30

Rodrigo Goldacker
10 min readFeb 21, 2025

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Hoje fiz trinta anos.

Trinta anos. Trinta! Trinta anos.

Trinta. Anos.

Apesar de ter me sentido ansioso para essa estranha e simbólica idade chegar, a bem da verdade já faz um bom tempo que eu não me identificava direito com o que se esperaria de alguém na casa dos vinte anos.

Só porque o planeta vai dando algumas voltas a mais, começa a ser mais socialmente aceitável que eu faça o que queria fazer desde sempre: agir feito velho.

Aos 29, tinha escrito um texto bem longo. Estava bastante reflexivo naquela ocasião. No geral, esse meu aniversário dos 30 chega numa situação em que tenho menos coisas a comentar. Isso de se comprometer a escrever em todos os aniversários necessariamente significa que estarei mais inspirado em alguns anos e menos inspirado em outros.

É portanto de uma boa ironia (que inclusive contribui para a descontrução do aniversário de 30 anos com todo aquele peso que supostamente teria) que eu comece minha nova década querendo ser sucinto.

Então vamos lá, sucintamente, dizer algumas coisinhas.

Primeiro, pensei que alcançar os trinta seria uma oportunidade boa para escrever mais demoradamente sobre o que foi a década como um todo, talvez até o que foram como um todo as três décadas até aqui. Mas vou acabar fazendo isso em outro formato no futuro e acho que não é o que queria escrever por agora.

Mas sobre isso, acho que só o contraste entre o começo e o final explica bem:

Meu aniversário de 20 anos aconteceu num cenário quase pós-apocalíptico, em que minha família estava aos frangalhos, eu mal conseguia me segurar na faculdade, não tinha ainda nenhuma perspectiva profissional consolidada, tinha recentemente levado um pé na bunda sofrido e ainda vivia o luto prolongado pela morte do meu avô no ano anterior.

Neste aniversário de 30 anos tenho uma carreira mais ou menos estabelecida e felizmente nunca fiquei sem trabalho desde quando arranjei meu primeiro estágio, aos 21 anos. Sou casado e bem feliz em dividir minha vida com alguém que amo muito. Para além da faculdade, fiz uma pós-graduação e um mestrado. Nesse semestre, vou dar aulas pela segunda vez. Consegui resolver tanto quanto era possível uma diversidade de problemas familiares que foram às vezes gravíssimos e hoje estamos todos relativamente estabilizados. Minha rotina envolve trabalhar de casa, fazendo meu próprio horário, investir nos meus projetos pessoais de escrita e estudos, passear com minha cachorra diariamente pelo bairro, caminhando ao menos durante uma hora. Nos últimos anos tenho experimentado, pela primeira vez desde que era muito criança, algo parecido com estabilidade, com paz, com uma rotina que me faz feliz.

Existe um limite de quantas formas posso dizer que venho sendo feliz. No aniversário de 29, eu tinha mencionado que estava começando a fazer pazes com minha própria alegria e agora eu posso dizer que nesse último ano tenho finalmente me acostumado com ela, tornado essa alegria realmente uma base diária. Ao mesmo tempo, o sossego me deu a oportunidade de finalmente me confrontar com certas introspecções mais profundas, muitas delas desconfortáveis, com as quais eu não teria tido condições de me confrontar em outro contexto mais atribulado como era o meu anteriormente. Embora emocionalmente vacile nessa ideia, racionalmente estou ciente de que a estabilidade é também uma oportunidade de crescer de novas maneiras: agora que resolvi minha carreira, minha família, minha rotina, os problemas de primeira ordem, posso esbanjar do meu tempo para me resolver. Por isso tenho medo, também, de perder essa paz antes de conseguir me aproveitar dela.

Vivi bastante ansioso durante a idade que terminou, fosse pelos resultados daquilo que já fiz, fosse pelas sementes do que tento fazer daqui em diante. Para contrapor a felicidade tranquila (principal marcador positivo da idade que abandonei), a ansiedade foi meu principal marcador negativo.

Pode parecer meio paradoxal (e é), essa história de viver uma idade dividido entre felicidade tranquila e ansiedade. Mesmo assim, foi isso que vivi. Dar aulas pela primeira vez me fez feliz, mas ansioso. Ter meus livros mais em evidência e lidos por mais pessoas me fez feliz, mas ansioso.

Ter alcançado os 30 em mar calmo me fez feliz, mas ansioso.

Persiste a mentalidade do modo de sobrevivente, forjada no ferro e fogo das minhas tragédias passadas. Quando o mar está calmo, fico com medo de desaprender a manha para lidar com tempestades. Quando novamente as águas embravecerem, vou ter condições ainda para lidar com o revés das marés? Às vezes, sinto que já não tenho a mesma energia que tive mais jovem para conseguir enfrentar qualquer monstro marinho. Dependendo do que vier, talvez eu me afogue.

Aproveitando a deixa para falar de outras dualidades paradoxais, quero comentar das duas reflexões mais importantes que vieram na minha cabeça nessas últimas semanas. Guardei ambas para mencionar nesse texto aqui.

Ambas tratam do que talvez sejam meus principais dilemas como pessoa, dilemas estes que seguem em aberto e talvez sigam em aberto pra sempre.

Em primeiro lugar, porque se associa com o que disse agora sobre os custos do que já passei de difícil: existem também benefícios em ter vivido uma vida como a que eu vivi. O que me deixa feliz hoje ao olhar para essas décadas é considerar um equilíbrio entre minhas bonanças e desgraças, meus privilégios e minhas precariedades. Esse estado liminar me deu a oportunidade de viver algumas das coisas mais terríveis, mas sem quebrar. E também me deu a oportunidade de viver algumas das coisas mais felizes, mas sem me alienar do mundo.

Quando me comparo com pessoas que tiveram vidas mais precárias do que a minha, é inevitável pensar que eu tive muita sorte e muita ajuda para conseguir sair de certos buracos. Eu me esforcei muito ao longo dessa década para que meus projetos dessem certo, mas nenhum deles teria ido para frente sem a ajuda de todo mundo ao meu redor — amigos, familiares, professores, quem trabalhou comigo. Meus privilégios todos em mais de uma ocasião me salvaram de quebrar como pessoa. Para além de qualquer resiliência que eu possa ter, acho importante marcar que se superei meus problemas, fiz isso quase sempre com suporte.

Por outro lado, conheço muita gente que teve vidas mais estruturadas e confortáveis do que a minha e sinto que essas pessoas também perderam algo. É difícil entender a dor do mundo, as complexidades da empatia com quem está em outras situações mais frágeis, quando você vive como príncipe numa torrezinha de marfim. Há uma série de equívocos que os privilégios que tive só não me seduziram a cometer porque eu podia contrapor a estas bonanças o que eu sabia sobre o lado feio do mundo.

Se tivesse que pensar numa única coisa que foi determinante na minha vida até agora, algo que me define absolutamente, serria isso. Uma mistura suficientemente equilibrada entre sorte e azar, privilégio e escassez, miséria e bonança, alegria e tragédia. Nada demais nem de um lado nem do outro para romper a corda que mantém esses polos ligados. Nada para me mergulhar na psicose do prazer irresponsável e cego, nem para me afundar na desgraça sem esperança.

Quando eu entrei nos vinte anos, no que era talvez a época mais precária e apocalíptica da minha vida, eu estava muito mais calmo e confiante do que as circunstâncias pragmáticas da minha vida diziam que eu deveria estar. Eu tinha tido um insight profundo logo no finzinho do ano anterior, algo tão potente que apesar das vegonhas eu sempre chamei de uma epifania. Porque a ideia de alguém ter uma epifania aos dezenove anos é ridícula, fui justamente desacreditado durante a década que se seguiu quando insisti que tinha sido isso que aconteceu comigo. Mas mesmo antes dos resultados começarem a aparecer, eu tinha uma confiança muito otimista, uma esperança que de tão concreta nem parecia esperança (parecia mais constatação). Eu sabia que, porque eu tinha dado um pontapé resolvendo meu lado de dentro, “arrumando minha casa” subjetiva, o resto dali em diante seria “”consequência.

Às vezes, uma transformação interna acontece muito antes, às vezes até muitos anos antes, dos resultados externos começarem a aparecer.

E foi mesmo “” consequência. Foi consequência que dependeu de trabalho, de suor, de lidar com imprevistos. Mas eu nunca fiquei tentado a desistir ou duvidar. Eu acreditava desde o começo que ia dar certo. Se o Rodrigo que fui aos 20 anos visse o que aconteceu, se ele visse como cheguei aos 30, acho que ele ficaria feliz, mas não necessariamente surpreso. Ele estava convicto, de uma forma que naquela época ninguém que olhasse para mim poderia estar, que minha vida seguiria mais ou menos como seguiu mesmo. Eu sabia o que queria e sabia que ia conseguir fazer o que precisava. E foi basicamente o que fiz.

Se esse primeiro dilema diz tanto sobre o que recebi até aqui, sobre aquilo que fiz de mim e daquilo que de mim foi feito também pelos outros, o segundo dilema é mais uma constante e uma questão ainda a resolver no futuro.

Diz respeito a um desejo paradoxal que sigo tendo: por um lado, querer agradar, ser validado, ser gostado; de outro, querer ser livre, fazer do meu jeito independentemente da opinião dos outros.

Tenho visto isso muito no contexto dos meus livros. Venho recebendo retornos contraditórios sobre todos aqueles que já publiquei. Para cada retorno positivo que me deixa feliz, vem junto mais ou menos ao mesmo tempo uma crítica que me entristece um pouco. Em outras ocasiões, eu mentiria aos outros (e provavelmente tentaria me forçar a acreditar nisso também) garantindo que não me importo nadinha. Mas não é verdade. Eu me importo em boa medida. Seria desonesto comigo fingir que sou indiferente.

A resposta para meus livros ser tão controversa é um sintoma do fato de que eles foram propositalmente construídos como exercícios radicais da minha liberdade criativa em seu estado mais puro e indomado.

Quero transformar uma história leve numa tragédia brutal, criando um contraste abismal entre tons? Ótimo! Quero fazer o terceiro ato ser um longo monólogo ininterrupto sobre filosofia existencialista, com um capítulo sozinho tomando quase trinta páginas de info-dumping? Perfeito! Quero pegar um livro que começa super acessível, contando sobre um adolescente com problemas de personalidade (que frequenta a escola, tem namoradinha, rotina de pais, etc.), e transformá-lo numa mistura de jornadinha do herói clássica (talvez derivativa?) junto com uma metáfora estranha de surrealismo fantástico, cenas inteiras num imaginário inconsciente e simbologia pesada e hermética sobre individuação? E se eu ainda terminar precisamente no clímax, sem mostrar as consequências do desenlace? Sem problemas, vai ser isso aí mesmo!

Pela primeira vez, nesses últimos anos tive vontade de ser mais conformado. De fazer as coisas de um jeito mais tradicional, mais de acordo com o que acho que os outros iriam gostar. Ao mesmo tempo, sinceramente sinto que talvez não consiga: dependo demais de me sentir livre para conseguir ser mais contido.

Será possível arranjar um jeito de ter um pouco das duas coisas ao mesmo tempo, fazendo do meu jeitinho e ainda sendo validado por terceiros? Se tiver que escolher, provavelmente vou ficar com a liberdade. Mas a validação, se viesse, viria a calhar…

Fica o dilema.

Talvez ele se resolva sozinho. Sinto que, conforme os meses vão passando e vou colecionando cada vez mais elogios e mais críticas, isso já vai me dessensibilizando um pouco para isso. Imagino que aos 31 será outro dilema que vai estar passando pela minha cabeça. Mas na época que entro nos 30, deixo a fotografia daquilo que mais vem passado pela minha cabeça. Vontade de ser aceito, mas sem me condicionar a deixar de ser estranhamente livre. Uma esquisita sensação de ser grato não só pelas minhas benesses, mas por elas terem vindo acompanhadas de crises que me ajudaram a valorizá-las melhor.

O mundo ao redor segue sangrando. Quero fazer mais sobre isso no futuro. Com o tempo, tenho tentado vincular meu solipsismo habitual aos problemas do mundo e uma visão aos outros. Esses textos de aniversário, em particular, às vezes me incomodam porque neles sinto que preciso tentar falar de mim.

Tenho evoluído aos poucos em dois projetos longos nesses últimos meses (meu próximo livro e um ensaio), mas apesar disso sinto estar numa fase de bloqueio, estado este que também é irônico de ser aquele em que me encontro ao completar 30 anos.

Enquanto escrevo isso, minha cachorra dormindo ao meu lado começou a dar uns latidinhos abafados sonhando. Estou com saudades particularmente de escrever poemas. Tenho sofridamente tentado construir uma presença digital em redes sociais e me dei de presente ficar afastado disso pelo menos por uma semana antes do meu aniversário.

Estou viciado na música Get Along, do Far Caspian, e em diversas outras que aparecem na rádio dela no Spotify (essa rádio é basicamente a única coisa que tenho escutado). É o que está tocando enquanto escrevo tudo isso aqui. Agora preciso ir trabalhar: tenho que fechar uma entrega antes de uma reunião que terei daqui uma hora.

Atrás da tela, pela janela vejo entre as nuvens algumas manchas de azul do céu do dia. Aos 29, tinha feito anos num dia de céu nublado. Fico feliz pela banalidade arbitrária de meus 30 acontecerem num dia mais bonito.

Pela empolgação reflexiva, escrevi mais do que imaginei que iria escrever.

Pouco difere esse hoje do aniversário do que foi meu ontem e do que será meu amanhã. Mas muito difere como entrei nos vinte da maneira como saí deles. Se ainda estiver vivo, onde estarei aos trinta e cinco? E aos quarenta?

Trinta anos. Ao mesmo tempo, parece muito significativo e paradoxalmente cotidiano, banal.

Como é bom estar vivo num dia qualquer para caçar entre as nuvens os cantos azuis mais bonitos do céu.

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Rodrigo Goldacker
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