o exemplo porque não li: ainda me intimida e foi o que me pareceu apropriado como metáfora só porque conheço bem a sua fama. Não li porque acho que ainda sou burro demais pra tentar ler. Vale lembrar que por conformidade e medo de morrer de fome fui fazer Publicidade, não Letras.
Esse é um exercício coletivo porque as regras do jogo não se mudam sozinhas. Depende inclusive em boa parte das mulheres fazerem pressão criando novas regras em diferentes jogos de conformidade que forem exigir dos homens. E para isso é importante inclusive que as exigências das dinâmicas sexuais, quando forem para além de uma noitada, passem a considerar ter pelo menos o nível de leitura do Pequeno Príncipe emocional, não só ter um tanquinho sequinho com gominhos.
Acho que coletivamente o que estou tentando propor é isso: para alguns desconstruir o jogo pode ser um caminho, mas para outros o caminho deve ser o de jogos mais sustentáveis e menos destrutivos. Para além dos desejos de algumas posições progressistas das mais radicais, a bem de verdade a identidade dos homens, e a identidade de todos os papéis de privilégio, está longe de acabar, de ser absolutamente desconstruída.
E para fora desses círculos acadêmicos ou muito ativistas, acho que mulheres no geral, para usar o exemplo de uma das classes mais vinculadas, estão aliás até mais acostumadas com a incompetência e limitação dos homens. Porque são também mais abertas às próprias vulnerabilidades, já nos exigem pouco enquanto grupo social no que diz respeito às emoções. O risco de exigirmos o Finnegans Wake emocional de um homem com nível de leitura emocional de uma criança de cinco anos parte mais das pressões de outros homens, os grandes mártires e heróis desconstruídos tentando emplacar o jogo com as regras que eles mesmos dominam.
Eu mesmo, com todas minhas desconstruções de autoestima, digo que por uma simples convencionalidade não me sinto incomodado com meu lugar de meio do caminho, nem sinto que devo desculpas a ninguém por ser quem sou — e isso extremamente ciente dos legados social e histórico de ser quem sou, legados que não fui eu quem construí sozinho e que não podem arrebentar com a viabilidade mínima do meu bem-estar.
Ser crítico a respeito das implicações da minha existência num determinado papel social é diferente de pedir desculpas por existir, ou de considerar que minha existência é inerentemente um erro, ou que estou restrito a ser conformado ao que recebi enquanto legado como papel social, ou ainda a me conformar a existir só como rebelde a negar esse papel social o tempo todo — ou seja, só existir nessa esfera política. Fazer isso, olhar para mim apenas enquanto símbolo ou enquanto produto social e histórico, seria trair meu potencial de ser (e mais importante ainda, de sentir) como pessoa, como gente com limitações, emoções, desejos.
Eu me identifico com ser homem tanto quanto me identifico com ser Rodrigo, ambos como papéis que me foram dados e que nunca me senti desconfortável ou ofendido a desafiar (inclusive porque, num sentido bem pragmático mesmo, as prioridades que eu tinha eram outras e desafiar isso só por capricho ia ser só outra complicação pra minha vida já atribulada). No mesmo sentido pragmático, vivo um de um jeito autêntico meu relacionamento monogâmico porque é um lugar em que me sinto seguro, sem nenhuma vontade de experimentar com isso — de novo, minhas prioridades na vida são outras e seria uma performance de minha parte tentar me obrigar ao contrário só porque sim.
Quem me vê na rua vê um homem branco, de classe média, heterossexual e casado. E sou mesmo tudo isso. Mas não preciso de um coach redpill, de um conservadorismo bolsonarista patriarcal, para me proteger nessa posição, ou para defender que eu deveria ser mais rígido nesses papéis a algum ideal conservador qualquer. Pelo contrário, para mim é até melhor que essa seja uma identidade porosa. E tudo que se diz que um “macho” deve ser — saber de futebol, falar grosso, ser autoritário e patriarcal, buscar esse sucesso do carrão e do tanquinho — para mim é supérfluo, tolo.
Eu também não precisaria de uma perspectiva (que socialmente praticamente nem existe) dizendo que minha identificação enquanto homem é algo a ser exterminado. Estou no meu próprio tempo e a meu próprio modo tentando me desconstruir no que quero e no que posso (a calvície ainda é um grande dilema).
As regras do meu jogo são mais leves porque em ser homem sou se muito um jogador casual. Mas não faço questão nenhuma de implodir o jogo se este se tornar mais saudável e justo. Um jogo que, por exemplo, torne-se abrangente para abarcar os homens transsexuais, não um jogo que imploda a possibilidade de ser homem absolutamente.
Logo: nem radical ao ponto de usar de regras muito rígidas, nem radical demais ao ponto de exigir que o jogo todo deixe de ser jogado.
Ao invés de pedir “desculpas por ser homem”, ou defender o “ser homem” do jeito quebrado que este papel se apresenta hoje, ou ainda tentar exterminar a identidade “ser homem” absolutamente, acho mais viável e produtivo propor alternativas melhores a esta identidade, um “ser homem” que se justifique em existir como algo mais saudável e sustentável.
Esse é um compromisso que acho mais viável para considerar em larga escala, independente da minha própria aridez filosófica e das desconstruções profundas dos papéis de gênero nas profundezas incompreensíveis dos ativismos progressistas mais radicais ou dos estudos acadêmicos de gênero aos leigos (inclusive porque nos leigos há uma resistência a sequer tentar começar a considerar esse nível de conversa).
Eu acho que sou forte e corajoso por tentar ser honestamente vulnerável e por não bancar o machão para tentar conquistar alguma validação dos meus coleguinhas que pudesse me distrair da minha introspecção e das minhas inseguranças. Mas é também um papel injusto que deve ser abandonado esse que pressupõe que todo homem precisa buscar força ou coragem, mesmo se for desse tipo. Para um homem que queira se inspirar em alguém como o McCartney, por exemplo, acho que tá tudo bem. Homens enquanto projetos de inspiração precisam existir aos montes para quem tá buscando por isso. Eu só gostaria que eles não fossem do tipo que tem sido nas propostas do masculinismo channer.
Preciso fazer um ponto que infelizmente sei que vai ser lido como uma indulgência infantil, mas foda-se, é algo importante de se demarcar e não me importo o suficiente pra tentar caçar outra metáfora. Como disse antes, não sou bom para inspirar, diria que sou incompetente e birrento demais para tal, e provavelmente não sou a pessoa adequada para pensar num Pequeno Príncipe emocional porque, pelo menos nas minhas ambições menos modestas, na esfera esmocional estou querendo bem mais brincar de Joyce. Digo isso ciente de que mesmo como metáfora poucas coisas nesse ensaio são tão vulneráveis quanto o ridículo de sugerir que sequer posso brincar disso dadas as minhas sempre presentes limitações, dado inclusive que nem ler Joyce eu li ainda.
Mas valorizo e defendo que alguém tem que ser Saint-Exupéry nesse contexto, que sem essa pessoa existir provavelmente ensaios que nem esse aqui vão continuar incompreensíveis para muitos homens e que provavelmente esse alguém no papel de Saint-Exupéry vai ser muito, MUITO mais importante do que eu.
E para isso é importante que outros homens ofereçam inspirações alternativas, um meio termo que não escancare logo de cara a porta que exige a desconstrução do homem enquanto símbolo por inteiro devido aos muitos crimes perpetuados por interpretações desse símbolo.
Porque a demanda para esse símbolo não vai morrer, é preciso ao invés de destruir o símbolo inteiro, oferecer interpretações novas. Uma regulação sustentável e responsável das ofertas de símbolos para ser homem sem achar que isso precisa ser validado e defendido com as mesmas regras violentas e antigas de sempre.
Eu acho que já me empolguei e acabei escrevendo muito mais do que queria no começo. Ficou abstrato pra caralho aqui pro final, mais do que queria, porque sempre que me empolgo vou para esse caminho. Vou parar por aqui.
Para fechar:
Aos privilegiados dispostos à rebeldia, que subvertam o que for possível sem sacrificarem sua autoestima, sua saúde mental, sua sobrevivência e talvez mantendo um detalhe de sua ambição. Aos privilegiados dispostos à conformidade, uma política de redução de danos com novos joguinhos regulados no mercado. Uma bet que pague imposto e tenha que abrir seu código pro governo, no lugar da informalidade caótica do jogo do bicho.
E poesias bonitas pelo sonho daqueles iludidos e esperançosos que (por desejarem toda liberdade, toda aquela liberdade ilimitada e árida que as condições no vínculo com os outros impedem) só queriam parar de jogar. Cientes de que isso é impossível, no mundo de fora esses sonhadores jogam relutantemente e dentro de si tentam parar de jogar todo dia, pouco a pouco.
E ser um homem teimoso sozinho num deserto por alguma visão purista e radical de convicção e de coragem é também um grande símbolo já bastante tradicional do masculino heroico — o profeta monoteísta por excelência. A coragem está em sair desse deserto quando se sentir sozinho, assumindo a própria existência emocional, para sentar numa sala com alguém que ama e conversar, desabafar, chorar, ou pedir um abraço. Ou para participar de qualquer coletivo.
Porque o isolamento é conformidade ao esperado do papel masculino, ao homem é sempre revolucionário o contato com o outro. Eu não comecei a abandonar meu conformismo indo viver como um eremita nas montanhas, fiz isso começando a fazer terapia e contando a verdade sobre minha vida complicada para minha namorada (agora esposa).
É este o paradoxo: deixar a superlotada cidade dos sozinhos rumo ao deserto vazio da coragem não-conformista por pedir um abraço e querer se conectar a alguém.