29
Hoje fiz vinte e nove anos.
O primeiro dia da minha nova idade começou na madrugada. Trabalhando tarde da noite, um bug de inteligência artificial começou a enfiar vários neologismos sensacionais no que deveria ser um texto bem burocrático e protocolar sobre um assunto chato qualquer. As palavras, que incluíam certas pérolas como “bóvedas caleidoscópicas”, “gentáluas asterismais” e “pensânveros tansugestivos” me deixaram com vontade de fazer um poema. Adaptei algumas delas para deixar mais convincentes como termos no português. “Pensânveros”, por exemplo, era no original do bug de inteligência artificial “pensârveo”, mas fiz a adaptação pelo que me parecia mais sonoro. Fique nisso das nove da noite às duas e pouco da manhã, no que terminei o rascunho do meu poema surrealista e fui deitar.
Por isso acordei tarde, lá pelas dez da manhã. Ainda na cama, vi algumas mensagens de trabalho e de parabéns. Antes das dez, já tinha recebido vinte ligações de números diversos procurando o Vicente, o mesmo Vicente que há no mínimo cinco anos me ligam procurando. Não ouvi as ligações todas porque o celular estava no “não perturbe”. Não sei quem é o Vicente. Só sei que aparentemente liberaram linhas altas de crédito para ele nuns cinco bancos diferentes.
Café da manhã. Pra minha cachorra Sunna, remédio de displasia e ração. Pra mim, pão de milho com queijo e peito de peru, café sem açúcar e iogurte com granola. Depois do café, desci com minha cachorra para ela brincar no jardim do prédio. Fiquei com ela lá por uns quarenta minutos. Recolhi merda dela e dos cachorros dos vizinhos folgados que não recolhem os restos de seus animais. Fiquei, como fico às vezes, puto da vida com a folga desses vizinhos. Minha cachorra, descobri recentemente, gosta de brincar de futebol. Se eu jogo a bolinha com a mão, ela enjoa rápido de ir buscar. Se chuto, ela vai buscar sempre e tenta defender minha jogada, como se fosse uma goleira. Brincamos assim até ela cansar e ir deitar na sombra. Enquanto isso, ouvia um podcast que costumo ouvir sobre política internacional. Num momento em que tudo parece do avesso, os Estados Unidos estão pressionando Israel por um cessar-fogo, depois de décadas de apoio incondicional que, mesmo com certas rusgas, nunca chegou sequer próximo do mesmo nível de pressão que existe agora. É um mundo estranho esse e não sei tudo que penso sobre esse mundo e suas guerras. Considerei esses assuntos enquanto recolhia merda de cachorro da grama e jogava bolinhas para a Sunna ir buscar.
Voltei pra casa. Trabalhei um pouco, respondi mais alguns dos meus parabéns. Minha esposa postou um vídeo nas redes sociais, feito automaticamente pelo seu celular, em que aparece ao longo dos anos acompanhada de diferentes versões minhas. Barba comprida e cabelo comprido, barba comprida e cabelo curto, cabelo curto e barba comprida, sem barba e com cabelo comprido, sem barba e com cabelo curto, cabelo curto e barba curta, sem barba e sem cabelo nenhum; roupas chiques, terno e blazer, roupas de casa, como um casaco velho de moletom. Fotos de quando morávamos na chácara, num cortiço, num apartamento em Indaiatuba, no apartamento de agora em São Paulo. Sinto-me líquido. Fui tudo isso e agora sou outra coisa. Sei bem o que fui e muito mal o que sou.
Aos 29, sou convencionado como um quase. Um “quase 30”, uma idade que pela simbologia social parece menos importante. Ao mesmo tempo, olho aos 28 embasbacado pelo que fiz, fui, por como a vida se resolveu.
Escrevi três livros aos 28 anos. Um deles era um ensaio que há anos tentava e falhava em escrever. O outro, um romance que me pegou de supetão com uma inspiração daquelas súbitas — terminei em vinte dias. Mais um, um livro de poesias — e escrevi algumas das poesias que mais me orgulho de ter feito aos 28 anos. Revisei e publiquei meu primeiro livro, que tinha escrito dez anos antes. Minha vida literária, ainda morosa, parece evoluir aos poucos. Há caminhos para vários desses livros saírem do papel. Como não sou otimista, dado que são tantos caminhos em aberto, espero que pelo menos um deles se concretize. Se fosse otimista, sonharia talvez com a concretização de todos. Quando penso no pior dos cenários, considero que “pelo menos” devo ter publicado mais um livro até o final do ano. E mesmo isso me parece ótimo.
Na última semana dos 28, recebi dois reais e vinte e cinco centavos da Amazon pelos meus livros que estão sendo lidos por lá. Foram cem páginas lidas de um, o que me rendeu setenta e sete centavos, e cento e noventa e duas páginas lidas do outro, o que me rendeu um real e quarenta e oito centavos. Nessa última semana dos 28, uma moça que não conheço, e que não sei como chegou ao meu livro, publicou uma resenha da minha obra no Skoob me dando 4,5 estrelas. Senti que foi um presente.
Olho para esse meu último mês aos 28 e penso: era pra isso ter sido um inferno astral? Foi um mês de felicidades. Fui fazer a barba num barbeiro. Tive ótimos encontros e momentos. Fiz meus novos óculos. Comecei a me exercitar. Fui ao dentista. Caminhei. Recebi amigos em casa. Vivi bons momentos com minha esposa. Li na varanda do apartamento olhando a cidade.
O mundo despenca, mas minha vida tem sido de felicidades. Penso no apocalipse possível do futuro, no rompimento das civilizações, nas desgraças climáticas, e tento aceitar, e acho que até consigo aceitar, que tudo vai morrer, eu incluso. Penso nas extinções anteriores e reflito sobre um paralelo interessante. Entre as extinções em massa da história do planeta, só uma teve como causa o excesso de sucesso de uma espécie: foi quando cianobactérias, organismos unicelulares que dominaram os mares, tiveram tanto sucesso em se reproduzirem que causaram uma “grande catástrofe” de oxidação da atmosfera. É um dos eventos mais antigos a se ter evidências na história da vida neste planeta. Na outra ponta do tempo medido em eras são agora seres multicelulares e complexos que estão, por seu próprio sucesso, degradando sua atmosfera. Vejo uma ironia nisso e penso que, se for esse nosso fim, seremos naturais e finitos como foram aqueles organismos primitivos que, de tão simples, nem bactérias eram direito ainda. Parece divertido que, no extremo oposto da complexidade, sejamos ainda tão primitivos, estúpidos e destrutivos.
Aceito a morte, minha e do mundo, porque só assim posso viver. Antes disso, roubo alguns bons momentos dos bolsos do destino e tento cuidar e proteger os meus, no sentido mais tribalista desse conceito. Como o bicho que sou, cuidei da minha família e me sinto feliz. Nos encontros de meus parentes queridos que estou vendo mais felizes e estáveis pela primeira vez desde talvez sempre, desconsidero um pouco, com uma certa cegueira seletiva, as outras famílias do mundo. Até olhar outra vez às notícias e lembrar da guerra, da fome, da ruína perto e longe. Massacres na favela aqui do lado, nas ruínas ucranianas, nas ruínas do Oriente Médio, guerras no Mar Vermelho destruindo o comércio global. Sou uma plantinha que floresce após anos de esforço num solo privilegiado que me parece úmido e fértil. Ao meu redor, outros solos se desertificam e outros trechos da floresta incendeiam. Ser feliz e prosperar pessoalmente no meio duma catástrofe coletiva, com todas as ambivalências emocionais que isso implica. Às vezes queria ser mais cego ao outro para aproveitar melhor das minhas próprias conquistas. Sou mais autoconsciente do que deveria ser para meu próprio bem-estar. Sei mais do que deveria sobre meu lugar como mero detalhe no panorama desse mundo.
O mundo se destrói, mas cuidei da minha família e estabilizei nossas crises. A irrelevância da minha biografia familiar microcósmica com a grandeza de tudo como plano de fundo. Tenho que parar de escrever esse texto para uma conversa de trabalho. A conversa termina, volto para continuar. Esse ano, consegui uma oportunidade para dar aulas. Veio, por uma coincidência daquelas que parecem desafiar qualquer lógica, uma hora depois de eu ter tomado uma drástica decisão profissional que passei meses tomando coragem para tomar. Sinto-me dono dos meus caminhos pela primeira vez, no limitado escopo do que posso decidir e controlar.
Os 28 anos foram uma das boas idades. A melhor entre minhas idades desde, talvez, os 21. Os projetos trouxeram frutos. As perspectivas do curto prazo são boas. Olho para os 29 que começam com um otimismo que não me é característico. Tudo que empreguei trouxe bons resultados. Minhas apostas me levaram onde eu gostaria que me levassem. Minhas grandes decisões, tomadas depois de tantas angústias e hesitações, me deixaram leve quando finalmente agi.
Tenho me sentido feliz e fico tentado a dizer, sem saber se posso dizer algo assim, se algo assim é apropriado, ou se dizer algo assim pode amargar minha sorte, que nunca fui tão feliz. Olho lúcido hoje ao passado para saber me posicionar naquilo que fiz de errado, mas também naquilo em que acredito que erraram contra mim. As consequências e o tempo parecem guinados de alguma forma a meu favor. Penso que fiz minha vida e daqueles que amo um pouco melhor devido a esforços que pareciam sisíficos. Mas minha pedra pesada, quando carreguei penitente montanha acima, milagrosamente não rolou descendo de volta e só ficou no lugar em que devia ficar. Deixei de ser Sísifo, agora sou o quê? Não sei. Vou arranjar outra pedra pra carregar? Vou fazer outra coisa que não carregar pedras? Vou só “ser feliz e fazer minhas coisinhas”? É possível ser tão simples assim depois de ter sido por tanto tempo tão complexo?
Escrevi com minha cachorrinha deitada em cima do meu pé. Escrevi enquanto resolvia coisas de trabalho nas outras abas do navegador. Estou revisando um dos capítulos do meu livro. Estou sonhando com a escrita de um novo livro até o final do ano. Onde vou estar aos 30? Vou conseguir escrever esse livro, publicar algo, dar mais aulas, viver mais bons momentos, sair mais vezes com minha cachorrinha para passear, viajar com minha esposa, ver minha família bem? O mundo vai seguir se rompendo todo? Quanto tempo mais meu privilégio vai seguir me protegendo desse rompimento? Por quanto tempo vou conseguir roubar momentos felizes e idades boas da sorte e do destino? Vou ficar velho o suficiente, tendo bons e maus anos suficientes, para os 28 algum dia se diluírem e perderem o impacto e a significância que tiveram?
Não sei.
Por agora, olho para os 29 um pouco assombrado com a comparação: podem ser tão bons, tão produtivos, tão recompensadores, tão plenos, tão cheios de boas apostas, decisões corajosas, felicidades e bons resultados, podem ser tão memoráveis quanto os 28 foram? Espero que sim, embora ciente de que a comparação é injusta. Comecei os 28 com uma comparação bem mais modesta. Não tinha ideia de quão notável seria este ano e essa idade.
Queria dizer que entro no novo ano livre de expectativas, mas não é verdade. Entro mesmo um pouco ansioso. Quero que o novo ano seja para mim tão feliz quanto foi o último, mas isso me parece perto demais duma utopia. Estou acostumado com cenários mais trágicos do que esses tempos leves tem sido. Tenho tentado aprender a ser feliz e tenho percebido que nisso não tenho ainda nenhuma desenvoltura. Penso que nessa dança de alegrias posso tropeçar a qualquer momento. Por um lado, não quero tropeçar. Por outro, é o tropeço que é meu lugar comum, o lidar com problemas. Simplesmente dançar feliz sem tropeços está fora ainda da zona do meu conforto, então se danço sem tombos é com a ansiedade no fundo da cabeça.
Quero ser feliz, mas não só. Quero ter propósitos. Minha felicidade é decorrente de propósitos. De mitos autogeridos que desenhei pra nortearem meus atos. Minha narrativa de vida é parte da minha obra. Sou feliz, inclusive, porque parei de sacrificar estas minhas jornadas. Minha vida não precisa fazer sentido para os outros. Muitas das minhas decisões, aliás, para os outros pareceriam contraintuitivas. Precisam fazer sentido para mim e só. E as consequências que estou colecionando parecem me dizer que estou seguindo no caminho certo, não no sentido de um “caminho certo” generalizante, mas num caminho certo para mim — que seria provavelmente errado para qualquer outro.
Sinto que esse texto dessa idade já ficou grande demais. Nos outros anos, escrevi de outros jeitos. Dessa vez fiz preâmbulos, foquei no presente desse dia, fiz uma retrospectiva um pouco caótica do que foi essa idade, e sinto que para o novo ano não consegui deixar expectativas mais sólidas do que “quero continuar fazendo o que tenho feito, inclusive intensificando e aprofundando esse fazer, porque parece que tem dado certo”.
A previsão de tempo dizia que no meu aniversário ia ter tempestade. Enquanto escrevia isso, começou a chover. Da janela, vejo uma São Paulo toda cinza e molhada. Aos vinte e oito, morei em três cidades diferentes. Comecei o ano ainda em São Roque, passei sete meses em Indaiatuba e daí voltei no final de 2023 a São Paulo. Não imaginava que voltaria a morar aqui e nem queria inicialmente, mas tenho sido feliz nessa volta. A chuva cai forte, mas não parece tempestade ainda. Daqui, a vista é bonita e o escritório em que trabalho no apartamento fica até confortável diante do mundo caindo lá fora. Penso nas pessoas não tão confortáveis nos lugares precários até onde a vista alta alcança. Não consigo ser totalmente feliz ciente dos problemas delas, mas também não consigo mais permanecer totalmente triste diante dos meus problemas que começam depois tantos sofridos anos a desatar seus nós. Chove sobre a cabeça de todos, os felizes e os infelizes, os angustiados e os redimidos, os pobres e os ricos. Algumas casas, porém, ficam mais destruídas pela chuva do que outras. Isso me assombra hoje como assombrava quando as telhas do cortiço voaram uma vez numa tempestade e molharam meus livros no escritório que ficava embaixo.
Não sei como terminar isso. Sinto que me perdi novamente divagando nesse último parágrafo. Tenho 29 anos agora e este é meu texto dos 29 anos, seguindo minha tradição de um texto por aniversário que tenho fielmente mantido já por mais de uma década. Começo meus 29 anos de um jeito diferente de tudo que fui antes. Comemoro feliz por quem fui, pelo que fiz e por quem sou.
Começo os 29 querendo ir além. Aqui já é muito bom, mas há muitos lugares onde eu ainda gostaria de chegar. Vou usar do meu tempo nesse mundo para tentar alcançá-los, enquanto as circunstâncias permitirem. Quem sabe, antes da próxima tempestade, eu não consiga ainda aproveitar mais bonitos dias de sol.
Escrevi esse texto ouvindo intercaladas duas músicas ótimas que descobri na última semana . Uma delas, chamada Some Sunsick Day de um músico chamado Morgan Delt, é feliz e eufórica. A outra, Don’t Call My Name de outro artista que atende por Skinshape, é feliz e mais lenta. O livro que escrevi em vinte dias era inspirado muito por uma música, que inclusive aparece nele, chamada Hey Lover do grupo Daughters of Eve, feliz e romântica. Tenho descoberto matizes e sons de felicidades que nunca percebi antes.
Pela graça poética, essas músicas eu diria que são algo como “embirânticas sinfonias exorbitantes”, com ênfase ao neologismo divertido do meu poema esquisito que terminou meus 28 anos de forma apropriada e que fundou meus 29 de forma mais apropriada ainda.
Aos 29, com medo de ser feliz, ansioso pelos riscos de deixar de ser feliz, sou feliz de um jeito que, pela catástrofe, pelo marasmo, pela mortalidade ou pela tragédia, deixarei um dia de ser. Antes, viverei talvez ciclos de tragédia e êxtase. Antes, serei ainda tantas vezes feliz e triste, se o tempo permitir. E que venha pela frente o que vier.
Aos quase 30, quase tão feliz e realizado quanto sinto que poderia estar. Aos 29, vou atrás desse quase como se minha vida dependesse disso.
Preciso aprender melhor a ser mais do que só triste como estava acostumado. Aos 29, sem ter como evitar a difícil e complexa verdade deste fato, preciso admitir que sou feliz.